Cancro nas mulheres. "Agenda feminista" permitiria eliminar milhares de mortes. O género também é fator de risco nas doenças oncológicas?

5 out 2023, 22:00
Rastreio do cancro da mama (Foto: Alain Denantes/Gamma-Rapho via Getty Images)

Comissão da prestigiada revista The Lancet defende que é preciso abordagem feminina para salvar mais vidas de mulheres que sofrem de cancro. Especialistas portugueses admitem utilidade das sugestões, mas pedem cautela com a argumentação

É necessária uma "agenda feminista" para tratar o cancro. A conclusão é de um relatório da comissão da revista Lancet "Mulheres, Poder e Cancro", que juntou uma equipa multidisciplinar para analisar de que forma os vieses da sociedade patriarcal ainda prejudicam o tratamento e prevenção dos cancros nas mulheres. 

Especialistas em estudos de géneros, direitos humanos, ciências sociais, epidemiologia, prevenção e tratamento e até ativistas juntaram-se neste painel para perceber como as mulheres, em todo o mundo, passam pelo cancro, sejam elas as afetadas pela doença ou os que lhes são mais próximos. E os resultados foram divulgados na semana passada, num relatório da comissão e ainda num artigo sobre a mortalidade por cancro publicado na revista Lancet Global Health.

"O impacto da sociedade patriarcal nas experiências das mulheres com o cancro tem passado largamente não reconhecido", defende o sumário executivo do relatório da comissão, que é liderada por personalidades como Ophira Ginsburg, consultora sénior de investigação médica do National Cancer Institute’s Centre for Global Health, dos Estados Unidos, ou Isabelle Soerjomataram, investigadora da International Agency for Research on Cancer (IARC), agência da Organização Mundial de Saúde para investigação das doenças oncológicas. 

"Globalmente, a saúde da mulher é frequentemente focada na saúde materna e reprodutiva, alinhada com definições limitadas anti-feministas do valor da mulher e dos papéis na sociedade, enquanto o cancro permanece completamente sub-representado", acrescenta o documento.  

O trabalho da comissão da Lancet destaca que as desigualdades de género têm um impacto significativo nas experiências das mulheres com o cancro, seja enquanto doentes, cuidadores ou até investigadoras e profissionais de saúde na área da oncologia: "Precisamos que o cancro seja visto como uma matéria de prioridade na saúde da mulher e pedimos a introdução imediata de uma abordagem feminista ao cancro", lê-se no relatório. 

Esta abordagem feminista, defende o artigo, permitiria que se eliminassem milhares de mortes desnecessárias: a Lancet estima que 800 mil mulheres morram de cancro a cada ano, em todo o mundo, porque lhes são negados os cuidados de saúde considerados ideais.

"Em muitos países, independentemente da região geográfica ou dos recursos económicos, as mulheres são mais propensas do que os homens a não terem o conhecimento e o poder de tomar decisões informadas em matéria de cuidados de saúde", defendem os especialistas.  "As mulheres experimentam preconceitos de género e estão sujeitas a formas sobrepostas de discriminação, tais como devido à idade, raça, etnia, estatuto socioeconómico, orientação sexual e identidade de género, que as tornam estruturalmente marginalizadas", argumenta a comissão.

Relatórios "bem intencionados" mas pouco sustentados?

"Se aumentarmos a prevenção e o rastreio conseguimos reverter muitas mortes por cancro, e isso acontece independentemente do género. É uma verdade absoluta global", diz Carlos Carvalho, diretor da Unidade de Cancro Digestivo da Fundação Champalimaud, à CNN Portugal. "Quando falamos nestas 800 mil vidas, este número, por si só, não reflete uma desigualdade na abordagem, reflete o que poderíamos ganhar se fizéssemos as coisas melhor", comenta, pedindo "cautela" com a interpretação dos números avançados pela Lancet. 

"Não há nenhuma dúvida na minha cabeça de que existem desigualdades de género, ninguém discute isso, e que essas desigualdades têm impacto na nossa vida, impactos globais na sociedade, económicos. E terão impactos, diretos ou indiretos, no cancro", diz ainda. "Os grupos mais vulneráveis, como as mulheres, são mais fragilizados e têm piores resultados em relação ao cancro como terão em relação ao enfarte do miocárdio ou ao acidente vascular cerebral", declara Carlos Carvalho.

O oncologista pega num número concreto referido no artigo que aborda a mortalidade feminina por cancro: nos EUA, só 30% das mulheres têm acesso a ensaios clínicos para tratamento do cancro do pulmão. "Mas este número só tem valor se soubermos qual é a incidência do cancro do pulmão nas mulheres e nos homens, para perceber que base da população deve entrar, proporcionalmente, nos ensaios clínicos. E isso não é referido. Mas eu fui ver e, globalmente, nos EUA, a proporção de mulheres com cancro do pulmão é precisamente de 30%", explica. "Temos de analisar  com cuidado os números mesmo nos relatórios bem intencionados", conclui.

Para Carlos Carvalho, seria interessante perceber, por exemplo, em termos de rastreios e deteção prematura dos cancros, qual dos sexos regista maior adesão aos atos médicos de prevenção. "No cancro colorretal, os relatórios oficiais que temos em Portugal, por exemplo, não diferenciam a adesão por sexo", explica.

O oncologista da Fundação Champalimaud admite, porém, que as recomendações da comissão da Lancet poderão ser "úteis em termos globais", até porque "se melhorássemos os meios de rastreio e prevenção poupávamos muitas vidas, não só de mulheres mas também de homens", assinala. 

"Há questões referidas neste relatório que são muito relevantes em termos da mudança de hábitos de vida das mulheres, um custo que elas tiveram de pagar, digamos. Como aconteceu nos anos 60 e 70, em que tivemos epidemias de doenças associadas ao tabaco nas mulheres, quando começaram mais mulheres a fumar", refere o especialista. "Somando ainda os exemplos da mulher sobrecarregada, com menos disponibilidade para procurar cuidados de saúde, claro que focar isso de forma genérica tem impacto, ninguém pode dizer que não aconteça", reflete. "É uma questão seguramente real, mas vejo-a aqui argumentada com dados numéricos com algumas lacunas", admite Carlos Carvalho. 

No estudo da Lancet sobre mortalidade do cancro chegou-se à conclusão de que, em 2020, 1,5 milhões de mortes prematuras de mulheres com menos de 70 anos, provocadas por doença oncológica, poderiam ter sido evitadas se as doentes não tivessem sido expostas a fatores de risco ou se tivesse havido deteção e diagnóstico atempados. 

Em resumo, a pesquisa estima que cerca de 800 mil vidas de mulheres entre os 30 e os 69 anos podiam ter sido salvas, por ano, se todas tivessem tido acesso a bons cuidados de saúde. E dados relativos a 2020 indicam ainda que cerca de 1,3 milhões de mulheres, de todas as idades, morreram devido a quatro grandes fatores de risco para cancro: tabaco, álcool, obesidade e infeções. Mas o peso do cancro que é causado nas mulheres por estes fatores de risco, diz o estudo, é "largamente subestimado" e pouco estudado, ao contrário do que acontece com a população masculina.

O domínio do patriarcado

Isabelle Soerjomataram, da comissão da Lancet sobre mulheres e cancro, defende que as discussões sobre doença oncológica nas mulheres se focam sobretudo nos "cancros femininos", como o cancro da mama ou cancro do colo do útero. "Mas cerca de 300 mil mulheres com menos de 70 anos morrem a cada ano de cancro do pulmão, e 160 mil de cancro colorretal, duas das três principais causas de morte por cancro entre as mulheres, a nível global", refere, citada pelo Guardian.

Segundo a Lancet, dos três milhões de adultos que foram diagnosticados com cancro em 2020, e que tinham menos de 50 anos, dois em cada três eram mulheres. Neste mesmo ano, cerca de um milhão de crianças ficaram órfãs devido a doenças oncológicas da mãe. Perante os dados, a comissão da Lancet sugere que as questões ligadas ao género sejam incluídas em todas as políticas de saúde relacionadas com o cancro, pedindo igualmente estratégias para que as mulheres sejam sensibilizadas quanto aos fatores de risco do cancro e seus sintomas, e que tenham acesso a deteção e diagnóstico precoces dos vários tipos de cancro. 

O sumário do relatório da comissão refere mesmo que o patriarcado domina o tratamento do cancro, a investigação e as políticas implementadas. "Aqueles que ocupam posições de poder decidem que aspetos dessas áreas são priorizados, financiados e estudados", acusa a comissão da Lancet. Mas Ana Varges Gomes, oncologista, investigadora e presidente do Conselho de Administração do Centro Hospitalar Universitário do Algarve, não se revê nestas críticas. "Li o artigo mas não me revejo nele", diz à CNN Portugal. "Não entendo que em Portugal e na maioria dos países desenvolvidos seja assim", garante. 

A oncologista diz mesmo que as mulheres vão muito mais ao médico de forma preventiva, cumprem os rastreios e fazem as medicações indicadas. "Em Portugal, são elas que garantem que os homens cumprem os tratamentos e vão ao médico", acrescenta. 

Em relação aos oncologistas, "a maioria são mulheres e por isso não acho que sejam diferentes", explica. "Eu nunca me senti 'diminuída' por ser mulher, nem prejudicada", assegura a especialista.

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