47ºC em Villarrobledo; 48,8ºC na Sicília; 53,3ºC no Vale da Morte. “Estamos a entrar em território desconhecido” (mas Portugal está a ser “poupado”)

18 jul 2023, 13:32

A temperatura está a atingir valores sem precedentes. Há espécies que “não terão capacidade de resistência”. E em várias regiões do planeta “será insuportável a vida e a produção alimentar”

China, Itália, Grécia, Espanha, Estados Unidos. O que têm em comum estes países? Estão a atravessar ondas de calor sem precedentes e a bater recordes de temperatura que preocupam os especialistas.

Aqui ao lado, o calor voltou a sufocar Espanha esta segunda-feira, com temperaturas de 47 graus em Villarrobledo, no Sul do país, próximas do recorde absoluto no país (47,6), registado a 14 de agosto de 2021, na cidade andaluza de La Rambla, e "anormalmente altas" para a época do ano, observou a agência espanhola de meteorologia (Aemet). A Sicília acaba de chegar aos 48,8ºC, o que faz deste o registo mais alto de sempre na Europa (superou os 48ºC registados em em 1977 em Atenas). Nos Estados Unidos, no chamado Vale da Morte, conhecido por ser o local  mais quente do mundo, a temperatura chegou aos 53,3ºC

“As temperaturas estão a bater recordes em vários sítios do mundo. É um alerta a que devíamos estar atentos. Estamos a entrar em território desconhecido porque não sabemos bem as consequências disto. O mundo está a aquecer e a culpa é nossa. É a mudança climática a mostrar-se e a acelerar-se”, defende Pedro Miranda, professor de Meteorologia da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa.

Helena Freitas, especialista em Biodiversidade, corrobora o alerta do meteorologista. Na antena da CNN Portugal, a investigadora constata: “Todos percebemos que há uma alteração profunda nas condições de habitabilidade do planeta, designadamente das alterações climáticas e do aquecimento do planeta. Temos, em muitas geografias, alterações profundas das temperaturas”.

Portugal poupado… pelo menos por enquanto

As ondas de calor verificam-se quando temos seis ou mais dias com temperaturas acima do percentil 90 em determinado local. “A temperatura que dá onda de calor em Lisboa não é a mesma de Londres”, exemplifica Pedro Miranda.

Para já, Portugal está a ser “poupado” a estas temperaturas extremas. “Este ano, o calor deve ir para a Europa Meridional e para toda aquela zona dos Estados Unidos, do Winsconsin e afins”, prevê o climatologista Mário Marques, CEO e cofundador da empresa PlanoClima.

O especialista lembra que Portugal viveu uma onda de calor invulgar em 2003, altura em que, por exemplo, as Berlengas atingiram temperaturas na ordem dos 47 graus. Mas “nos últimos anos temos sido poupados”. “Este ano temos um verão completamente normal. Estamos até a ter um julho mais ameno do que o habitual.”

Pedro Miranda concorda mas tem, ainda assim, um discurso mais cauteloso: “Não estamos ainda na onda de calor que se vive na Europa Central. Mas não sabemos por quanto tempo”. E lembra que, ainda em 2017, Portugal viveu um verão quente com muito vento, que deu origem e alimentou os incêndios de julho em Pedrógão Grande e de outubro na zona Centro, que mataram dezenas de pessoas.

Os invernos são mais preocupantes

O preocupante fenómeno do degelo

Mário Marques considera que o calor e as altas temperaturas até podem estar a ser objeto de uma medição abaixo dos reais valores. O especialista explica que “o hemisfério norte está a aquecer muito mas também tem mais estações meteorológicas do que no hemisfério sul”. Assim, a dimensão do problema pode estar a ser subavaliada em algumas zonas do planeta.

“Cada vez há menos dias com neves, que alimentam muitos cursos de água por esse mundo fora. Há cada vez menos gelo e cada vez mais gelos menos espessos, que não refletem os raios ultravioleta. Consequentemente, o calor é absorvido pelos solos e gera-se um círculo vicioso”, nota.

O aquecimento global é, na verdade, a principal causa apontada pelos especialistas para estas ondas de calor, cada vez mais frequentes e cada vez mais extensas. E Mário Marques sublinha que “o que nos devia preocupar era o aumento de temperatura nos meses de outono e de inverno, desde outubro a março”. Os invernos mais amenos são mais preocupantes, considera o especialista, precisamente por causa da falta de chuva e sobretudo da falta de chuva em forma de neve. “É um problema que tende a agravar-se e não a diminuir.”

A acrescer ao aquecimento global, lembra Pedro Miranda, este ano estamos a viver um fenómeno meteorológico que é cíclico e “conhecido desde que os espanhóis chegaram às Américas”, que pode ajudar a explicar as temperaturas que se vivem em várias regiões da Terra.

“Este ano temos o El Niño, que aquece a superfície do Pacífico e tem impacto sobre o resto do mundo. O El Niño dura cerca de um ano e deve prolongar-se até 2024. Não se sabe ainda se vai ser moderado ou intenso. Só se vai saber lá mais para o fim do ano. Se for intenso é provável que estas altas temperaturas se repitam e se acentuem”, explica o especialista em meteorologia.  

“Aquele grau e meio do acordo de Paris, muito provavelmente, vai ser excedido. Depois, é provavelmente que baixe um bocadinho. Mas serão décimas. Pequenas flutuações”, acrescenta, sublinhando que o aquecimento global está em curso e o caminho inverso é muito difícil de travar.

 

 

Há espécies que “não terão capacidade de resistência”

O impacto deste aumento de temperaturas generalizado pode ser imprevisível. Sabe-se, desde logo, que a mortalidade deve aumentar. “As altas temperaturas são uma causa de morte muito importante. Se tivermos estas ondas de calor com muita frequência em zonas habitadas, vamos ter uma taxa de mortalidade elevada e isso só se pode verificar no fim da estação. Existem limiares de sobrevivência. Ainda não estamos lá, mas caminhamos para lá” alerta Pedro Miranda.

Como explica o especialista, o limiar de sobrevivência “depende da combinação de temperatura e humidade”. “O calor húmido é pior do que o calor seco. O nosso corpo precisa de perder calor. E uma das formas de perdermos calor é pela transpiração. Para transpirarmos o ar não pode estar saturado”, explica o meteorologista.

Helena Freitas lembra que “as pessoas mais idosas e as crianças com uma saúde mais frágil estão mais suscetíveis”. Mas a especialista em Biodiversidade sublinha que o impacto será enorme nas espécies animais e vegetais: “As espécies não têm na sua biologia prevista esta intensidade e este calor extremo com tanta frequência. Vamos ter as espécies animais e vegetais a serem obrigadas a adaptar-se, a emigrar e a procurar refúgios para a sua sobrevivência. E outas não terão mesmo capacidade de resistência”.

Pedro Miranda regressa à preocupação com os incêndios. O professor de Meteorologia sublinha que, “em Portugal, a primeira preocupação que nós temos é o fogo”. “Temos um risco de incêndio florestal muito grande. Se houver uma onda de calor muito forte e muito vento, estão criadas as condições ideais para estabelecimento de incêndios.”

Qualquer zona do mundo está sujeita a viver ondas de calor e “o impacto depende muito da vulnerabilidade das zonas de que estamos a falar”. O meteorologista lembra que os “países com menos resiliência, com estruturas menos organizadas em termos de proteção civil”, estão mais suscetíveis aos impactos do aquecimento global e das ondas de calor e dá como exemplo “os países africanos, que são os mais vulneráveis”.

Como travar isto

Os especialistas são unânimes: “Vamos ter algures de parar o aquecimento global. Senão isto não tem fim. E, se o quisermos fazer, temos de deixar de queimar gazes de estufa e parar o desflorestamento”.

Mas Pedro Miranda alerta que estas ações só têm impacto se forem tomadas a nível global. De pouco adianta cada país ou cada comunidade, isoladamente, tomar medidas se elas não forem replicadas nos outros pontos do globo.

Para já, o conselho é habituarmo-nos e “adaptarmo-nos a um mundo mais quente”. E isso passa, por exemplo, por reduzir o consumo de água, fazê-lo de forma mais consciente e cultivar o armazenamento de água de uma forma mais eficiente.

“Toda a nossa vida e a nossa economia vai ter de se ajustar a estas alterações do clima de uma forma muito rápida. Em várias regiões do planeta será insuportável a vida e a produção alimentar”, sublinha Helena Freitas. “Na verdade, sabemos o que devemos fazer - precisamos urgentemente de fazer a transição energética. Deixar para trás os combustíveis fósseis e optar rapidamente por outras soluções energéticas”.

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