Especialistas não entendem lei promulgada por Marcelo. Consequência: famílias impedidas de fazer inseminação post mortem

16 fev 2022, 09:00
Mãe com bebé

Clínicas privadas e centros públicos não sabem como atuar. Há pedidos de famílias que estão suspensos porque há muitas dúvidas sobre a lei - incluindo da entidade responsável por supervisionar a aplicação da legislação

Três meses depois da promulgação por parte do Presidente da República da lei que permite a inseminação post mortem, as clínicas privadas e os centros públicos de medicina de reprodução continuam sem conseguir avançar com os tratamentos. O Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida (CNPMA), a autoridade competente para regular, disciplinar e acompanhar a prática da PMA em Portugal, tem dúvidas quanto à lei e vai pedir esclarecimentos.

“O próprio CNPMA tem dificuldade com a lei”, diz à CNN Portugal Vladimiro Silva, diretor clínico da Ferticento. Em causa, explica, está o termo “inseminação” e as implicações que o seu uso tem nos procedimentos que podem ou não ser aplicados após a morte do homem, mesmo que haja um projeto parental expressamente consentido. 

A 10 de fevereiro, ou seja, três meses depois da promulgação da lei, o CNPMA  “enviou um e-mail a todos os centros de PMA” a informar “que tinha algumas dúvidas legais relativamente à lei e que estava a preparar um requerimento para classificar o detalhe sobre inseminação”, afirma Vladimiro Silva. Para o diretor clínico, este ‘detalhe’ é um entrave à aplicação da lei e, enquanto a clarificação não for feita, pouco ou nada os centros podem fazer. “Estamos a aguardar o esclarecimento.”

Sobre esta questão, também Pedro Xavier, presidente da Sociedade Portuguesa de Medicina da Reprodução, já tinha alertado no mês passado, em declarações à CNN Portugal, que a lei levanta “alguma preocupação sobre questões práticas da introdução deste procedimento na atividade clínica”. “A interpretação da lei é que a técnica permitida é a inseminação intrauterina e, portanto, isso pode criar alguns problemas, nomeadamente em mulheres que, por exemplo, não tenham trompas uterinas a funcionar”, diz Pedro Xavier, explicando que “a inseminação artificial intrauterina não é aplicável nestes casos e isso pode criar aqui alguma dificuldade na aplicação da lei se ela for levada no sentido estrito da publicação, que fala em concreto na inseminação”.

Mas o que está em causa com o uso do termo -“inseminação”? Segundo Vladimiro Silva, “inseminação é uma palavra que pode ser aplicada em técnicas de inseminação intrauterina e não pode ser aplicada em fecundação in vitro”. Na prática, continua, em fertilização in vitro com microinjeção “inseminação não é o termo correto“, mas se em causa estiver um procedimento sem microinjeção tudo “depende da interpretação que se faça”, mas a verdade é que essa liberdade de interpretação nem sequer está presente na lei, esclarece o diretor clinico da Ferticentro.

Quando questionado sobre se vão ser contempladas alternativas para os casos em que a mulher não possa fazer inseminação intrauterina, o CNPMA respondeu por e-mail à CNN Portugal e diz que “está a preparar um pedido de clarificação (interpretação autêntica) à Assembleia da República, pois só o legislador reúne condições para esclarecer esta questão”. O CNPMA não adiantou quando irá enviar esse mesmo pedido de clarificação, no entanto terá de esperar pela entrada em funcionamento da nova Assembleia da República - que apenas se deverá reunir pela primeira vez no final deste mês.

Famílias à espera e outras questões por resolver

Graça Pinto, diretora da Unidade de Medicina da Reprodução da Maternidade Dr. Alfredo da Costa, revelou à CNN Portugal que tem dois pedidos à espera do avanço da lei. Um dos casos é de um homem que faleceu em junho - a companheira quer agora engravidar dele. “A companheira pediu agora para não descongelar o esperma até que a lei saia. Numa carta diz que o médico do senhor iria passar uma declaração.” Sobre o segundo caso, a médica não se adiantou em pormenores.

A Ferticentro, por seu turno, não tem pedidos mas já teve pessoas a procurar informação de como a lei seria colocada em prática. E é aqui que Vladimiro Silva aponta outro aspeto que a lei não esclarece e que pode comprometer o trabalho das clínicas e dos centros. Para o diretor desta clínica de procriação medicamente assistida, não é apenas a dúvida do quão abrangente ou limitador pode ser o termo inseminação nestes casos - diz ainda que há “uma dúvida que tem mais que ver com a aplicabilidade”. 

À CNN Portugal, o CNPMA diz que a lei “prevê a possibilidade de inseminação post mortem com sémen do marido ou do unido de facto quando, antes da entrada em vigor da lei, se verificou a existência de um projeto parental claramente consentido e estabelecido, de forma livre e esclarecida quanto a todos os seus efeitos”. São válidos documentos escritos ou vídeos.

No entanto, Vladimiro Silva diz que, da documentação que as clínicas e centros receberam há cerca de uma semana, essa informação não parece clara. “Do que percebi das indicações do CNPMA, é uma lei com aplicação prospetiva - só a pessoas que a partir de hoje venham falecer e tenham assinado o documento é que se pode aplicar. Não vejo nesta documentação a possibilidade de fazer tratamento quando a pessoa faleceu há mais tempo.”

Para Vladimiro Silva, e perante as dúvidas que ainda existem nesta lei, todos os casos vão ser avaliados individualmente e “o que faremos é pedir a validação do procedimento ao CNPMA” em cada caso, até porque, diz, “não nos atrevemos a fazer sem uma autorização expressa, escrita e clara”.

O que diz a lei que permite a inseminação post mortem

A lei da inseminação post mortem permite que uma mulher engravide após a morte do marido ou unido de facto caso haja um projeto parental expressamente consentido por parte de ambos.

Diz a lei que nos seis meses após a morte do homem - período que pode ser inferior por razões clínicas devidamente atestadas por um médico - pode proceder-se à transferência post mortem de embrião ou à realização de uma inseminação com sémen da pessoa falecida. Em ambos os casos, só pode ocorrer para a concretização de uma única gravidez da qual resulte nascimento completo e com vida. A lei não menciona outras técnicas alternativas.

"Os procedimentos devem iniciar-se no prazo máximo de três anos contados da morte do marido ou unido de facto, podendo realizar -se um número máximo de tentativas idêntico ao que está fixado para os centros público", lê-se na lei. Durante todo o processo, seja na ponderação do recurso a esta técnica ou já durante o tratamento, o acompanhamento psicológico deve ficar assegurado.

A lei que permite o recurso a técnicas de procriação medicamente assistida (PMA) através da inseminação com sémen após a morte do dador foi publicado a 12 de novembro de 2021 em Diário da República (DR), sendo para tal necessário um projeto parental expressamente consentido. A lei n.º 72/2021 veio alterar a Lei n.º 32/2006 de 26 de julho.

O tema da procriação medicamente assistida post mortem esteve em discussão no dia 21 de janeiro, data em que o CNPMA se reuniu mas a ata ainda não foi publicada no site.

País

Mais País

Patrocinados