Crise Ucrânia-Rússia: quando poderá haver uma guerra e como será?

CNN , Laura Smith-Spark
29 jan 2022, 00:00
Tensão Ucrânia-Rússia Foto: AP

A crise da Ucrânia é um caso clássico de uma incerteza conhecida. Sabemos que não se sabe ao certo o que o presidente russo, Vladimir Putin, pretende fazer ao congregar as tropas na fronteira com a Ucrânia.

Então, quão iminente estará uma guerra a nível global? Alguns receios ter-se-ão aligeirado após recentes conversações entre os oficiais russos e ucranianos. mas o Pentágono afirma que os russos continuam a reunir as tropas e o presidente Joe Biden comunicou ao homónimo ucraniano, Volodymyr Zelensky, num telefonema na quinta-feira, a possibilidade de uma invasão russa em fevereiro, segundo dados da porta-voz do Conselho de Segurança Nacional, Emily Home.

No entanto, Zelensky manteve a posição de que a ameaça russa permanece “perigosa, mas ambígua”, não estando seguro da ocorrência de um ataque, disse um oficial ucraniano à CNN. Prosseguem os esforços diplomáticos para pôr um fim a esta crise.

Levando isso em consideração, vejamos quando poderia acontecer uma invasão e que contornos teria.

Quão iminente é a ameaça de uma guerra?

Os analistas dizem que a Rússia tem várias opções para atacar no momento que bem entender, desde fulminantes ataques aéreos surpresa a uma invasão terrestre numa larga frente. Mas se transportou grandes quantidades de equipamento militar para a fronteira com a Ucrânia, não tem ainda à disposição todas as tropas necessárias para uma operação terrestre.

"Neste momento, a Rússia tem muito equipamento posicionado ao longo da fronteira com a Ucrânia”, disse Janes, uma agência global para a inteligência de defesa de software livre. “Isso reduz o tempo necessário para ocupar aquela zona com mais forças se decidirem combater, porque já lá têm toda a artilharia pesada.”

A agência disse que as tropas podem ser enviadas em menos de 72 horas, uma vez que basta enviá-las de avião ou de comboio desde as bases de todo o país.

A Rússia também se encontra a mobilizar uma formação considerável no seu Destacamento Militar Ocidental (EMD) na Bielorrússia, que se prolonga desde a costa do Pacífico da Rússia até à Sibéria, disse a Janes. Essa formação, que a Janes detetou a deslocar-se para ocidente no início do mês, consistirá em tropas, recursos de logística e comunicações, além de equipamento militar.

A Rússia comunicou que essa formação está presente para um exercício de treino entre a Rússia e a Bielorrússia. Mas, segundo a Janes, as tropas foram destacadas para estarem a postos para a guerra.

A julgar por aquilo que a Rússia já colocou junto à fronteira com a Ucrânia, crê-se que a Rússia necessitaria de um “máximo de duas semanas de movimentações intensas para posicionar todas as peças”, se quisessem avançar com a invasão.  

Não se sabe ao certo se a Rússia quereria apostar num largo número de tropas terrestres, especialmente devido ao risco de baixas.

"O mais importante é perceber que a Rússia está bem ciente do chamado contacto de guerra”, que são as tropas a combater no solo, disse Sam Cranny-Evans, analista do Royal United Services Institute (RUSI), no Reino Unido. "Vimos na Chechénia, no Afeganistão, na Geórgia e nas missões clandestinas na Ucrânia, que as baixas militares geram uma grande pressão política.”

A Rússia poderá antes optar por utilizar a sua inteligência, vigilância e meios de reconhecimento de longo alcance para alvejar infraestruturas nacionais críticas na Ucrânia, como bases militares ou até centrais elétricas e pontes, disse Cranny-Evans. "O objetivo será o de impedir a ocorrência de um contacto ou de preparar o campo de batalha para que, quando ocorra, seja muito mais favorável às forças russas,” disse ele.

Dados recolhidos pela inteligência americana em dezembro estimam que a Rússia poderá lançar uma ofensiva militar à Ucrânia “logo no início de 2022”. Desde então que os oficiais americanos mantêm essa linha.

No entanto, os oficiais ucranianos dizem que os mais recentres dados da inteligência militar sugerem que as tropas russas não estarão preparadas para desencadear uma invasão completa ao país.

Uma fonte próxima da liderança ucraniana falou com a CNN na terça-feira e disse que os responsáveis pela defesa e pela inteligência analisavam hora a hora imagens de satélite “dos EUA e de outras agências ocidentais” das forças russas, mas que não vislumbravam a Rússia a “entrar em modo de combate ou a posicionar-se para atacar.”

A fonte disse à CNN que a inteligência ucraniana indica que a ameaça da Rússia é “perigosa, mas não iminente”, e que se os russos decidissem atacar, precisariam sempre de uma ou duas semanas para que as forças russas junto da fronteira estivessem a postos.

O Ministro dos Negócios Estrangeiros da Ucrânia, Dmytro Kuleba, referiu algo parecido na quarta-feira, dizendo que as tropas russas podem atacar a Ucrânia a qualquer momento desde 2014, mas que o destacamento não estaria completamente a postos. “Podemos dizer 100 vezes por dia que uma invasão está iminente, mas isso não muda a situação em terra”, disse ele.

Soldados ucranianos em posição defensiva nas trincheiras na linha da frente, a 500 metros das posições separatistas a 21 de janeiro de 2022, na região leste ucraniana de Luhansk.

"Em termos de cronologia, o que temos visto até agora tem sido uma sinalização clara da intenção e possibilidade de invasão à Ucrânia”, disse Cranny-Evans. Mas os russos estão a “levar o seu tempo” a posicionar as últimas peças para deixar espaço para conversações que possam permitir-lhes concretizar os seus objetivos políticos, como a colocação de um líder pró-Kremlin ou até neutro em Kiev, sem terem de combater, sugeriu ele.

Se chegarmos à invasão, ele considera que a Rússia poderá posicionar as tropas necessárias em 72 horas. “Serão as forças que a Rússia já possui no Destacamento Militar Sul na fronteira com a Ucrânia as primeiras a entrar em combate”, disse Cranny-Evans.

O Kremlin nega estar a planear um ataque e alega que é o apoio da NATO à Ucrânia – onde se incluem o fornecimento de armas e treino militar – que constitui uma ameaça crescente no flanco ocidental russo.

O que poderá influenciar a cronologia para uma potencial invasão?

Poderá haver outros fatores que não geopolíticos a ter em conta, como o clima e os Jogos Olímpicos de inverno em Pequim.

Se Putin ordenar a invasão das suas tropas, os analistas especulam que seria antes do degelo primaveril. “A melhor altura para o fazer é no inverno, porque seria uma invasão mecanizada que necessitaria de solo congelado sólido”, disse à CNN o jornalista e escritor Tim Marshall.

Mas Cranny-Evans não acredita que o clima tenha qualquer influência na decisão de uma invasão.

"A Rússia tem um longo historial de combate consoante a necessidade. Não há sinais de que a lama atrapalhe”, disse ele, acrescentando que as forças russas são experientes a combater naquele tipo de terreno. ”Veículos blindados, especialmente os de lagartas, conseguem deslocar-se muito bem, até em solos muito macios, teriam de estar extremamente degradados para não conseguirem movimentar-se.” Disse ainda que a Ucrânia tem um excelente sistema de estradas.

Tanques T-72B3 russos participam em exercícios no campo de tiro de Kadamovskiy, na região de Rostov, no sul da Rússia, a 12 de janeiro de 2022.

A Vice-Secretária de Estado dos EUA, Wendy Sherman, sugeriu esta semana que os Jogos Olímpicos de inverno a ter início na próxima semana na China poderão influenciar a decisão russa. Putin conta estar presente no início da competição e o presidente chinês, Xi Jinping, “não ficaria muito contente se Putin escolhesse esse momento para invadir a Ucrânia”, disse Sherman.

Sherman disse ainda suspeitar que “nem as pessoas próximas” de Putin saberão o que ele irá fazer em relação à Ucrânia, mas que os EUA veem “todos os sinais de que utilizarão forças militares algures entre este momento e meados de fevereiro”.

Um porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros chinês declarou a 14 de janeiro que os membros das Nações Unidas adotaram uma resolução de tréguas olímpicas, que obriga os países a “cessar as hostilidades desde sete dias antes do início dos Jogos Olímpicos até sete dias depois dos Jogos Paralímpicos”. Esse período decorrerá de 28 de janeiro a 20 de março.

Que contornos teria uma invasão?

É difícil de prever, mas a história recente poderá dar algumas pistas. Afinal de contas, a Rússia já invadiu solo ucraniano por duas vezes na última década.

Quando Moscovo anexou a península ucraniana da Crimeia em 2014, fê-lo sob o pretexto de que estava a defender os seus interesses e os dos porta-vozes russos. Milhares de tropas de operações especiais, conhecidos como “homenzinhos verdes”, que depois Moscovo admitiria tratar-se de soldados russos, invadiram a península do sul. Depois, no espaço de dias, a Rússia completou a invasão através de um referendo criticado pela Ucrânia e considerado ilegítimo por grande parte do mundo.

Pouco tempo depois, os separatistas pró-Rússia nas regiões ucranianas de leste de Donetsk e de Luhansk, conhecida como Donbas, declararam a independência de Kiev, dando origem a meses de guerra pesada. A real invasão russa da região de Donbas terminou em 2015, quando assinaram um cessar-fogo, mas a Rússia continua a apoiar os movimentos separatistas no local.

O analista de assuntos globais da CNN, Michael Bociurkiw, antigo porta-voz da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa, disse esta semana acreditar que Putin poderá optar pela invasão através de Donbas, por “saber que passaria incólume”. Aquela zona, largamente destruída pelos bombardeamentos, é bastante desconsiderada por muitos no ocidente como “território dispensável”, disse Bociurkiw.

"Putin tem distribuído centenas de milhares de passaportes russos a moradores pró-Rússia da região de Donbas, tendo agora ainda mais pretextos para alegar que os mesmos têm de ser protegidos”, disse ele.

Como mal menor, a ação russa poderá envolver a “normalização” do controlo do país sobre a região de Donbas, destacando tropas russas para efetivar esse controlo local, ou até para alargar o seu raio de ação contra o resto da Ucrânia, disse o editor de segurança da CNN International, Nick Paton Walsh.

Outros analistas sugerem que um estreito corredor terrestre ao longo do Mar de Azov, através da cidade ucraniana de Mariupol, poderá ser facilmente conseguido com uma aterragem de um anfíbio na costa do Mar de Azov, disse Paton Walsh, ainda que fosse um corredor difícil de defender.

Paton Walsh acrescentou que outra opinião muito difundida é a de uma invasão muito mais abrangente do país, mas que isso custaria a perda de muitas vidas russas e graves sanções do ocidente.

Kuleba disse quarta-feira que o seu país estava concentrado em “todos os cenários”, não apenas no da ameaça de uma invasão militar.

"Vemos um cenário de destabilização da Ucrânia, um cenário iminente e já a decorrer, espalhando-se o pânico e sobrecarregando o sistema financeiro da Ucrânia através da condução de ciberataques contra o país”, disse o ministro.

 

Soldados ucranianos operam numa zona industrial destruída em Avdiivka, na região ucraniana de Donetsk, cujas algumas zonas se encontram a apenas 50 metros da linha da frente, a 23 de janeiro de 2022.

Que forças tem a Rússia em posição?

Segundo dados da inteligência do Ministério da Defesa ucraniano partilhados com a CNN na semana passada, a Rússia tinha mais de 106 mil tropas terrestre junto à fronteira com a Ucrânia, mais cerca de 21 mil das forças aéreas e navais à mão.

Os registos também mostram que a Rússia apoia mais de 35 mil rebeldes no leste da Ucrânia e que possui mais 3000 soldados russos em território rebelde. Moscovo nega a presença de quaisquer forças no leste da Ucrânia.

"As forças armadas russas aparentam ter entrado no mais elevado nível de atividade e movimento desde a congregação militar do outono-inverno que começou no final de outubro”, disse uma análise da Janes publicada na terça-feira.

"Há sinais de atividade nos maiores comandos regionais da Rússia e Moscovo até referiu que iria deslocar ainda mais navios de superfície, incluindo seis navios de desembarque, um cruzador e um contratorpedeiro, para o Mar Mediterrâneo, de onde poderão facilmente navegar para o Mar Negro.”

Dois bombardeiros estratégicos Tu-95 parados na base aérea de Engels, perto do Rio Volga, na Rússia, a 24 de janeiro de 2022, numa imagem de vídeo facultada pelo Ministério da Defesa russo.

Segundo a Janes, as forças mobilizadas para a Bielorrússia do EMD russo estão equipadas, no mínimo, com dois batalhões Iskander-M, sendo o Iskander um veículo terrestre com um sistema de lançamento de mísseis, para além de vários lança-rockets BM-27 de longo alcance e um largo número de tanques de guerra.

O Ministério da Defesa russo também anunciou o destacamento de 12 caças Su-35S, dois batalhões de sistemas de antiaéreas S-400 e um batalhão de antiaéreas Pantsir-S para a Bielorrússia, como parte dos exercícios militares que lá decorrem, dizia a análise.

As forças na Bielorrússia ajudam imenso a Rússia “porque obriga os ucranianos a defender mais umas centenas de quilómetros de fronteira”, decidam os russos invadi-los ou não, segundo a Janes. Poderá ainda permitir que os russos expandam o alcance geográfico dos seus radares e sistemas eletrónicos de guerra para apoiar a sua defesa aérea.

"Unidades dos Destacamentos Militares Central, Sul e Ocidental estarão a enviar equipamento adicional, incluindo tanques, artilharia e sistemas de comunicações, para montar bases junto à fronteira com a Ucrânia”, acrescenta a análise da Janes.

Qual é a capacidade militar da Ucrânia?

A Ucrânia insiste que as suas forças estão bem preparadas. Aliados ocidentais como os EUA e o Reino Unido aumentaram o fornecimento de treino militar, equipamento e provisões para a Ucrânia, com o aumento da tensão com a Rússia.

Um consultor do presidente ucraniano Zelensky disse à CNN na quarta-feira que os EUA estão a providenciar à Ucrânia um “tipo de apoio sem precedentes”, tanto diplomático como militar.

Soldados ucranianos patrulham a linha da frente em Zolote, Ucrânia, a 20 de janeiro de 2022.

"O nosso exército está bem preparado. E temos uma população muito motivada”, disse esta semana o embaixador ucraniano no Japão, Sergiy Korsunsky.

Entretanto, Zelensky tem apelado aos ucranianos que permaneçam calmos e não entrem em pânico.

Segundo Cranny-Evans, as forças armadas ucranianas estão muito melhores do que em 2014 e 2015, quando se encontravam num estado de prontidão muito baixo.

"As forças armadas ucranianas lutaram imenso pela modernização, fizeram todos os possíveis com a indústria doméstica para melhorar as suas capacidades e fortalecer as suas defesas”, disse ele. "No entanto, muito do que conseguiram é de uma natureza tática. A forma de combate dos russos está num nível muito superior.”

Cranny-Evans acrescenta que, embora ninguém julgue possível que os ucranianos parem os russos, “eles aumentaram os potenciais custos para as forças russas”.

"Possuem os meios para poder arrastar a Rússia para um conflito sangrento. É uma questão de ver se a Rússia atinge os seus objetivos sem chegar a isso.”

A bola está do lado de Putin, enquanto o líder do Kremlin medita sobre as respostas dos EUA e da NATO às exigências de segurança russas. Como disse recentemente num artigo do New York Times, Fiona Hill, antiga responsável do Conselho de Segurança Nacional para a Rússia, da administração Trump. Putin tem um jeito natural para fabricar crises e é capaz de causar problemas pelo mundo fora se quiser continuar a confundir os governantes ocidentais.

Artigo com o contributo dos jornalistas da CNN Matthew Chance, Tim Lister, Clarissa Ward, Radina Gigova, Jennifer Hansler e Mayumi Maruyama.

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