Estatuto Ordem dos Advogados: “É uma lei falsa, é uma lei mentirosa” que vai trazer “dano e prejuízo” aos cidadãos

17 jun 2023, 14:00
Justiça

Chegou a semana passada e deixou os advogados em choque. Uns alegam que o Governo quer a Justiça “fora dos tribunais” e sem “os advogados.” Outros dizem que lei quer resolver “problemas que não existem” e vai “criar problemas onde não existiam”

Rogério Alves, ex-bastonário da Ordem dos Advogados, não tem dúvidas que as propostas de diploma para alteração ao Estatuto das Ordens, com especial destaque para aquela que visa a Ordem dos Advogados, têm duas grandes características: "Pretendem resolver problemas que não existem e criam problemas que não existiam”.

“É uma lei que a única utilidade que tem é causar problemas onde eles não existiam, com lesão acentuada para o cidadão que pretensamente pretenderia defender. Nesse sentido, é uma lei falsa, é uma lei mentirosa, porque ao contrário do que está nas suas intenções, se alguma coisa de novo trará para a cidadania, é dano e prejuízo”, afirma à CNN Portugal.

Além disso, considera que o princípio destas propostas mostra “que o Estado quer criar mecanismos de controle das ordens". O advogado ironiza e diz que a proposta "cria, desde logo, um emprego remunerado, que é o cargo de provedor” e que, nesse sentido, “poderá ajudar a combater um bocadinho o desemprego”. 

Segundo Rogério Alves, a nova legislação “cria um órgão de supervisão que tem, no caso da Ordem dos Advogados, uma maioria de não-advogados". E isso revela, diz, "da parte do Estado, uma tendência doentia para controlar tudo". "O Estado, que é habitualmente conhecido por gerir mal aquilo que lhe compete gerir, quer sempre inventar novos mecanismos, novos órgãos, novas burocracias, para, pelos vistos, controlar também as ordens”, ou seja, revela uma necessidade “de pôr trelas e açaimes nas ordens”, explica.

O advogado lembra, aliás, que a Ordem não vive fora da órbita do escrutínio judicial. “Vive com amplo escrutínio judicial, seja dos tribunais comuns, dos tribunais administrativos e do tribunal de contas. Portanto, esta mania, esta pulsão de estar sempre a criar órgãos, é totalmente nefasta, inútil, indelicada e, acima de tudo, de perfil ditatorial. Portanto, vamos ter agora, vamos à trela de um órgão de supervisão que se intromete em tudo aquilo de que não percebe nada”, conclui.

E quanto aos argumentos usados pelo Governo, Rogério Alves considera que são demagógicos e perigosos. “O primeiro é a concorrência. Tem de haver mais concorrência, o que significa que se espalharmos mais a possibilidade de administrar consulta jurídica, então as pessoas terão mais a quem recorrer”, acrescenta.

“A segunda questão, que também demagogicamente sustenta estas normas, é que os advogados não estão nada preocupados com algo mais que não seja a defesa dos seus próprios interesses e do seu próprio mercado”.

Parece “um ataque generalizado”

São muitas a vozes que se indignam perante a proposta relativa à Ordem dos Advogados. “A estratégia passa toda para ir para os Julgados de Paz, para as mediações em que tudo parece rápido e simples e sem a presença daqueles tipos ‘chatos’ que são os advogados, e até dos juízes, porque emperram isto tudo por quererem perceber as situações”, ironiza João Massano, presidente do Conselho Regional de Lisboa da Ordem dos Advogados (CRLisboa), em declarações à CNN Portugal. 

João Massano acredita que este “é um ataque generalizado”, cujo objetivo passará por “enfraquecer as ordens e afastar potenciais críticas. Como sabemos, as ordens são sempre vozes independentes e, assim, ficam afastadas dessa possibilidade, porque perdem influência”.

No caso dos estatutos da AO, o presidente do CRLisboa considera que a Justiça “perde” e admite que não seja inocente. “É uma estratégia para que a justiça tradicional perca influência no sistema português e que os tribunais sejam cada vez menos relevantes. Porque, de facto, são incomodativos, o Estado, às vezes, é condenado. Porque as pessoas vão lá exercer os seus direitos e irritam um bocadinho”, ironiza.

O que se antevê é uma “possível interferência de poderes políticos” assume. Não só por eventuais elementos externos à profissão que possam ser impostos, mas também porque “a partir do momento em que se diminui a influência das ordens na fiscalização dos seus membros, na sua autorregulação, o que acontece é que elas deixam de ter relevância e deixam de ter o papel fundamental que desempenham na defesa dos direitos das pessoas”.

Alguém acredita que “uma ordem subjugada, sem autonomia, sem capacidade de se autorregular, tem a capacidade de impor a um Estado que possa dominá-la? Claro que não, tem de ser subserviente”. E este é um risco real.

“O cidadão está completamente desprotegido”

A possibilidade de outras pessoas, externas à profissão, e por isso não controladas, praticarem atos que deveriam ser apenas assumidos por advogados coloca em causa os “direitos dos cidadãos”. Se atualmente já existem casos de burlas, leia-se procuradoria ilícita, se a proposta for aprovada, o número irá aumentar.

Não é difícil ver “a influência negativa de pessoas que não são advogados e que prejudicam os cidadãos. É óbvio que sei que na minha classe não somos todos bons e mesmo os bons cometem erros. A diferença é que os nossos erros têm seguros de responsabilidade civil obrigatória, têm responsabilidade disciplinar. E os dos outros que aparentemente querem deixar entrar neste ‘mercado’ não têm nada disso. Ou mesmo que tenham, falta o resto: não têm responsabilidade disciplinar, ninguém fiscaliza, ninguém controla nada”.

E, infelizmente, João Massano diz que já existem casos que demonstram como é fácil sob a capa da justiça enganar os outros e dá quatro exemplos:

- Um senhor contratou alguém para tratar da legalização da sua casa, uma vez que ela estava a tratar das partilhas por óbito do pai. Pagou-lhe na totalidade, segundo o mesmo, cerca de 10 mil euros. Esta nada fez e foi condenada em tribunal por isso. O senhor ainda se encontra a pagar o empréstimo que contraiu para pagar à arguida os honorários e os valores que esta pediu;

- Alguém despedido de forma ilícita queria colocar um processo em tribunal. Aceitou a ajuda de outra pessoa. O formulário até deu entrada no Tribunal do Trabalho, mas quando foi a audiência de partes, nada lhe disse. O trabalhador perdeu o direito à indemnização e todos os créditos laborais a que tinha direito;

- Os proprietários de um talho ficaram com dividas à Cofidis, à Autoridade Tributária e à Segurança Social. O homem contratado e que dizia ser advogado, para resolver o assunto, nada fez. O dono do talho não sai de casa e vive com uma depressão profunda. Muito dificilmente o casal, dono do talho, vai conseguir pagar as dívidas que, entretanto, aumentaram;

- Uma advogada suspensa pela Ordem e que não podia praticar atos, continuou a dar consultas jurídicas e a receber dinheiro por isso. Tal como a receber os valores da entrada dos processos em tribunal, sem nunca o fazer;

Com a nova proposta, a Ordem dos Advogados pouco ou nada poderá fazer nestes casos. Até porque, a procuradoria ilícita, nos seus contornos atuais, deixa praticamente de existir.

“Isto é que é a questão, é que o cidadão está completamente desprotegido. Bem ou mal, as associações públicas existem precisamente para salvaguardar os direitos dos cidadãos”, insiste João Massano.

Argumento do Governo de abrir o acesso à profissão do Governo “é mentira”

“A partir do momento em que alguém é expulso de uma ordem profissional, como se calcula, terá feito algo muito grave”, mas se esta proposta avançar “isso deixa de ser garantido”. Porquê? “Porque essa pessoa sai da ordem por ter feito algo muito grave, mas pode continuar a praticar atos próprios, porque ninguém vai fiscalizar nada e é até legitimada pela nova proposta”. De alguma forma, as situações de cidadãos poderem ser enganados “são potenciadas”.

Quanto ao argumento do Governo de permitir um maior acesso a algumas profissões, João Massano acusa: “É mentira. Na Ordem dos Advogados a questão do acesso é uma falácia, porque cada vez há mais advogados. Aquela história de que não entra, porque há um ‘torniquete’, é falsa. Todos os anos aumenta o número”. Nada impede as entradas “se as pessoas tiverem qualidade, ou se nos exames e nas provas de agregação conseguirem as notas”. 

Considera ainda que se deve assumir “de uma vez por todas que a regulação é para proteção dos cidadãos. Para que os cidadãos possam perceber o que é e não é permitido nessas profissões, reconhecendo a sua elevada autonomia técnica”.

“De repente, parece que caímos numa situação em que olhamos para profissões, que são reguladas, como se fosse um privilégio dos próprios. Ora, não é nada disso, pelo contrário. Não é à toa que médicos, advogados, por exemplo, ou enfermeiros, têm regras próprias. Porquê? Para proteção dos cidadãos”, conclui.

Documento “reflete tudo aquilo que a OA disse que eram as linhas vermelhas”

A proposta de alteração ao estatuto da Ordem dos Advogados, em conjunto com os estatutos das demais ordens, chegou à OA na quarta-feira por volta das 23:00 com prazo de resposta de 48 horas úteis, ou seja, até ao dia 13 de junho, dia feriado em Lisboa (cidade onde se situa a sede da OA e o Ministério da Justiça).

Logo no dia seguinte, a bastonária da Ordem dos Advogados, Fernanda de Almeida Pinheiro garantiu à agência Lusa que “todos os meios ao dispor vão ser utilizados pela Ordem”, sustentando que se vão manifestar contra “tudo aquilo que viola o respeito pelos direitos, liberdades e garantias das pessoas”.

Fernanda de Almeida Pinheiro considerou ainda esta proposta “inaceitável”, defendendo que pretende afastar os cidadãos da justiça, não podendo a OA “nunca compactuar com uma situação destas”.

A bastonária criticou ainda a hora em que o Ministério da Justiça enviou a proposta, sustentando que demonstra “a falta total de respeito pela instituição e pela advocacia portuguesa”.

“Aproveitaram o momento que é tradição em Lisboa de maior descanso para propor algo desta dimensão a todas as ordens profissionais”, referiu, acrescentando que o documento “reflete tudo aquilo que a OA disse que eram as linhas vermelhas”.

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