Mickey, o agricultor: «Não há maior privilégio que o tempo»

21 jan 2021, 09:19
Mickey

Nome histórico da Académica deixou a agitação de Coimbra para ter mais qualidade de vida na planície alentejana

«Depois do Adeus» é uma rubrica dedicada à vida de ex-jogadores após o final das carreiras. O que acontece quando penduram as chuteiras? Como sobrevivem os que não ficam ligados ao futebol? Críticas e sugestões para o email vhalvarenga@mediacapital.pt.

Mickey fez nome na Académica e no futebol português ao longo dos anos 90. Médio de fino recorte técnico, Rui Miguel Alegre do Nascimento Lopes trazia dos tempos de escola o apelido curioso. Duas décadas após o último jogo, ainda responde pelo nome do icónico personagem da Disney.

Desde que terminou a carreira como jogador, Mickey já experimentou diferentes sensações e ambientes. Concluiu o Bacharelato em Engenharia Civil, esteve em Lisboa a trabalhar e regressou a Coimbra para continuar a desenvolver a sua atividade profissional.

Em 2017, o antigo capitão da Académica tomou uma decisão radical. Fartos de atividades profissionais exigentes e extremamente desgastantes, sem tempo para acompanhar o crescimento do filho Francisco, Mickey e a esposa Sara decidiram trocar a cidade pelo campo, Coimbra por Ervidel, pequena localidade do concelho de Aljustrel.

«O meu objetivo foi sempre licenciar-me e, quando deixei de jogar, o primeiro passo foi voltar a dedicar-me a tempo inteiro aos estudos, concluir o bacharelato em Engenharia Civil. Depois, trabalhei alguns anos ligado ao ramo da engenharia civil, estive numa empresa de betão pronto em Lisboa, cheguei a trabalhar pelo meio em lojas de roupa, entretanto regressei a Coimbra e abri uma empresa de certificação energética, que passou depois a reabilitação urbana, com o Rui Campos, que é praticamente um irmão», começou por explicar, ao Maisfutebol.

O cansaço foi-se acumulando e Mickey, atualmente com 48 anos, optou por uma mudança de vida. «Faz quatro anos em abril que vim para o Alentejo com a minha família. Decidimos pegar num projeto que é da família da minha mulher. Eu tinha a empresa de reabilitação urbana e minha mulher explorava dois espaços da Universidade, atividades muito desgastantes, e não estávamos a ver o nosso filho pequeno a crescer. Viemos sobretudo à procura de tempo.»

«O meu sogro tem uma exploração agrícola em Ervidel, com alguma dimensão, e estava a acusar algum desgaste. Claro que eu não sabia nada da área, mas fui-me inteirando nas últimas visitas, o meu sogro também ajudou bastante, juntamos toda a informação e fomos crescendo. Decidi também ir executando algumas tarefas, para ir aprendendo e para sermos cada vez mais autónomos. Como houve uma evolução grande na agricultura, cada vez com mais maquinaria, a minha formação em engenharia também ajudou», salienta o ex-jogador.

Mickey e Sara tomaram conta da exploração agrícola e dividiram tarefas: «Eu diria que sou mais gestor de recursos humanos, enquanto a minha mulher centra-se mais na parte financeira. Nesta altura do ano, os trabalhadores começam às 8 da manhã e às vezes chegamos a fazer uma fogueira para aquecer antes de arrancar, porque é muito frio. No verão, trabalhamos das 6 da manhã até à hora de almoço, porque à tarde há demasiado calor.»

«Esta área tem cerca de 180 hectares, sendo que 40 são de Olival. Em breve, queremos que o Olival passe a produção biológica, é uma preocupação nossa também, pelos nossos filhos, pelo planeta. De resto, temos água do Alqueva, podemos regar com água do Alqueva, e fazemos culturas variadas, desde cereais, hortícolas, cebola, grão para uma empresa espanhola, trigo para pão do Continente, cevada dística para a Super Bock, etc. Não temos marca própria nem pretendemos ter, viemos mesmo para ter uma vida tranquila e somos apenas produtores», frisa o antigo capitão da Académica.

Tranquilidade e tempo.

Mais tempo.

Mickey encontrou o que procurava na planície alentejana.

«Tínhamos uma vida muito disfuncional na cidade e aqui temos mais qualidade de vida. Claro que há muito mais coisas para fazer na cidade, mas quem lá trabalha não tem tempo para as fazer. Sinto que muitos amigos olham para isto como algo que gostariam de fazer e, com o tempo que passamos aqui, vamos deixando de dar valor a um sem número de coisas acessórias», assegura.

O antigo médio da Académica fala com o Maisfutebol ao final da tarde, após mais um dia de trabalho. O filho mais novo, a caminho dos 9 anos, anda na escola local e joga no Sporting Clube Ferreirense. O mais velho está a estudar em Cambridge (Inglaterra), mas regressou nesta altura a casa devido à pandemia de covid-19.

«O meu filho mais novo, o Francisco, anda aqui na escola, vem almoçar todos os dias a casa, depois vai e volta às 17h00. O nosso trabalho também acaba a essa hora. E a partir desse momento, até às 20h00, é só brincadeira. Não há maior privilégio que o tempo», insiste Mickey.

Aquilo que não encontra no paraíso de Ervidel está a uma distância razoável para o ex-jogador: «Quando quero fazer surf, arranco e numa hora estou na Praia de São Torpes (Sines). Lisboa e Faro também estão a uma hora de distância, quando queremos um pouco mais de agitação.»

«Por outro lado, agora temos ainda a vantagem de estarmos mais protegidos da covid-19. A única grande alteração no meu dia a dia foi que deixei de poder ir ao café de manhã, era algo de que gostava. De resto, não temos sentido alterações na nossa vida», faz questão de frisar.

Mickey dedicou a sua vida ao futebol durante cerca de duas décadas. Atualmente, porém, acompanha o filho Francisco e pouco mais. «Desliguei-me, foi um mecanismo de defesa que criei. Gosto de ver o Cristiano Ronaldo e a seleção, mas vou sentindo que o futebol está cada vez mais aborrecido e com menos interesse.»

O desencanto do antigo capitão da Académica tem uma explicação simples e dolorosa: o adeus prematuro à Briosa.

O médio começou a jogar futebol no GD Pelariga, o clube da sua aldeia, passou pelo Sp. Pombal e chegou ao clube de Coimbra em 1988. Após empréstimos ao Mirandense e à Naval, Mickey tornou-se opção indiscutível na Académica e acumulou temporadas a grande nível.

Tudo mudou na época 1997/98: «A certa altura, defendi o meu colega Rui Campos num desentendimento que ele teve com o José Romão, por uma questão de justiça. Penso que fiquei marcado desde aí, sobretudo pelo senhor António Augusto, chefe do departamento de futebol.»

«Fiquei mais um ano, descemos no final desse ano e, durante a época, o presidente Campos Coroa disse-me que o Jorge Mendes estava interessado em pegar em mim para depois me colocar em Espanha. Falou-se no Valência, entre outras hipóteses, e o Sp. Braga tentou eu que rescindisse com justa causa, porque tinha salários em atraso, mas eu nunca faria isso à Académica», descreve o ex-jogador.

No verão de 1999, aos 27 anos, Mickey vê-se forçado a deixar o clube que sempre desejou representar: «No final do período de férias, o Jorge Mendes fala-me do Campomaiorense. Iria para lá e, se não fosse vendido em dezembro, regressaria à Académica, com quem ainda tinha contrato. Aceitei ir mas já sentia que estava a ser despejado.»

«O Campomaiorense não arrancou bem a época e o Carlos Manuel decidiu apostar no Cao e no Abílio, jogadores da minha posição. Acabou por ser um ano penoso para mim. A partir de janeiro, sou contactado pelo Campos Coroa para regressar à Académica e, para isso, deveria falar com o senhor António Augusto, com quem tinha um problema. Falei com ele, ele garantiu-me que estava tudo bem e tudo tratado para eu voltar», recorda.

Carlos Manuel ainda convida o médio a ficar mais um ano em Campo Maior mas Mickey está determinado. Quer cumprir o desejo de regressar a Coimbra e à Académica. «Tinha um documento que me permitia regressar, mas, poucos dias antes de me apresentar, já em Coimbra, recebo um telefonema do mister Luís Agostinho a dizer-me para ir para o Sp. Espinho. Eu digo que não, que ia para a Académica, mas ele responde-me: ‘olha que não, Mickey, a Académica não conta contigo’”.

«Desliguei ao telefone, liguei imediato ao Campos Coroa, ele disse-me que estava com pouca rede e... nunca mais me ligou. Toda a minha dedicação à Académica foi colocada em causa naquele momento», desabafa, concluindo: «Acabei por ir para Espinho, fiz mais um época mas já com pouco entusiasmo. Ainda por cima, vim a saber que tinha as portas fechadas em clubes da Liga por causa do senhor António Augusto.»

Mickey disputa o último jogo da carreira profissional a 27 de maio de 2001, com 29 anos, frente ao FC Maia. «Ainda tive alguns convites para continuar, mas achei que merecia mais. Aquilo que verdadeiramente queria, representar a Académica, já tinha passado e não havia volta a dar.»

«Sinto que fiz um bom percurso, sobretudo muito digno e honesto. Ter sido capitão da Académica encheu-me de orgulho e só tive pena que o meu pai não tivesse presenciado isso. Estreei-me na equipa sénior da Académica um mês depois da morte dele», remata o ex-jogador, atualmente com 48 anos e a desfrutar de uma vida tranquila no Alentejo.

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