O olhar sério de uma fotógrafa para as brincadeiras das crianças em 14 países diferentes

CNN , Oscar Holland
25 jan 2022, 11:00
Crianças brincam com andas na Etiópia. Foto: Nancy Richards Farese

Desde o Burkina Faso às Honduras, passando pela Etiópia e por Espanha. A fotógrafa Nancy Richards Farese mostra como em 14 países diferentes as crianças têm uma característica em comum, independentemente das circunstâncias. “Apesar do que se passa, as crianças brincam”.

Há mais de uma década que Nancy Richards Farese tem captado imagens emotivas de crianças por todo o mundo, desde o Burquina Faso às Honduras, passando pela Etiópia e Espanha. Nas suas viagens, a fotógrafa americana tem observado uma característica comum que parece ultrapassar culturas. “Apesar do que se passa, as crianças brincam”, disse Farese numa videochamada a partir de Boston.

Nada ilustra melhor esta situação do que as fotografias do enorme campo de refugiados em Cox’s Bazar, Bangladesh, casa para inúmeras pessoas deslocadas pela crise Rohingya, em Mianmar. Apesar das dificuldades, Nancy Farese fotografou crianças a soprarem moinhos de vento e a puxarem carrinhos feitos com garrafas de plástico.

“Vamos para lá para fotografar os traumas e as dificuldades. No entanto, apercebemo-nos de que as crianças descem montes de lama, criam jogos fantásticos e elaborados com caricas e sapatos. As crianças fazem papagaios ou camiões com garrafas que encontram ou com cassetes velhas”, diz Nancy Farese. “Eu e os outros adultos temos a perceção da seriedade da situação. Contudo, as crianças fazem algo, de forma natural, que os ajuda a recuperar.”

O novo livro de Farese tem quase 100 fotografias. Estas foram tiradas em 14 países enquanto a fotógrafa observava as brincadeiras. As crianças mais novas jogavam xadrez na Jordânia e monopólio em Cuba. Saltavam, faziam a roda e corriam despreocupadamente. Jogavam à bola, trepavam e saltavam à corda. As brincadeiras mais recorrentes são: lançar papagaios e brincar com bonecas, ao passo que os jogos lúdicos parecem ser globais, embora tenham nomes e peças diferentes.

Uma imagem de 2015, do Haiti, a que a fotógrafa chamou de “Brincar com bonecas, herdar a família dos brinquedos”. Foto: Nancy Richards Farese

“Uma das brincadeiras mais populares no Haiti é o ‘círculo’ “, disse Farese. “Faz-se rolar um pneu e usa-se um arame para controlá-lo. Eu tentei fazê-lo rolar. Tentei puxar o pneu e correr com ele pela estrada, juntamente com as crianças, mas é bastante difícil. Ao mesmo tempo, é muito divertido. Uma pessoa tem de concentrar-se. Rimo-nos, mas há uma certa competitividade nisto.”

Nancy Farese diz que a universalidade e a familiaridade destes jogos podem ser as razões pelas quais tantas pessoas se identificam com as suas fotografias, mas acrescenta: “Nós vemos isso e percebemos a alegria do momento.”

O direito de brincar

O título do livro “Potential Space” foi inspirado no famoso pediatra e psicanalista Donald Winnicott. Este usou o termo para descrever o espaço entre a pessoa e a experiência, entre a imaginação e a realidade que estimulam a criatividade e a cultura. O subtítulo "A Serious Look at Child's Play”, dá dicas sobre o interesse contínuo da fotógrafa pelas ciências de desenvolvimento humano.

Como assistente na Harvard Kennedy School, Farese pesquisou a importância de brincar. A fotógrafa também trabalha com a instituição humanitária CARE International e com o National Institute of Play. Ela afirma: “Brincar incentiva a inovação, a criatividade, a flexibilidade, a adaptabilidade e a capacidade de resolução de problemas ao longo da vida.” Pesquisas académicas sobre este assunto mostram os benefícios para uma grande variedade de crianças, que vão desde a imitação de competências até uma maior empatia.

Duas crianças trepam cordas na Califórnia, EUA. Foto: Nancy Richards Farese

“Não damos o devido valor ao ato de brincar, mas quando falamos com cientistas ou teóricos, eles entendem-no como uma das coisas mais importantes que fazemos nas nossas vidas”, disse a fotógrafa. “Brincar molda as nossas características interiores emocionais, sociais e físicas. É fascinante perceber que as nossas capacidades de colaboração, cooperação, tolerância e a inclusão são aspetos simples do desenvolvimento que fazemos quando brincamos à apanhada. Estas capacidades são de extrema importância.”

Brincar não é só benéfico para o desenvolvimento intelectual e emocional das crianças. É um direito consagrado na Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Crianças. Os atos de cooperação e a capacidade de assumir um compromisso podem ajudar a construir valores cruciais para o funcionamento de uma democracia”, sugeriu Farese.

“O princípio básico de brincar é o de manter o jogo”, disse ela. “As crianças aprendem a fazê-lo, mas se não aprenderemos e praticarmos as competências fundamentais de que somos todos iguais e se não incluirmos as outras pessoas, existirá uma ameaça na forma como nos vemos numa democracia?”

Há, de igual forma, muitas ameaças na forma como se brinca, quer nos países desenvolvidos, quer naqueles em vias de desenvolvimento. Farese afasta a tecnologia das suas fotografias inspiradoras e critica a forma como os telemóveis e tablets interferem nas formas tradicionais de brincar. Ela acrescenta: “No Ocidente, o medo relativamente à segurança e a pressão dos pais para que os filhos sejam “produtivos” fez com que houvesse uma diminuição no número de pessoas que deixam os seus filhos brincar sem uma finalidade, tal como brincarem na rua”.

Uma refugiada congolesa em Massachusetts, EUA. Farese disse: “Ela estava a ver neve pela primeira vez.” Foto: Nancy Richards Farese

A fotógrafa também argumenta que o consumismo incentiva a que as crianças vejam o ato de brincar como um sinónimo de brinquedos. “Isso faz com que não percebam que podem brincar sem brinquedos”, diz ela.

As suas fotografias sugerem que as coisas materiais não são um pré-requisito para uma criança se divertir, quer seja uma criança a brincar numa fonte no Massachusetts, quer seja um rapaz a ver a sua própria sombra no Haiti.

“Lá, eles não têm muitos brinquedos”, disse Farese sobre uma escola remota onde tirou a última fotografia. “Era extraordinário ver a alegria que as crianças sentiam ao verem as suas sombras”.

Não é só para crianças

Trabalhar com crianças traz desafios únicos, sobretudo para fotógrafos que esperam captar momentos espontâneos e naturais.

“Nestas situações, o interessante de fazer trabalho de campo com uma máquina fotográfica é que as crianças vêm ter connosco. Elas querem ver o nosso brinquedo”, disse Farese, acrescentando: “Não queremos que as crianças nos vejam para que ajam naturalmente. O truque é tornarmo-nos muito aborrecidos. Começamos a escrever ou a olhar para a máquina e andamos por ali com ela. As crianças distraem-se com facilidade. Por isso, não perdem muito tempo connosco.”

Uma criança brinca com bonecas na Califórnia, EUA. Foto: Nancy Richards Farese

No entanto, a fotografia é uma “ atividade com uma parte lúdica inerente”, disse ela. Como se viu no jogo de fazer rolar pneus, Farese envolve-se nas brincadeiras das crianças que vai fotografar. Na realidade, ela diz que os benefícios de brincar não se limitam só às crianças.

“Em termos neurológicos, os humanos estão desenvolvidos para brincarem a vida toda”, disse Farese. “Socialmente, acha-se que os adultos não devem brincar, pois isso é visto como algo improdutivo e que nos faz perder tempo.”

“Movemo-nos pelo mundo com estas memórias preciosas, que são vitais e emocionais”, acrescentou a fotógrafa. “O que aconteceria se nos permitíssemos brincar regularmente, sermos criativos, inclusivos, se despendêssemos cinco minutos por dia para estarmos na natureza ou… onde o objetivo fosse deixarmos de ser quem somos?”

"Potencial Space: A Serious Look at Child's Play", publicado pelas Edições MW, já se encontra disponível.
 

Artes

Mais Artes

Patrocinados