Iris, de 12 anos, é boa aluna e está ansiosa por começar as aulas, mas ainda não sabe para que escola vai. Ano letivo arranca ensombrado

12 set 2023, 07:00
Matemática

Cerca de 1.300.000 começam esta terça-feira a regressar às aulas. Professores, pais e sindicatos garantem que há muitos alunos como a Iris, que ainda não foram colocados, e escolas que iniciam aulas sem professores suficientes

Iris tem 12 anos e devia estar, como os restantes cerca de 1.300.000 alunos, de mochila às costas, a viver a excitação e as angústias do primeiro dia de aulas numa escola nova. Mas a Iris, aluna com notas dignas de quadro de mérito, hoje vai ficar em casa, porque, no dia marcado para dar arranque ao ano letivo, ainda não sabe que escola vai frequentar. No portal das matrículas, por mais refresh que o pai Pedro faça à página, a mensagem ainda é: “A Aguardar Colocação”. Está assim desde que foram divulgados os resultados das colocações dos alunos do início de agosto.

"Podia ser daquelas pessoas que deixa tudo para a última da hora e estar agora a culpar-me. Mas não sou. Fiz a matrícula da Iris em cinco escolas, como indicado, logo no início do prazo”, conta Pedro Lopes.

A família de Corroios, concelho do Seixal, viveu um período de férias inquieto, a gerir as emoções de Iris, angustiada, não por ir para uma escola nova, fazer amigos novos, mas por não saber sequer para que escola vai. “Não sabemos que livros comprar, que material adquirir. Não sabemos que horários vamos ter de gerir em família, que distâncias vamos ter de percorrer. A Iris anda ansiosa. Temos tentado minorar, mas é claro que ela anda ansiosa”, lamenta o pai, numa conversa telefónica com a CNN Portugal ao fim do dia de sexta-feira, a 24 horas úteis do arranque do ano letivo.

Na segunda-feira, o pai voltou à carga e ligou para as escolas que assinalou no ato da matrícula. Nenhuma tem indicação de vaga para a Iris. Pedro Lopes diz que tem esbarrado com a indiferença das várias instâncias que tem contactado no último mês: nem Ministério da Educação, nem DGEstE… de nenhum recebeu resposta, “nem aqueles emails automáticos a dizer que o assunto vai ser analisado”.

No dia em que 1.300.000 alunos regressam às aulas, há ainda alunos a aguardar colocação.  

A CNN Portugal pediu ao Ministério da Educação a informação de quantos alunos estão na mesma situação da jovem de Corroios, mas, volvida uma semana, não obteve resposta. Contudo, sindicatos da Educação e professores, asseguram que o caso de Iris não é único. “Há alunos que continuam sem escola. Ainda hoje recebi uma mensagem de uma amiga a perguntar o que fazia porque a filha ainda não tinha escola atribuída”, revela Alberto Veronesi, professor do Ensino Básico.

Alunos sem escola e escolas sem professores

E se há alunos sem escola, há escolas que se debatem com a falta de professores. A quatro dias do arranque do ano letivo, as contas eram elucidativas: Cerca de 100 mil alunos não têm professor a pelo menos uma disciplina. Lisboa e Algarve são as regiões mais problemáticas.

Paulo Guinote é licenciado em História, mestre em História Contemporânea e doutor em História da Educação. Autor do blogue A Educação do Meu Umbigo, Paulo Guinote é acima de tudo professor e conhece a realidade como ninguém. Não tem dúvidas em afirmar que o ministro da Educação falta à verdade quando diz que não vai haver problemas de falta de professores, porque 95% dos horários estão preenchidos.

“Há muitas escolas com 10, 15, 20 horários ainda por preencher. O ministro já no ano passado tinha falado em 97,7% de horários preenchidos no início do ano letivo e foi o que se viu. O problema é que esses números não correspondem à realidade. Há muitas colocações fictícias. Por exemplo, professores de baixa médica, que têm de ir a juntas médicas. Os seus horários não vão a concurso e, a 1 de setembro, essas pessoas têm de se ir apresentar nas escolas. Mas depois vão a juntas médicas que lhes confirmam a baixa médica. Já se sabe, antes das aulas arrancarem que essas pessoas não vão poder assumir as turmas, porque têm doenças incapacitantes que não lhes permitem dar aulas. Mas os seus horários são dados como preenchidos. E depois há a questão da redução da componente letiva, num corpo docente muito envelhecido. Na minha escola, por exemplo, há muita gente com mais de 60 anos, a ter quatro horas de redução de horário”, explica.

"Estamos a preparar o ano letivo, com quatro, cinco e seis professores em falta numa única turma”, acrescenta Paulo Guinote.

A denúncia de Paulo Guinote é corroborada por Cristina Mota, professora de Matemática e porta-voz do movimento Missão Escola Pública: “Ao contrário do que o senhor ministro anunciou, não vamos ter um ano letivo tranquilo. Temos um início de ano letivo com um número muito significativo de professores por colocar. Nomeadamente na mobilidade interna, que não costumava ter tantos horários por preencher. Cinco por cento dos horários que foram pedidos pelas escolas não foram preenchidos”, contabiliza Cristina Mota.

“Havia 2200 horários por preencher no início de setembro. São horários completos e anuais. Ainda não estamos a falar de horários de substituição. Ou seja, não temos neste momento professores para preencherem as necessidades permanentes, mas o problema ainda vai ser agravado com as necessidades temporárias. Acreditamos que este ano muitos alunos vão terminar o ano letivo sem avaliação a pelo menos uma disciplina do currículo”, teme a professora.

Professores “de mochila às costas”

Grande parte da “culpa” de não haver professores suficientes está, dizem os docentes, na falta de investimento nos incentivos à profissão. Os sindicatos temem, por isso, que a falta de professores seja um problema identificado a cada início de ano letivo.

“Adivinho que no próximo ano haja ainda um número superior de professores em falta do que este ano. Vivemos num período dramático! Quando o Ministério da Educação se vem mostrar feliz por haver um aumento do número de alunos inscritos nos cursos de ensino, tenho vontade de rir. Vão para aposentação 4.000 professores e entram nos cursos de ensino 1500. Não satisfaz necessidades nem em metade. Além disso, é importante perceber onde é que fazem falta, em que regiões do país e em que grupos disciplinares fazem falta. Em 2030, vai haver falta de professores no Norte, como acontece agora na Grande Lisboa, no Alentejo e no Algarve. É preciso começar a trabalhar desde já para evitar que daqui a sete anos se viva no Norte aquilo que se vive agora nestas regiões”, alerta Pedro Barreiros, secretário-geral da Federação Nacional de Educação (FNE).

Pedro Barreiros diz mesmo que o cenário traçado pelo Governo de fim dos professores com a casa às costas se alterou para pior: “Deixou de se falar nos professores com a casa às costas, para ter os professores com as mochilas às costas”. “Há ainda muitos professores que, hoje, não sabem onde vão matricular os seus filhos para este ano letivo”, remata.

O problema que não é novo, agrava-se a cada ano, à velocidade que os preços das rendas crescem nos portais imobiliários e o preço de um quarto se aproxima da metade de um salário de um professor contratado. “Não há incentivos à fixação de professores. Devia haver, por exemplo, uma compensação para quem se fixasse a mais de 100 quilómetros de casa”, sugere Paulo Guinote.

“Temos falta de professores em Lisboa e no Algarve, mas o ministro coloca à disposição 29 casas entre Lisboa e Portimão. É legítimo que um professor pergunte o que é que está aqui a fazer. Temos muitos colegas que estão a abandonar a profissão. A meter licenças sem vencimento e a procurar outros caminhos para a estabilidade económica, mas também física e mental”, acrescenta Carla Piedade, dirigente do S.TO.P! (Sindicato de Todos os Profissionais da Educação).

"A narrativa que aparece na comunicação social é radicalmente diferente do que acontece nas escolas. Há o reino do Pineal e há o reino do Costa. Quem o ouve falar, ninguém o leva preso”, acusa Alberto Veronesi.

A somar à falta de incentivos à profissão docente, há ainda as desigualdades dentro do mesmo país. Carla Piedade sublinha que os professores das ilhas e do continente continuam a não ter as mesmas condições de acesso e progressão na carreira: “Parece uma anedota, mas é a realidade. Uma professora do continente, outra da madeira e outra dos açores entram num bar. Uma pede entrada, prato, principal, bebida, sobremesa e café, a outra pede o prato principal e a sobremesa e eu se calhar só peço a meia dose e a sobremesa como em casa e o café é só se estiver incluído.”

"Temos uma classe profissional que se vai reformar claramente empobrecida”, remata.

E nem só de dinheiro ou da falta dele se faz a falta de incentivo à profissão. Ricardo Silva, professor do Ensino Secundário, diz que o Governo tem tido um discurso de desrespeito pelos docentes. “É inaceitável que o ministro da Educação faça publicamente aquilo que o ministro da saúde por exemplo não tenha ousado fazer, que é criticar publicamente o direito à greve. O que prejudica os alunos é aquilo que o Ministério não tem conseguido fazer e não as greves dos professores”, acusa.

“Quando o senhor ministro, em praça pública, nos aponta como pessoas com pouca ética, isso tem implicações ao nível do respeito que os alunos têm pelo professor na sala de aula”, alerta Cristina Mota.

Professores sem profissionalização

A contratação de pessoas sem profissionalização para dar aulas não vem resolver os problemas da falta de professores, garantem em uníssono os entrevistados para este artigo. Há até quem sublinhe que a medida vem trazer mais trabalho a quem está nas escolas.

“Na região metropolitana de Lisboa e no Algarve, já se verificaram que não existem professores profissionalizados de português e matemática, por exemplo. Essas vagas vão para oferta de escola e vão ser preenchidos por professores não profissionalizados. Isso vai implicar também na atividade dos professores das escolas, que vão ter mais dificuldade em acompanhar os colegas novos”, explica Cristina Mota.

O recurso a pessoas sem profissionalização para dar aulas não resolve o problema da falta de professores, garantem docentes e sindicatos. 

Carla Piedade, do S.TO.P!, vai mais longe e diz que “a contratação de licenciados pós-Bolonha são recursos humanos não qualificados”. “O ministro colocou no diploma que é uma medida temporária, mas sabemos que são medidas que estão a ser prolongadas no tempo e os números estão a aumentar. Estes colegas entram em ofertas de escola e as escolas hoje são espaços diferentes. São espaços de grande exigência pedagógica, de grande exigência didática. São colegas que vão assumir direções de turma, apoios a alunos com necessidades educativas especiais. Não é uma formação rápida que vá resolver este problema”, denuncia.

A este problema, acresce outo muito mais antigo – a burocracia que afeta o trabalho dos professores. Paulo Guinote garante que, ao contrário do que diz o Governo, “a burocracia nas escolas não está a reduzir-se. Há mais plataformas digitais para preencher, há cada vez mais papéis para justificar tudo e mais alguma coisa”.

Falta de auxiliares de ação educativa e de técnicos especializados

Nas escolas, não faltam só professores. Há escassez severa de outros recursos humanos, como psicólogos, assistentes sociais e assistentes operacionais. “Precisamos de pessoas que estejam nos corredores a vigiar, nos laboratórios, nas secretarias, na vigilância e manutenção dos espaços escolares, técnicos informáticos, psicólogos…”, denuncia Pedro Barreiros.

Paulo Guinote acrescenta: “Temos uma grande falta de assistentes operacionais ou mediadores. Há situações graves de alunos com necessidades especiais e situações socioeconómicas carenciadas que não podem ser resolvidas pelos diretores de turma, porque não têm qualificações para isso. A coisas resolvem-se com base na experiência anterior e no bom senso. É o chamado professor faz tudo, que de tanto fazer tudo, às vezes falha”.

O professor e autor do blogue A Educação do Meu Umbigo acrescenta que, além da falta de recursos humanos, os que existem são mal pagos e vivem na precariedade de ter de “suportar um trabalho extremamente exigente”. Profissionais a quem não é dada formação para lidar com situações específicas como o cuidado a alunos com necessidades educativas específicas.

E numa altura em que a saúde mental dos jovens portugueses ainda se ressente de uma pandemia recente, Cristina Mota denuncia que “não há psicólogos para podermos referenciar alunos”.

Na Educação, “as pessoas não podem ser números”

Traço comum ao discurso dos entrevistados para este artigo é a denúncia de falta de investimento na Educação. A dirigente do S.TO.P! fala em “muitas escolas a precisarem de ser intervencionadas”. Ainda há escolas onde os alunos passam frio, umas porque não houve sequer intervenção na eficiência energética dos edifícios, outras onde o problema é a jusante: “Há escolas que foram intervencionadas, onde foi instalado o aquecimento ou ar condicionado e onde não se podem abrir janelas porque há ar condicionado, mas depois não há verba para o consumo de energia que o ar condicionado representa”.

“Mas há mais. Faltam lâmpadas para projetores. Há escolas onde as casas de banho não funcionam, onde o papel higiénico tem de ser levado de casa pelos alunos. Há escolas onde os pavilhões são espaços gélidos no inverno e tórridos no verão. O mobiliário não é ergonómico e é desadequado à estrutura física dos alunos de hoje. Falta de espaço para os professores trabalharem”, enumera.

"Tenho a certeza de que não há uma escola que não precise de algo em que seja necessária intervenção. Mesmo as que já foram intervencionadas”, conclui a responsável sindical, sublinhando que “o investimento na Educação nunca é uma perda de dinheiro”.

“Há claramente uma opção de não fazer investimento na Educação. De pensar que a Educação que se faz do voluntarismo daqueles que nela trabalham”, acusa.

Alberto Veronesi, cujos 17 anos de tempo de serviço lhe permitem conhecer bem a escola pública acrescenta: “A Educação é uma área onde as pessoas não podem ser números. Os professores não podem ser números, os alunos não podem ser números.”

Recuperação das aprendizagens

Muito se tem falado na recuperação de aprendizagens dos alunos que viveram na pele o isolamento da pandemia e os efeitos que ele teve. As medidas tomadas pelo Governo nessa matéria sofreram já críticas do Tribunal de Contas. Mas nem isso impediu o Governo de reduzir o crédito horário às escolas destinado a esta matéria. “Apoios que existiram nos outros anos, este ano não vão ter lugar. Ao olharmos para o nosso horário, verificamos que houve uma redução de horários para apoios e para a promoção de projetos que visam a saúde, a alimentação e a segurança dos alunos”, denuncia Cristina Mota.

Governo reduziu o crédito horário às escolas que era destinado ao apoio à recuperação das aprendizagens.

Por seu lado, Carla Piedade alerta: “Os alunos que foram apanhados pela pandemia tem de ser acompanhados até ao final do secundário, porque vão ter lacunas em todo o seu percurso”.

O secretário-geral da FNE, Pedro Barreiros, toca ainda noutro ponto da ferida e denuncia que “nada tem sido feito para perceber o porquê da indisciplina e da violência ter aumentado no período pós-covid”.

Educação pouco especial

Para Cristina Mota, é preciso também dar atenção à educação especial e alerta que “a forma como a legislação está pensada não permite aos professores acompanhar os alunos com necessidades educativas especiais”. “O número de alunos aumenta, mas o número de professores mantém-se, o que faz com que muitos professores tenham de acompanhar os alunos à distância, sem sequer os conhecerem”, exemplifica.

E, em sala, “o número de alunos reduzido nem sempre é atendido” e “os professores, para darem atenção àqueles alunos com necessidades educativas especiais, acabam por ser obrigados a negligenciar os outros”, acrescenta a docente e porta-voz do Missão Escola Pública.

Alberto Veronesi acrescenta ainda que, em Portugal, não se promove a relação pedagógica. “Nas reconduções, nos critérios, não está a continuidade pedagógica como critério primordial. É um dos critérios, mas não é dos principais. E dou-lhe um exemplo que conheço de perto: uma turma teve três professoras, uma que se reformou ao fim de 20 dias de começarem as aulas, outra que meteu baixa ao fim de três meses e outra que veio em janeiro e os alunos adoraram, os pais adoraram e pediram para continuar. Porque é que ela não podia continuar?”, relata.

Os professores e os sindicatos lembram ainda que há outro segmento de alunos a precisar de atenção especializada: A vaga de imigração trouxe para Portugal muitas crianças que não falam sequer português e com naturais problemas de integração. Carla Piedade fala de “escolas com multiplicidade de nacionalidades, com alunos que não falam a língua e a quem é preciso fazer acolhimento. Um acolhimento que se faz com os professores, mas também com os restantes recursos humanos nas escolas”.

Educação

Mais Educação

Patrocinados