Como a invasão da Rússia à Ucrânia iria repercutir-se por todo o mundo

CNN , Rob Picheta
5 fev 2022, 11:00
Tanques russos participam num exercício militar num campo de treino em Molkino, na região russa de Krasnodar. Foto: AP

A perspetiva de uma invasão iminente da Rússia à Ucrânia elevou o nível de alerta na região e ameaça mergulhar os 44 milhões de habitantes do país ainda mais nas garras do conflito. Mas o avanço do Kremlin iria também repercutir-se muito além da fronteira comum dos dois países

Os especialistas temem que uma invasão russa à Ucrânia possa trazer uma nova era de incerteza à Europa de Leste, perturbar as cadeias logísticas e a economia global, e forçar uma mudança na influência geopolítica que prejudique a credibilidade do ocidente.

Estes receios ainda podem ser evitados. O governo ucraniano está a minimizar os riscos imediatos de uma invasão em larga escala, enquanto as autoridades de todos os lados se apressam para encontrar uma solução diplomática para um impasse que, segundo avisa a administração Biden, está demasiado perto da guerra.

Se acontecer uma incursão, não se sabe que forma pode tomar, e tentar prever as intenções do presidente russo, Vladimir Putin, é um exercício conhecidamente insensato. “Qualquer guerra contemporânea seria horrorosa, mas esse horror tem uma escala”, disse Nigel Gould-Davies, ex-embaixador britânico na Bielorrússia e atualmente membro do grupo de reflexão sobre a Rússia e a Eurásia no Instituto Internacional de Estudos Estratégicos (IIEE).

A eficácia de uma resposta liderada pela NATO é crucial também para determinar a duração e o alcance dos impactos que qualquer invasão teria, concordam os analistas.

Mas o avanço russo seria um teste à determinação das nações ocidentais e apresentaria uma série de incertezas económicas e de segurança.

“É muito provavelmente a crise de segurança mais grave na Europa desde a década de 1980”, disse Gould-Davies.

“A Rússia e o ocidente têm discordado muito fundamentalmente quanto à sua visão do mundo e essa discórdia fundamental foi varrida para debaixo do tapete durante anos”, acrescentou James Nixey, diretor do programa Rússia-Eurásia no grupo de reflexão londrino Chatham House.

“Agora, a Rússia decidiu elevar a fasquia”, disse ele. “É um problema do mundo real com implicações globais.”

Uma nova linha da frente na Europa

À medida que cresce a ameaça do avanço da Rússia sobre a Ucrânia, cresce também o volume da retórica ocidental.

Joe Biden, o presidente americano, disse na terça-feira à CNN que haveria “consequências graves” para qualquer invasão russa. O primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, disse que o país iria contribuir para qualquer empenhamento da NATO no seguimento de um ataque, enquanto o presidente francês, Emmanuel Macron, disse que “o custo será demasiado elevado” se Putin decidir avançar.

Mas a “escala da reação global depende da extensão da entrada da Rússia na Ucrânia”, disse Nixey. Ele acrescentou que, enquanto muitos observadores acreditam cautelosamente que será evitada uma guerra aberta, “já me enganei antes, tal como a maioria dos analistas russos”.

As consequências mais imediatas para lá da Ucrânia seriam sentidas nos países da Europa de Leste e nos estados bálticos que se iriam deparar com uma Rússia abertamente agressiva à sua porta.

“A Ucrânia faz fronteira com várias nações da NATO. Haverá uma grande preocupação por isto não ser apenas algo que está a acontecer perto e que pode ter um efeito de arrastamento, mas que possa ser uma ameaça à sua segurança”, disse Gould-Davies.

Soldados ucranianos numa trincheira na linha da frente em Donbass abrigam-se do frio extremo. Foto: Timothy Fadek/Redux para a CNN

“Se a Rússia conseguir ou se não for desencorajada de voltar a redesenhar as fronteiras, é bastante evidente que o país vai tirar ilações disso. O que se segue?”, acrescentou Nixey.

Muito iria assim depender da resposta da NATO, e os países que se poderiam ver na linha de fogo iriam rapidamente notar um aumento da presença de tropas. Um total de 8500 tropas dos EUA foram colocadas em alerta elevado para uma possível projeção para a Europa de Leste, disse na segunda-feira o porta-voz do Pentágono, John Kirby. Três dirigentes americanos familiarizados com as discussões disseram também à CNN que os Estados Unidos e os aliados podem enviar contingentes adicionais para a Roménia, Bulgária e Hungria nos próximos dias.

A Ucrânia não é membro da NATO e seria pouco provável que a aliança enviasse soldados para o país. Mas após uma incursão, seria provável que uma forte presença militar fosse mantida junto ao limite oriental da Europa enquanto a Rússia detivesse território ucraniano – uma perspetiva que iria reavivar memórias de uma barreira da era da Guerra Fria a dividir o oriente do ocidente.

“Terá de haver uma resposta ao longo de toda a linha da frente da NATO que sirva de dissuasor... e é preciso ter uma estratégia de combate à volta disso”, disse Neil Melvin, diretor de estudos internacionais de segurança no Instituto Real de Serviços Unidos (RUSI).

“Na Europa, isso mudaria imensamente as coisas porque estamos muito longe de pensar nesses termos”, acrescentou. Melvin prevê que os países precisem de “forças grandes o suficiente para combater durante um longo período, além de trazer forças adicionais dos EUA, e combater nas dimensões cibernéticas”.

“Vai ser uma mudança enorme.”

Preocupações económicas

As repercussões económicas de uma invasão estão repletas de incógnitas, mas há vários efeitos em cadeia que preocupam os especialistas desde que a acumulação de tropas russas perto da fronteira com a Ucrânia se tornou clara.

Muito diretamente, a perturbação da produção agrícola na Ucrânia pode ter um impacto direto no abastecimento alimentar.

O país é um dos quatro maiores exportadores de cereais do mundo. Prevê-se que satisfaça um sexto das importações de milho a nível mundial nos próximos cinco anos, segundo projeções do Conselho Internacional dos Cereais. Portanto, um ataque direto à sua produção e produtividade pode ter impacto no fornecimento de determinados alimentos.

Mas mais preocupante é o potencial impacto alargado no abastecimento de energia, e as consequências de maiores sanções ocidentais sobre a Rússia que seriam previsíveis após uma incursão.

“Se falarmos de um grande conflito que envolva um dos maiores fornecedores de energia do mundo – e um dos principais países de trânsito para o resto da Europa – não será possível não haver impactos significativos nos mercados energéticos”, afirmou Gould-Davies.

A Rússia fornece cerca de 30% do gás natural da União Europeia e o fornecimento que o país faz tem um papel crucial na geração de energia e no aquecimento doméstico em toda a Europa central e de leste.

O país já foi acusado de explorar essa dependência. A Agência Internacional da Energia disse na quarta-feira que a Rússia contribuiu para o défice do fornecimento de gás na Europa ao reduzir as suas exportações e, nos últimos meses, o país exerceu também pressão no fornecimento à Moldávia.

“Nos últimos meses, temos visto a Rússia explorar e exacerbar os problemas do fornecimento global de energia e do aumento dos preços”, disse também Gould-Davies. “Será que eles contemplam o custo de algo muito mais grave do que isto?”

A inflação do preço da energia já afetou milhões de lares na Europa. Na Grã-Bretanha, os consumidores vão pagar cerca de £790 (950€) a mais para aquecer e iluminar as casas este anos, segundo o Bank of America, e um conflito na Europa de Leste pode originar ou agravar crises de custo de vida em vários países.

Uma preocupação na Europa é que a Rússia esteja de facto disposta a lidar com uma rutura com o mercado europeu, tendo em conta a sua transição gradual no fornecimento de gás e carvão para a China nos últimos anos.

Uma aceleração dessa transição iria provocar “um choque enorme na economia [da Europa] porque teriam de fazer outra coisa qualquer”, disse Melvin. Isto teria potencial para adiar os planos da desnuclearização em partes do continente caso os países fossem obrigados a procurar freneticamente por alternativas energéticas.

A administração Biden tem estado a realizar planos de contingência para apoiar o fornecimento energético da Europa caso a Rússia invada, antecipando assim faltas de gás e um choque na economia global, disseram membros da administração na terça-feira.

Entretanto, a UE está a trabalhar num “leque alargado de sanções sectoriais e individuais” em caso de novas agressões russas, de acordo com uma declaração da Comissão Europeia no seguimento de uma reunião virtual com os líderes dos Estados Unidos, Reino Unido, Itália, França, Alemanha, Polónia, UE e NATO. Biden disse à CNN que prevê “sanções económicas significativas”.

No geral, os analistas esperavam um pacote alargado de sanções que afetasse os principais bancos russos, o sector do petróleo e gás e as importações de tecnologia. Mas os efeitos também seriam sentidos na Europa e no resto do mundo.

“Quando impomos sanções, impomos grandes custos sobre o alvo das mesmas, mas também há o risco de nos prejudicarmos a nós, aos nossos amigos e aliados”, disse Nathan Sales, subsecretário para a segurança civil, democracia e direitos humanos no Departamento de Estado durante a administração Trump.

E apesar de existirem sanções direcionadas sobre indivíduos e empresas russas desde a invasão da Crimeia em 2014, continua a haver “uma substancial relação de investimento” entre o país e o ocidente que pode ser interrompida, disse Melvin.

“A questão agora seria até onde iriam essas sanções chegar, e quanto mais isolada se tornaria a economia russa”, acrescentou ainda.

Um mundo a observar

Os especialistas dizem que as repercussões de uma incursão e, muito mais pertinente, a resposta do Ocidente, serão sentidas a nível global. Alguns receiam que qualquer avanço russo que o país possa considerar uma vitória venha a encorajar outros países envolvidos em disputas de fronteiras.

“A China deve estar a observar atentamente para ver as lições que pode retirar da determinação ocidental”, disse Gould-Davies. “Os taiwaneses vão retirar lições daí, tal como qualquer um que tenha disputas de fronteiras e viva ao lado de um líder bastante superior”, concordou Nixey. Taiwan e a China continental têm sido governadas separadamente desde o fim da guerra civil chinesa há mais de 70 anos, mas o Partido Comunista Chinês (PCC), atualmente no poder, vê a ilha como parte do seu território e não pôs de lado usar força militar para o reclamar.

Esse contexto sublinha a sensação em alguns quadrantes de que a resposta dos EUA à crise na Ucrânia possa ditar como o país será visto em todo o mundo durante uma geração.

“Iríamos ver efeitos em cadeia durante anos e talvez décadas” se a Rússia orquestrasse uma operação com sucesso, disse Sales. “Isso diria aos ditadores de todo o mundo que os EUA são um tigre de papel.”

Ele referiu “regimes rebeldes como a Coreia do Norte e o Irão” como outros países que tentariam rentabilizar esse resultado. Mas Sales acrescentou ainda que também existe “um cenário onde os EUA e a NATO podem sair desta crise com a sua credibilidade melhorada”, caso uma resposta forte dê início a uma retirada russa.

Caso uma incursão russa seja seguida por tensões prolongadas, pode também renovar-se o debate nos EUA sobre o papel que o país deve ter na Europa. “Existe atualmente uma divisão política muito marcada entre o papel de polícia global, que Biden defende, ou o outro lado que só quer fazer o que é do interesse dos EUA”, disse Melvin.

Apesar de várias implicações de uma entrada russa na Ucrânia estarem longe de ser certas, há uma coisa em que os especialistas estão de acordo. “Na política internacional, estão todos sempre a olhar uns para os outros”, disse Gould-Davies.

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