Mãe, mulher e futebolista: a portuguesa que é um raio de esperança

19 fev 2022, 12:57
Suzane Pires

Suzane Pires faz parte dos dois por cento de jogadoras que conseguem ser mães sem abandonar os relvados. Numa altura em que a Federação Inglesa vai tornar obrigatória a licença de maternidade em todos os contratos, a internacional portuguesa conta como está a ser a experiência dela e diz esperar que no futuro seja mais simples conciliar a carreira com o sonho de qualquer mulher.

A notícia chegou nos últimos dias de janeiro e foi recebida com entusiasmo: a Associação de Futebol Inglesa estabeleceu um regime obrigatório de proteção à maternidade, que tem de ser salvaguardado em todos os contratos de jogadoras da I e II Ligas.

A licença de maternidade passa a ser obrigatória no futebol inglês, concedendo às jogadoras um direito que até aqui era mais uma ameaça: nunca sabiam o que lhes podia acontecer.

É verdade que no final de 2020 a FIFA já tinha avançado com um projeto de licença, mas catorze semanas (oito das quais após o nascimento), remuneradas a dois terços, é pouco para proteger uma mulher que quer ser mãe, sobretudo numa atividade tão física.

Ora por isso, a decisão da Associação Inglesa pode representar um ponto de viragem.

Suzane Pires é internacional portuguesa, está por estes dias no Algarve ao serviço da Seleção Nacional, para disputar a Algarve Cup, e olha para estas notícia com felicidade. Há três anos ela foi mãe do pequeno Gautinho, diz que o filho é a maior fonte de inspiração para tudo o que faz, mas os primeiros tempos foram de receio.

«No início foi um choque. Foi tudo muito inesperado e não sabia o que ia acontecer. Por isso deixei as coisas acontecerem.»

Dois anos após o nascimento do filho, voltou a jogar futebol. Hoje recuperou a carreira e vive os dois sonhos: ser mãe e ser jogadora. Mas ela é um caso raro. Tanto assim, aliás, que no primeiro jogo pela Seleção após ser mãe até foi homenageada pela seleção da Turquia.

«Fiquei muito emocionada com esse gesto das jogadoras turcas. Quando voltei a jogar não imaginava que ia ter um impacto tão grande. Muitas jogadoras não acreditavam que era possível ser mãe e continuar a jogar, e eu mostrei-lhes que sim», conta ao Maisfutebol.

«Acho que é algo que é perfeitamente possível. No início, quando tive a possibilidade de voltar a jogar, tive muitas dúvidas, perguntava-me o que é que ia acontecer quando tivesse um jogo fora com a minha equipa ou quando fosse convocada para a seleção. Mas as coisas só se sabem quando são vividas e hoje, depois de as viver, vejo que é perfeitamente possível ser mãe e jogar futebol. Com a ajuda da minha família e do meu marido, a maternidade não é impeditiva de nada. Pelo contrário, até me dá mais força para ir atrás das coisas que quero.»

Suzane Pires cresceu com uma bola nos pés, de resto. Neta de um português, que fez questão de manter a nacionalidade nos filhos, e estes nos netos, nasceu no Brasil, com um irmão quatro anos mais velho, que desde cedo lhe passou a paixão por jogar futebol.

Nunca mais parou. Quando os pais emigraram para a Alemanha, ela manteve a tradição de jogar e acabou por ser convidada para se juntar a uma universidade norte-americana, a Southern Connecticut, onde fez a formação e de onde saiu para o Boston Breakers.

Foi nos Estados Unidos, aliás, que o selecionador Francisco Neto a descobriu, em 2015, abrindo-lhe a porta da seleção portuguesa.

Seguiu-se o regresso ao Brasil para representar o Santos, onde conheceu Gauther, com que haveria de casar. Os dois viajaram para a Madeira, ela para representar o Marítimo, ele para ser guarda-redes do Nacional, e foi na ilha que Suzane Pires soube que estava grávida.

«O meu filho é madeirense. Está sempre a torcer por Portugal. Quando alguém lhe diz que é brasileiro, ele responde logo: ‘Não, eu sou português, pá’.»

Um ano depois de Gautinho nascer, surgiram alguns convites e o primeiro choque.

«Quando começaram a chegar as propostas, muitas equipas diziam que me queriam, mas teríamos de fazer um contrato baixo. Ou seja, queriam-me, mas não queriam pagar o normal, porque não sabiam como eu ia voltar ou se ia ter cabeça para saber lidar com ter um filho e ser jogadora. Muitos clubes quiseram que eu aceitasse contratos muito baixos», lamenta.

«Por isso eu estou muito grata à Ferroviária. Foi um clube que apostou em mim e que me deu um contrato ao nível do que eu tinha antes de ser mãe, que me permite viver bem.»

Assinou contrato com o campeão brasileiro pouco antes do filho fazer dois anos. Foram três anos, praticamente, sem jogar, embora treinasse sozinha e tentasse preparar o regresso.

No Ferroviária aprendeu o que é isto de ser mãe e jogadora.

«A minha primeira viagem foi um jogo fora com o Ferroviária, no terreno do Santos, e foi muito difícil. Foi uma viagem de sete horas de autocarro. Foi a primeira noite que dormi sem ele e demorou bastante a conseguir adormecer. Felizmente ele é muito ligado ao pai e aos avós, o que ajudou. Ele perguntava muito pela mamã, mas eu passei o dia inteiro a ligar-lhe por videochamada, ele via-me, via que estava a trabalhar e ficava melhor», conta.

«Quando vim para a seleção, foi um estágio de nove noites e a despedida foi muito difícil, confesso que chorei. Mas quando cheguei à Cidade do Futebol, as meninas apoiaram-me, fui muito bem recebida e essas coisas ajudam. Ele foi para casa dos avós paternos, onde tem muito primos, tem até galinhas, por isso acabou por estar entretido. Para além disso, é de lei que sempre que eu viajo, no regresso levo-lhe um presente.»

Como passa muito tempo fora, todo o tempo que tem livre é para estar com o filho. Diz que os dois gostam e assim estabelecem os laços que tornam uma relação mãe-filho especial.

«Por exemplo, nesta altura estamos na pré-temporada. Eu saio de casa ainda com o meu filho a dormir, para ir fazer ginásio. Quando volto ele já está acordado e a todo o vapor. Então eu tomo banho e vou com ele ao parque brincar, jogar à bola ou andar de bicicleta», conta.

«Depois voltamos para casa, almoçamos, deito-o a dormir e aproveito para descansar também. Quando há treino à tarde, vou treinar, depois volto para casa e ele já está outra vez acordado. Por isso começa de novo: ou fico a brincar com ele em casa ou vamos ao parque, ou vamos jogar à bola. Nos dias em que não há treino à tarde, então o tempo é todo dele.»

Segundo um relatório da FIFpro, apenas dois por cento das jogadoras são mães durante a carreira. Muitas optam por pendurar as chuteiras mais cedo para construir família. Na verdade, o relatório diz que 47 por cento das mulheres fala em acabar mais cedo para serem mães. Exatamente porque sentem que não há medidas de proteção à maternidade que valham a pena.

Aos poucos, porém, esta situação pode começar a mudar. Suzane Pires diz que vai mudar.

«Eu acho que no futuro vai ter de ser possível ser jogadora e engravidar. Já é uma coisa que se começa a falar com insistência. No Brasil, por exemplo, há o caso de uma guarda-redes que engravidou e foi mãe quando tinha contrato e o clube fez questão de manter o contrato durante todo o tempo, até depois do filho nascer, e ainda lhe deu a escolher poder renovar ou sair. Acho que ela preferiu sair, porque quis voltar para perto da família», conta.

«Para além disso, nos Estados Unidos já há muitos casos assim. Isso é muito importante. Conheço muitas jogadoras que querem ser mães, mas têm medo de ficar desempregadas. Se houver essa segurança que a federação inglesa agora está a dar, muitas jogadoras iam saber lidar melhor com esses dois sonhos: serem profissionais de futebol e serem mães.»

O caminho é por aqui.

 

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