O kohl sobreviveu a guerras, ao colonialismo, à ocupação, à ascensão e queda de impérios, a desastres naturais, à globalização e à mudança dos padrões de beleza

CNN , Zahra Hankir
24 mar, 22:00
kohl

Mas o que é mesmo o kohl? Bem, para princípio de conversa: encarna uma forma de continuação cultural mas sobretudo de resistência cultural

A intrigante história do kohl

por Zahra Hankir, CNN
 

A utilização do kohl no Médio Oriente e no Norte de África é tão rica e variada como a própria região. A mais antiga iteração do eyeliner - que faz parte integrante da cultura árabe há milénios - remonta ao antigo Egipto, onde servia não só para embelezar mas também para proteger contra o sol inclemente do deserto e até contra o mau-olhado (que pode significar uma maldição ou um olhar mal-intencionado).

Ao longo dos séculos, o uso do kohl espalhou-se pela Península Arábica, acabando por se tornar um elemento básico na vida quotidiana de homens e mulheres, com as suas vastas aplicações - estéticas, medicinais, religiosas e práticas. Pensa-se que os cruzados levaram para a Europa a prática do uso do kohl.

Os métodos de preparação e aplicação do kohl também refletiram as diversas paisagens culturais da região. O pigmento é normalmente feito a partir de materiais naturais; os Emiratis preferem historicamente as sementes de tâmaras, por exemplo, enquanto no Líbano se utiliza mel de cedro e até a vesícula biliar de uma hiena.

Uma mulher palestiniana, Hadeya Qudaih, aplica o tradicional eyeliner kohl à sua neta em Khan Younis, no sul da Faixa de Gaza, em março de 2020 foto Majdi Fathi/NurPhoto/Getty Images

Nas comunidades rurais, os residentes produzem frequentemente o seu kohl em casa ou em grupo. O processo envolve a obtenção de ingredientes facilmente disponíveis, como plantas, seiva de árvore ou pedra, que são depois queimados até se transformarem em fuligem, derretidos ou moídos em pó com um almofariz e pilão. Tal como as suas congéneres do Antigo Egipto, as mulheres dos Emirados tinham até o seu kohl enterrado com elas, juntamente com as suas jóias e cerâmica.

Preservar um costume antigo

Durante o bombardeamento de Gaza por Israel, pensei muitas vezes em Tamam Farhan Abu Issa, uma residente da cidade de Deir al Balah, em Gaza. Deparei-me com a sua história enquanto pesquisava o meu livro, "Eyeliner: Uma História Cultural", que traça a evolução do cosmético, desde as suas raízes antigas até às suas variações modernas. Usando métodos transmitidos por gerações, Abu Issa falou com entusiasmo em 2022 de como procurou preservar a arte histórica de fazer kohl. "Muito bem, meninas, este kohl fui eu que o fiz", diz orgulhosamente num vídeo produzido pela UNESCO, uma agência das Nações Unidas que trabalhou com artesãos palestinianos para ajudar a documentar e salvaguardar o artesanato tradicional. "É um produto antigo que faz parte do património do povo palestiniano."

Abu Issa demonstra como se faz o pigmento: começa por embeber um pedaço de tecido de algodão em azeite, usando túnicas velhas decoradas com tatreez (bordados palestinianos) para absorver o excesso de óleo. De seguida, coloca o pano debaixo de uma panela de alumínio e deixa-o arder sobre uma chama durante a noite. O processo produz fuligem, que se acumula na parte inferior da panela; o pó superfino é depois recolhido e armazenado como kohl em vasos de latão ornamentados. Abu Issa mergulha um aplicador humedecido com azeite no pote para juntar o pigmento e depois arrasta-o suavemente ao longo das linhas das pestanas, escurecendo os olhos.

Hadeya Qudaih fabrica e vende o tradicional eyeliner kohl para fins médicos e cosméticos (fotografia tirada em fevereiro de 2020) foto Hassan Jedi/Quds Net News/ZUMA Press/Alamy Stock Photo

Tendo como pano de fundo a guerra entre Israel e o Hamas, a preservação de costumes como o fabrico de kohl assume maior importância no contexto palestiniano. Como demonstrado por Abu Issa, o processo reflete não só um método de criação de um cosmético milenar mas também uma profunda ligação às tradições culturais palestinianas e, por extensão, à história mais vasta da região. Além disso, a prática encarna uma forma de continuação cultural - talvez mesmo de resistência cultural.

Um rito de passagem para a idade adulta

Desde os desertos da Arábia Saudita e da Jordânia até às aldeias palestinianas, o kohl é utilizado em ocasiões especiais como casamentos, partos e celebrações religiosas (Abu Issa conta que a sua avó a aconselhou a aplicar kohl à volta dos olhos dos filhos quando estes nascessem, para os ajudar a dormir à noite, por exemplo). Alguns muçulmanos consideram o uso do kohl como Sunnah - ou seja, o caminho do Profeta Maomé -, uma vez que se diz que ele usava uma forma de kohl para tratar os seus olhos medicinalmente.

A tradição também tem origem em várias práticas comunitárias, incluindo as dos beduínos, os povos nómadas dos desertos árabes. Aí, o kohl é tradicionalmente aplicado não só ao longo das linhas de água, pelo seu atrativo estético, mas também em toda a área dos olhos - abaixo da linha das pestanas inferiores e, por vezes, acima da linha das pestanas superiores. A aplicação tem um duplo objetivo: realçar a beleza do olho e proporcionar proteção contra o brilho do sol, o vento e a areia. Esta reverência pelo kohl reflete-se na Arábia Saudita, onde alguns homens (como os "Flower Men" da tribo Qahtan) o usam para honrar a sua herança tribal.

Um homem beduíno usando o tradicional kohl, fotografado na antiga cidade jordaniana de Petra foto Alessandro Bigazzi/Alamy Stock Photo

Na sociedade beduína, a aplicação do kohl é também considerada um rito de passagem para a masculinidade e um marcador de solteirice. Entre os beduínos mais jovens, há um reconhecimento brincalhão do impacto do kohl na aparência de cada um: sobre a sua melhor aparência depois de aplicar o kohl, Raed, um beduíno de 19 anos, disse-me em tom de brincadeira numa entrevista realizada em Petra para a pesquisa do meu livro, "Pareço o Jack Sparrow ou o Jack Sparrow parece-se comigo?".

Em 2010, o fascínio do cosmético levou a Autoridade Geral de Assuntos Islâmicos e Doações dos EAU a emitir uma fatwa, ou decisão formal, permitindo a sua utilização, desde que não fosse para atrair o sexo oposto.

Enraizado nas culturas

O kohl tem resistido ao teste do tempo, suportando eras de profunda agitação, incluindo guerras, colonialismo, ocupação, ascensão e queda de impérios, desastres naturais e mudanças culturais significativas. Sobreviveu a períodos prolongados de tumultos económicos, à globalização e à mudança dos padrões de beleza.

Como tal, muito antes de o eyeliner ter sido adotado como um cosmético agora omnipresente no Ocidente, já estava profundamente enraizado nas culturas do Médio Oriente e do Norte de África. No folclore, literatura, música e dança da região, o kohl é celebrado há séculos. A imagem dos olhos delineados com kohl é um motivo recorrente em várias formas de arte árabe: na poesia, por exemplo, as mulheres do Médio Oriente e árabes são retratadas como sendo incrivelmente belas, em parte devido aos seus "oyoun al sood" (olhos negros) ou "oyoun kaheela" (olhos com kohl). O kohl é tão comum na região que as raparigas são por vezes chamadas ou apelidadas Kahla pelos pais ou amigos, significando aproximadamente "a rapariga que parece ter kohl à volta dos olhos". O kohl é também uma caraterística de muitos mitos, rituais e lendas milenares. Zarqa al-Yamama (Pomba Azul), uma heroína do folclore pré-islâmico, era famosa pela força da sua visão, que era creditada ao uso do kohl.

Unir tradição e modernidade

Atualmente, o kohl mantém o seu estatuto em todo o mundo árabe e nas comunidades muçulmanas, embora a sua utilização tenha evoluído. Nas plataformas das redes sociais, o kohl ganhou popularidade entre as mulheres jovens, fazendo a ponte entre a tradição e a modernidade. Os feeds do Instagram e do TikTok apresentam publicações de influenciadores árabes e muçulmanos e de entusiastas da maquilhagem que exibem os seus olhos delineados com kohl. "Aqui estamos!", diz a influenciadora do TikTok "Blinkaria Kohl Girl" (que tem mais de 33 milhões de gostos) depois de aplicar o produto num tutorial. "Tens a linha de água e a linha apertada."

A linha de água consiste em desenhar o eyeliner na borda interna das pálpebras para obter um aspeto dramático, enquanto a linha apertada consiste na aplicação de pigmento na base das pestanas para obter um efeito subtil de pestanas mais cheias. Ambas têm séculos de existência.

Uma noiva pinta o kohl no seu casamento. Há milhares de anos que o eyeliner é utilizado para fins medicinais, culturais e de embelezamento foto Fatima Shbair/Middle East Image/Redux

As gerações mais jovens incorporaram as tendências modernas de beleza, como o eyeliner líquido, nas suas rotinas, uma vez que as áreas urbanas registaram uma mudança para marcas de eyeliner importadas do Ocidente ou do Sul da Ásia para fins práticos. "O kohl é simples de fazer", observa Abu Issa, de Gaza, "mas muitas mulheres acham mais fácil usar produtos já prontos - isto pode dever-se ao facto de serem impacientes ou de quererem evitar sujar as mãos". Apesar destas mudanças, o kohl feito à mão (muitas vezes comprado em souks ou vendedores locais) continua a ser procurado, sobretudo entre aqueles que valorizam a continuidade cultural. Maram, uma egípcia na casa dos 30 anos, disse-me numa entrevista para o meu livro: "Cresci a acreditar que o kohl era uma prática tradicional egípcia. Quando comecei a usar kohl na adolescência, achei que era fixe. E continuei a usá-lo todos os dias desde então".

Para Abu Issa e, de facto, para muitos no mundo árabe, incluindo eu própria, fazer kohl não é apenas uma arte - é uma ligação tangível ao legado da sua avó e à sua identidade. "Mesmo que ela já não faça (kohl), eu própria continuarei a fazê-lo", diz Abu Issa. "Sinto-me feliz por produzir algo para meu uso pessoal. Fiz algo de bom para mim própria."

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