Os jovens da geração nascida entre meados dos anos 1970 e 1990, para ouvir música, aguardavam o que as estações de rádio passavam nas frequências AM e FM. Idem na TV, o que os canais passavam era visto em direto e aguardávamos os raros momentos onde a oferta coincidia com os nossos interesses para ver (anos mais tarde até poder gravar); essa oferta diminuta era a base para inspirar-nos, maravilhar-nos ou simplesmente matar o aborrecimento. Nas papelarias e tabacarias escolhíamos o que ler perante a oferta disponível (e consoante o fundo do nosso porta-moedas estivesse mais ou menos à mostra).
Hoje a experiência é bastante diferente. Diante de uma web quase infinita, onde o acesso está pago pelos pais, e onde pelo smartphone e pelo computador e pela TV todos se ligam, as possibilidades a um jovem para consumo de conteúdos são quase infinitas, aos milhões, acessíveis a qualquer momento. A outrora espera paciente, felina e predadora deu lugar à espera tranquila pelos algoritmos que nos gerem os gostos por temas, pessoas e marcas que já lhes dissemos ser o que desejamos. E somos brindados hora a hora, e não semana a semana, por uma miríade de conteúdos estimulantes do que nos apaixona.
Como podem então impactar a nossa formação estas duas vivências tão diferentes?
Fui espreitar o que alguns estudos foram descobrindo nos últimos anos:
- Pew Research Center, 2018
- Oxford University, e os impactos do uso da tecnologia nos jovens, 2019
- Census, pela Common Sense Media, 2020
- Ofcom e hábitos de consumo de notícias, Reino Unido, 2023
- Os Portugueses e as Redes Sociais, Marktest, 2023
- (outros; vários artigos)
Alguns dados e reflexões saltam à vista:
A esmagadora maioria (97%) dos adolescentes da Geração Z (2000 a 2010) possui smartphones e 84% usam a internet quase constantemente. E se virmos os dados de 2023 da Marktest “Os Portugueses e as Redes Sociais”, os jovens consomem diariamente conteúdos durante o dobro do tempo (150 minutos eles vs. 70 minutos os mais de 35 anos).
Bastante diferente de uma época “lá atrás”, onde a babysitter da juventude era quase em exclusivo a TV, consumida passivamente e em modo “solitário” sem interação com outros, hipnoticamente a vermos desfilar por longo tempo uma série ou documentário, nem que fosse só para esperar pelo que nos interessava e começava apenas dali a 1 hora mais tarde...
Encontrei algumas referências em vários artigos também ao facto de, num dia inteiro, em média hoje os jovens consumirem o dobro dos conteúdos vs. nos anos 80 e 90, onde se praticavam mais atividades físicas (naturalmente pelo facto da oferta de conteúdos ser limitada e termos de procurar alternativas).
Poderão dizer alguns que isto afeta as soft skills e as capacidades de relação interpares. Os 80&90 faziam-nos conviver nas ruas e nos cafés, e hoje refugiam-se s jovens nas salas de chat. Mas não consegui uma certeza absoluta. Se alguns autores referem o problema desse “enclausuramento” numa bolha e a comunicação escrita ao invés de cara-a-cara, também é verdade que o isolamento de outrora acontecia, em horas infinitas em casa à espera do momento para sair e conviver. A verdade empírica é que hoje um jovem comunica muito mais, quer pela facilidade oferecida pela tecnologia, quer pelo facto de o poder fazer com qualquer pessoa pelo mundo fora, de faixas etárias variadas e classes sociais diversas. Mas é um facto que a prática da comunicação nos 80/90 se fazia no mundo físico e hoje ela ocorre muito também no mundo digital.
As notícias e o seu impacto
Sem surpresa. Os jovens de hoje obtêm notícias mais pelas redes sociais do que de fontes tradicionais, como imprensa ou televisão (já para nem falar da imprensa ou rádio!). Ora as notícias que víamos na Tv eram transversais a vários temas, escolhidas pelos editores, variando sempre o alinhamento entre acontecimentos sociais locais, política nacional e internacional, idem no desporto, cultura e economia. Sem querer, ouvíamos falar da Palestina, da Guerra Fria, ouvíamos este e aquele escritor a prestar declarações num evento, dávamos por nós a ver documentários sobre os mistérios do Espaço na voz de um tal Carl Sagan como se tivéssemos nascido para sermos astronautas ou astrónomos.
Hoje o feed de cada um rapidamente se afina e seleciona as notícias pelo algoritmo com base nos nossos gostos e no nosso histórico, afunilando para os temas que nos apaixonam quase em exclusivo, fechando-nos nessas bolhas temáticas que repetimos e repetimos e repetimos.
Ao invés de generalistas como outrora, hoje tornamo-nos rapidamente especialistas, aprofundando e repetindo conhecimento em redor do que queremos e usamos. Não é que outrora não o quiséssemos, simplesmente não o conseguíamos de forma tão fácil e acabávamos a saber um pouco de muitas coisas ao invés de sabermos muito de um pouco.
Poderemos hoje não nos apercebermos da descida do valor das ações da Tesla, mas ao invés somos brindados com 38 vídeos curtos sobre como melhorar num desporto que praticamos, ou dezenas de factos e dicas em redor de como melhorar num hobbie, e podemos procurar o que quisermos sobre um filme que vimos ou o tema do trabalho escolar e ficar horas a encontrar matéria quase infinitamente. Ou claro, conversar sobre aquele tema com a IA em vez de ter de esperar uns dias para o poder fazer com o amigo que vamos reencontrar na festa.
Diversificação vs. Especialização vs. Isolamento
Tema polémico, sempre. E também sem conclusões taxativas. É um facto que o estudo da Oxford encontrou relações causais entre a polarização política e o uso da internet nos jovens, por ficarem expostos a notícias que confirmam de forma mais frequente as suas crenças existentes (pelos efeitos do algoritmo, antevê-se).
A personalização de conteúdo na web e o enclausuramento dos utilizadores nas tais “bolhas” tem sido tema mais que prevalente nos últimos anos, mas não sei se outrora seria diferente só porque a repetição era menor (confesso daqui teríamos de derivar para a sociologia, antropologia, psicologia e educação e seria toda uma outra reflexão).
A maior disponibilidade de conteúdos no imenso lago da web traz hoje a possibilidade dos jovens se especializarem em áreas de interesse. Outrora a exposição a uma variedade de temas abria-nos horizontes para uma visão mais ampla do mundo. Mas essa imensa oferta on-demand de conteúdos na web também permite hoje essa variedade. A diferença é que hoje ela é opcional, enquanto há 30 e 40 anos atrás ela era forçada pelas circunstâncias.
Mas sou muito relutante em definir uma como melhor que a outra.
Até por um facto evidente.
O princípio da web.
O hiperlink.
Hiperlink
Se há desafio para a web atual, dominada por plataformas, é a sua efetiva descentralização e a vitória dos protocolos, tal como na web 1.0 concebida com o HTML e a criação do princípio do hiperlink, permitindo viajar para qualquer sítio (web) e voltar, simplesmente com um “click”.
Talvez seja uma visão otimista, mas se juntarmos o tempo despendido online com o manancial de conteúdos recomendados e a isso somarmos que nesse tempo há também o link para relacionados, ou para mensagens privadas com links para outros conteúdos (suscitados por pais, amigos ou a IA), chegamos a uma conclusão: o tempo pode ser “espremido” e dele extrair-se muito mais informação e conteúdos de muito mais fontes. Basta querer. E, portanto, parece-me prevalecer apenas a mesma conclusão de sempre:
Mais que a disponibilidade de conteúdos, e a quantidade e mais que o consumo, importa o desenvolvimento da curiosidade. Seja há 40 anos, seja hoje. É o que nos faz querer saber mais, seja sobre fotografia, gestão de empresas ou recursos humanos, seja para melhorarmos como pais ou como filhos. A razão está só na curiosidade. Só temos por isso de estar agradecidos por hoje não precisarmos esperar pelo programa Tv daqui a 3 dias ou pela revista que chega no próximo mês.
Outro impacto notório e destacado nestes e noutros estudos que consultei é o facto do tempo médio dedicado (em atenção a algo) ter baixado, pelo facto de termos passado de ver exposições demoradas (programas longos de TV, textos longos de imprensa, ...) para clipes de segundos, alterando a forma e a estrutura de exposição dos dados/informação e a sua assimilação.
Em que ficamos?
Com isto não se pretende debater aqui e decidir se há um cenário bom e um menos bom, ou que a moral seja a eterna posição mediana e os consensos médios, mas sim e apenas que ganhemos redobrada atenção ao facto.
Como pais, avós, tios... ao estarmos atentos a isto saberemos melhor conjugar a nossa forma de ver e analisar factos e episódios da vida real com a dos mais jovens, entendendo como eles estão a ver, partindo de uma base formativa criada de forma diferente. Como profissionais, que coordenem equipas ou sejam coordenados, saberemos se pertencentes a uma geração dos anos 80 ou dos anos 2010 que nas nossas equipas há potenciais especialistas e generalistas, entendendo essa génese e canalizando-a no melhor sentido do grupo e dos resultados do projeto.
Eu, por mim, lembro com nostalgia as horas na Tv a preto e branco e sem comando por onde desfilavam programas a mostrar-me factos e entretenimento variado que eu confiava e escolhiam por mim, mas agradeço igualmente ao algoritmo de hoje as recomendações sobre os meus gostos que eu espero sejam atendidos.
O que me deixa pensativo é pensar que no fundo há uma certa similitude entre essa arte do zapping televisivo aprendida há décadas atrás e um feed de uma rede social de hoje. Se antes fazíamos zapping hoje fazemos scroll, se antes andávamos pelos 190 canais hoje é pelos 190 perfis, mas das notícias à música, da pesca ao golfe, dos desfiles de moda à culinária, ou das construções de casas às televendas, nem tudo é assim tão diferente.