Está a crescer o número de famílias com rendimentos mais elevados que recorrem à Deco em situação de sobre-endividamento, por conta da subida do custo de vida
São cada vez mais as famílias em situação de sobre-endividamento que pedem ajuda à Deco. Só este ano, até agosto, a associação de apoio aos consumidores revela que foi contactada por cerca de 20 mil famílias com dificuldades em pagar contas, refere Natália Nunes, coordenadora do gabinete de proteção financeira da Deco.
No total do ano passado, dos 31.500 contactos recebidos pela Deco, 11.340 foram realizados por famílias a enfrentar dificuldades associadas ao aumento do custo de vida, referem as estatísticas da associação do consumidor.
“Além de famílias de baixos rendimentos (correspondente ao salário mínimo ou até menos), que são as mais afetadas pela inflação, estamos a ter cada vez mais famílias com rendimentos líquidos mensais de 1.500 euros que têm sobretudo dificuldades em pagar o crédito à habitação“, refere Natália Nunes.
A subida da taxa de inflação e das taxas de juro têm levado ao crescente número de agregados familiares em situação de aperto financeiro. Apesar de alguns desses casos terem um desfecho feliz com o apoio dos técnicos da Deco, muitos terminam com a declaração de insolvência.
Ao ECO, Natália Nunes revela que essa situação de extremo é ainda muito inferior ao que assistiu no período de 2008-2012, marcada pela crise financeira e depois pelo resgate financeiro de Portugal. “Nesse período, tínhamos de dizer a muitas famílias que o caminho mais aconselhado seria da insolvência. Neste momento isso não se coloca. As famílias estão a pedir ajuda ainda numa fase inicial e não de total rutura. Coisa que não acontecia entre 2008 e 2012.”
Esta mudança deve-se a um maior conhecimento por parte das famílias, e sobretudo a um comportamento de maior prevenção por parte das entidades bancárias desde 2012, após a publicação de um diploma que estabelece princípios e regras a observar pelas instituições de crédito na prevenção e na regularização das situações de incumprimento de contratos de crédito pelos seus clientes.
Deste diploma resultou os conhecidos Plano de Ação para o Risco de Incumprimento (PARI) e Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento (PERSI).
Inteligência artificial como arma contra o sobre-endividamento
No cerne das situações de sobre-endividamento das famílias há, essencialmente, três elementos comuns: divórcio, desemprego ou doença. “Estas são especialmente as causas que levam as famílias a entrar em incumprimento”, refere Natália Nunes.
Por forma a atacar o sobre-endividamento antes dele se tornar num problema, torna-se crucial encarar o problema antes dele se tornar num pesado fardo. No entanto, Leonardo Vanneschi e Diego Costa Pinto, professores da Nova Information Management School (Nova IMS), querem atacar o problema antes dele mesmo acontecer.
Num projeto que arrancou em 2016 com a realização das primeiras entrevistas, os dois professores, juntamente com uma equipa de outros investigadores e que contou também com a colaboração da Direção-Geral do Consumidor, desenvolveram uma plataforma assente em inteligência artificial com o intuito de prever situações de sobre-endividamento atempadamente “para que as famílias afetadas possam receber o devido apoio, evitando assim que o problema atinja proporções graves”, refere Leonardo Vanneschi ao ECO.
Para o desenvolvimento deste projeto, que foi batizado de “ACIE”, foram realizadas 1.654 observações de famílias ou pessoas que resultaram na identificação de 38 variáveis que “os nossos algoritmos consideram importantes na previsão de situações de sobre-endividamento”, refere Leonardo Vanneschi.
O professor da Nova IMS refere que a “análise realizada permitiu prever o sobre-endividamento com uma precisão de 89,2% e pode servir como ponto de partida para o desenvolvimento de um conjunto de intervenções para auxiliar na resolução alternativa de litígios da dívida dos portugueses.”
Entre os elementos que mais “empurram” as famílias para situações de sobre-endividamento está, segundo a investigação dos dois professores, a dimensão da família, o tipo de trabalho e o tipo de contrato de trabalho, assim como a dimensão dos rendimentos auferidos e ainda a utilização do cartão de crédito por parte dos membros do agregado familiar.
Esta avaliação permitiu, segundo Leonardo Vanneschi, identificar três perfis de famílias mais sujeitas ao risco do sobre-endividamento:
- Famílias com baixos rendimentos (31,3%) que mostram dificuldades quando a família aumenta ou que são vítimas de eventos adversos na sua vida. São frequentemente famílias de tamanho médio a trabalhar no setor privado, com baixo nível de desemprego, rendimentos relativamente baixos, e com reduzido uso de cartão de crédito.
- Famílias com baixo controlo do crédito (37,4%). São geralmente famílias de pequena dimensão, com rendimentos mais elevados, mas que tendem a usar bastante o cartão de crédito e a ter um baixo controlo do crédito, que podem ser consumidores compulsivos.
- Famílias afetadas por crises (31,33%) que ficam sobre endividadas principalmente devido a mudanças bruscas provocadas por crises económicas, como o desemprego e cortes salariais. São geralmente famílias numerosas, com baixos rendimentos e apresentam grandes despesas domésticas e enfrentam uma elevada taxa de desemprego.