Porque é que a tensão voltou a subir entre as Coreias?

28 jul 2022, 09:25
Exercícios militares sul coreanos perto da fronteira

Líder do Norte ameaçou usar armas nucleares contra a Coreia do Sul e os EUA, e "aniquilar" o governo e os militares do vizinho do sul. Por que razão a tensão voltou a escalar na península coreana? Eis cinco razões

O líder norte-coreano voltou aos discursos inflamados com ameaças contra a Coreia do Sul e os EUA, mas desta vez acrescentou à retórica belicista a ameaça de usar armas nucleares. Subindo alguns degraus na escalada retórica, prometeu mesmo “aniquilar” os governantes e os militares do Sul. 

"As nossas forças armadas estão completamente preparadas para responder a qualquer crise, e a dissuasão da guerra nuclear da nossa nação está também totalmente preparada para mobilizar a sua força absoluta", afirmou Kim Jong-un, numa cerimónia na capital do país, assinalando os 69 do armistício que pôs fim à guerra das Coreias de 1950-53, um feriado a que os norte-coreanos chamam “Dia da Vitória”.

Não há provas de que a Coreia do Norte tenha capacidade nuclear ofensiva, mas já fez seis testes nucleares no passado, e tudo indica que se prepara para realizar o sétimo, pondo fim a uma moratória auto-imposta que vigora desde 2017. Há vários meses que os serviços secretos americanos e sul-coreanos falam na iminência de um novo teste nuclear na Coreia do Norte, que estará relacionado com a recente escalada de ensaios de mísseis. Este ano Pyongyang já realizou testes de mísseis hipersónicos, e de mísseis balísticos intercontinentais, e o seu objetivo parece ser testar mísseis com capacidade de transportar ogivas nucleares táticas, que poderiam atingir com facilidade a Coreia do Sul.

Agora, ao assegurar que “a Coreia do Norte está totalmente pronta para qualquer confronto militar”, referindo explicitamente a capacidade de dissuasão nuclear, Kim volta a colocar as suas ambições nucleares no centro das atenções, e das preocupações.

No discurso mais inflamado em bastante tempo, Kim Jong-un nomeou por três vezes o novo presidente sul-coreano. “Nomeou”, neste caso, não é uma força de expressão: o líder norte-coreano referiu mesmo Yoon Suk-yeol pelo nome, por vezes sem referir o seu cargo como presidente da Coreia do Sul. 

Yoon parece ter sido mesmo o principal alvo do discurso do ditador da Coreia do Norte, para além das ameaças habituais contra o eterno inimigo americano. Porquê? Porque com a chegada de Yoon ao poder em Seul, tudo indica que se abriu um novo capítulo nas relações entre os países irmãos desavindos. Essa será uma das razões por que Kim voltou a aumentar os decibéis na habitual tensão entre os coreanos. Mas há outras.

Normalidade "pós-covid"

De acordo com os dados oficiais norte-coreanos, o país que terá sido o último do mundo a registar um caso de covid também será o primeiro do mundo a ultrapassar a pandemia. Só em maio a Coreia do Norte admitiu o seu primeiro caso suspeito de covid, e em poucos dias apresentava números explosivos de “febres” suspeitas de serem provocadas pelo novo coronavírus. Foi o suficiente para Kim Jong-un impor medidas de emergência, que significaram um controlo ainda mais apertado sobre o dia a dia dos seus concidadãos. O surto também justificou puxões de orelhas em público a membros do governo e responsáveis da administração pública, pela sua suposta incompetência na resposta ao vírus.

Todos os dados fornecidos pelas autoridades norte-coreanas são olhados com enorme desconfiança pelos observadores fora do país, mas, independentemente da realidade no terreno, a narrativa oficial permitiu a Kim reforçar o seu controlo sobre o país e a sua máquina política - ao mesmo tempo, apresentando-se como o grande líder que põe a mão na massa para salvar o seu povo.

Entretanto, os dados sobre as “febres” suspeitas registaram um fortíssimo declínio - um mistério, tendo em conta que a rede de saúde pública da Coreia do Norte é das piores do mundo, e o país não tem medicamentos nem vacinas. Em simultâneo, apresentou um número de mortes por covid surpreendentemente baixo.

De caminho, a pandemia ainda serviu para lançar acusações contra a Coreia do Sul, com a agência de notícias oficial a noticiar que o vírus teria entrado no país graças a balões lançados do país vizinho.

Kim não chegou a declarar vitória sobre a pandemia, talvez porque isso lhe retiraria um argumento extra para o controlo apertado sobre a vida de todos os cidadãos. Mas, conforme os números oficiais baixam, também a atuação do ditador norte-coreano volta ao normal. Como o prova o discurso desta quarta-feira à noite.

"Novo" inimigo a Sul

A principal razão para a escalada retórica de Kim Jong-un parece ser o novo inquilino do palácio presidencial de Seul. Yoon Suk-yeol, um político conservador, venceu as eleições presidenciais por uma unha negra, prometendo virar do avesso a relação dos últimos anos entre as duas Coreias. Ao contrário do seu antecessor, que privilegiou pontes de diálogo com o Norte e se chegou a reunir com Kim Jong-un (mas não conseguiu aquilo que mais ambicionava: um acordo de paz que pusesse oficialmente fim à guerra das Coreias), Yoon apresentou-se como um falcão, pronto a reforçar o arsenal do Sul e a aumentar a capacidade dissuasora em relação ao norte. Também ao contrário do seu antecessor, que esfriou as relações com os Estados Unidos, dando prioridade a entendimentos com a China e a Rússia (por entender que esses dois países seriam os mais capazes de influenciar Pyongyang para uma reaproximação ao Sul), Yoon quer estreitar as relações políticas, diplomáticas, económicas e militares com os Estados Unidos.

Para além de querer investir na modernização do arsenal sul-coreano, negociando a compra de novos mísseis aos EUA, Yoon prometeu prioridade a um novo sistema de prevenção de ataques vindos do Norte. Chama-se Kill Chain, e o seu objetivo é matar à nascença qualquer eventual agressão norte-coreana, seja lançando ataques preventivos sobre bases militares, para destruir mísseis e outro equipamento, seja até atacando o local onde estejam os chefes políticos e militares de Pyongyang.

Sem surpresa, Kim Jong-un não gostou da ideia de que possa existir no Sul um sistema capaz de fazer tiro a alvos tão concretos como… o próprio Kim Jong-un ou os seus generais. 

Curiosamente, analistas militares ouvidos pela agência Reuters mostraram enormes dúvidas sobre a eficácia deste sistema Kill Chain - a possibilidade de antecipar corretamente ataques antes destes acontecerem exige um nível de informação e certeza difícil de assegurar, e é duvidoso que esses ataques preventivos sejam capazes de travar mísseis hipersónicos e a nova geração de mísseis desenvolvidos pelo Norte (com o apoio, ao longo de anos, de russos e chineses).

Mas, se as vantagens e eficácia desse sistema estão por demonstrar, as desvantagens estão à vista: num contexto que já era de corrida ao armamento, a revelação de que Seul irá investir neste sistema de ataques preventivos que poderá ter como alvo o próprio ditador norte-coreano acelerou ainda mais a corrida que já estava em curso.

A ameaça implícita contra o líder norte-coreano é particularmente desestabilizadora, disse à Reuters Ankit Panda, do Carnegie Endowment for International Peace, sediado nos Estados Unidos. "Consigo ver porque é que a decapitação da liderança é tentadora para a Coreia do Sul, mas ameaçar matar a liderança de um estado armado com armas nucleares é excepcionalmente perigoso", diz este especialista.

Jeffrey Lewis, investigador de mísseis no Centro James Martin de Estudos de Não Proliferação (CNS), considera que estes planos da Coreia do Sul são "a rota mais plausível para uma guerra nuclear na Península Coreana".

Segundo a agência de notícias norte-coreana, no seu discurso de quarta-feira à noite, Kim não fez mistério sobre a preocupação que este passo sul-coreano lhe sugere. Senunciou as intenções belicosas da administração Yoon Suk-yeol, dizendo que qualquer tentativa de anular antecipadamente as capacidades de ataque do Norte terá uma resposta severa e levará à "aniquilação" do Sul. 

"Uma tentativa tão perigosa seria punida imediatamente por forças poderosas, e a administração Yoon Seok-yeol e os seus militares seriam exterminados", disse Kim, referindo-se diretamente aos propósitos de capacidade preventiva do Sul .

Novo contexto regional

Para além da aposta neste sistema, a Coreia do Sul anunciou este mês a criação de um Comando Estratégico até 2024 para supervisionar as estratégias de ataque preventivo e retaliatório. Inclui um arsenal crescente de mísseis balísticos, caças furtivos F-35A e novos submarinos, que têm sido testados em exercícios cada vez mais frequentes. O desenvolvimento de aviões de combate de última geração está a ser bem sucedido, e é um dos orgulhos recentes da indústria militar sul-coreana.

Por outro lado, a Coreia do Sul e os Estados Unidos têm-se mostrado empenhados em aprofundar a cooperação entre as respetivas forças armadas, com exercícios conjuntos ao largo da península coreana que Pyongyang encara como provocações e ensaios para aquilo que Kim retrata como uma tentativa de invadir o Norte.

Em simultâneo, a desestabilização provocada pela guerra russa na Ucrânia e os receios alimentados pela atitude crescentemente afirmativa da China em toda a região do Indo-Pacífico levaram os Estados Unidos, a Coreia do Sul e o Japão a reconhecer a necessidade de mais trabalho conjunto na frente militar. E Joe Binden, em pessoa, esteve em Seul e em Tóquio para dizer aos líderes dos dois países que têm de deixar para trás as divergências do passado e trabalhar cada vez mais em conjunto com Washington para aumentarem a capacidade conjunta de defesa coletiva.

Tanto o Japão como a Coreia do Sul reagiram positivamente a este desafio. No seu mais recente relatório anual sobre segurança e defesa, o governo japonês enfatiza a importância de maior colaboração entre Tóquio, Seul e Washington na vertente militar, como única forma de responder às ameaças da Rússia, da China e da Coreia do Norte - que poderá, segundo esse relatório, vir a atacar tanto a Coreia do Sul como o Japão com armas convencionais ou nucleares.

A par deste maior entrosamento com os aliados do Pacífico, o rearmamento da Coreia do Sul visará também prevenir um eventual abandono dos EUA, segundo os investigadores europeus de defesa Ian Bowers e Henrik Stalhane Hiim. Num relatório académico publicado no ano passado, estes especialistas notaram que "o seu efeito dissuasor, por mais incerto que seja, atua como um paliativo de curto prazo se os Estados Unidos abandonarem a Coreia do Sul".

Estas preocupações, em tempos impensáveis, colocaram-se durante a presidência de Donald Trump, que exigiu a Seul que pagasse mais milhares de milhões de dólares para financiar as tropas americanas na península, levantou a perspetiva de as poder retirar caso não houvesse esse aumento de financiamento. (De resto, Trump fez a mesma ameaça à Europa, em relação à NATO.) Os EUA têm cerca de 28.500 tropas na Península da Coreia e mantêm o controlo operacional em tempo de guerra sobre as forças aliadas.

Novo contexto global

A guerra da Ucrânia, ao mesmo tempo que alimenta receios no Indo-Pacífico e justifica uma nova corrida ao armamento, da Austrália ao Japão, da Coreia do Sul à Índia, está a ter outro efeito que poderá justificar o momento escolhido por Kim Jong-un para engrossar a voz. Com a ONU fraturada pela questão ucraniana, uma fratura especialmente visível no Conselho de Segurança, dificilmente os novos ensaios de armas ou as ameaças do líder norte-coreano implicarão novas sanções com o selo das Nações Unidas. 

Isso aconteceu no passado, nomeadamente da última vez que Kim ordenou ensaios nucleares - e essas sanções ainda estão em vigor. Mas a aprovação de mais medidas esbarrará sempre na Rússia e na China, que no atual contexto nunca aceitarão ficar do mesmo lado dos EUA, Reino Unido e França (os outros três membros permanentes do Conselho de Segurança, com direito de veto). 

Como diz o povo, enquanto o pau vai e vem, folgam as costas.

Dificuldades económicas

Mesmo que não seja visado por mais sanções económicas, a Coreia do Norte já enfrenta diversas, que agravaram a situação económica do país. Para além disso, o tradicional isolamento norte-coreano tem-se traduzido em problemas tão básicos como a dificuldade em alimentar a população, subnutrida há muitos anos.

Da última vez que Kim Jong-un deu sinais de boa vontade em relação ao Ocidente - quando suspendeu os ensaios nucleares em 2018 - visava conseguir ganhos económicos nas negociações que então encetou com Donald Trump. Mas nem Trump conseguiu a desnuclearização da Coreia do Norte, nem a Coreia do Norte conseguiu os benefícios económicos que esperava.

Agora, a situação parece singularmente complicada. Para além dos problemas estruturais do país, a Coreia do Norte enfrentou uma seca e a pandemia de covid-19. desde que o vírus surgiu, fechou-se quase completamente ao mundo, e mesmo em relação à China, um dos seus poucos aliados. A Rússia, o outro aliado relevante de Pyongyang, está entretanto a braços com outros problemas, e não está em condições de dar grande apoio ao país de Kim.

Esticar a corda para desbloquear conversações para um programa de ajuda económica pode ser um incentivo para o discurso acalorado de Kim Jong-un. Ele mesmo fez uma referência a isso na quarta-feira à noite, falando perante antigos combatentes da guerra das Coreias. Apontar a ameaça de um inimigo externo também tem o efeito de mobilizar e unir a população norte-coreana.

Kim acusou Washington de duplicidade e de "demonizar" o país para justificar as suas políticas hostis. Segundo ele, os exercícios militares EUA-Coreia do Sul mostram os EUA de "dois pesos e duas medidas" e "semelhantes a gangsters", porque rotulam as atividades militares de rotina da Coreia do Norte - numa aparente referência aos seus testes de mísseis - como provocações ou ameaças. Neste contexto, o líder norte-coreano reconhece que é difícil o reinício das conversações destinadas a desmantelar os programas nucleares e de mísseis do país, em troca do alívio das sanções.

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