Opinião: “Estes ataques foram o arranque de uma tentativa de golpe de Estado no Brasil”

CNN , Arick Wierson
10 jan 2023, 13:28
Bolsonaristas invadem as sedes dos três poderes em Brasília (Foto: André Borges/EPA)

Lula tem de concentrar-se em restabelecer o Estado de direito; reafirmar a dedicação do país às instituições militares, policiais e civis; e revitalizar a crença dos brasileiros na democracia.

Nota do editor: Arick Wierson é um produtor de televisão vencedor do Prémio Emmy e ex-assessor de comunicação do antigo presidente da Câmara de Nova Iorque Michael Bloomberg. Wierson tem um mestrado em economia pela Universidade Estadual de Campinas, no estado de São Paulo. Trabalha com o país há quase 30 anos, aconselhando clientes empresariais e políticos sobre estratégias de comunicação. Acompanhe-o em @ArickWierson.

 

Um ataque espantoso à democracia no Brasil

Era suposto ser um domingo de preguiça para a minha família - estávamos a desfrutar de caipirinhas e outras iguarias tradicionais brasileiras durante o nosso último dia no país, depois três semanas de férias.

Depois, chegou a notícia de que milhares de apoiantes do ex-presidente Jair Bolsonaro tinham invadido as sedes de todos os ramos do governo federal na capital, Brasília, vandalizando os edifícios da Praça dos Três Poderes - Congresso, Supremo Tribunal e palácio presidencial.

A invasão destes edifícios-chave do governo, que misteriosamente espelha o ataque de 6 de Janeiro de 2021 contra o Capitólio dos EUA, seguiu-se a dois meses de protestos em todo o país por apoiantes de Bolsonaro. Sem provas, alegam que as eleições de outubro – quando Luiz Inácio “Lula” da Silva derrotou Bolsonaro por pouco - foram manipuladas ou roubadas. Apesar de uma disputa apertada, Lula da Silva ainda venceu por mais de dois milhões de votos.

O espantoso ataque de domingo chega uma semana depois de Lula da Silva ter tomado posse. Bolsonaro escapou aos protocolos tradicionais da transferência de poder e, em vez disso, optou por viajar para os Estados Unidos, no meio de potenciais investigações criminais ao seu tempo enquanto presidente.

Aproveitando o que o novo presidente chamou “o silêncio de um domingo”, o objetivo estratégico dos aliados de Bolsonaro não podia ser mais claro: desestabilizar a maior democracia da América Latina.

O ato de abertura de uma tentativa de golpe de Estado

Muitos analistas políticos brasileiros já estão a especular que os intrusos visavam não só invadir a sede do governo do país, mas também encenar uma ocupação prolongada de edifícios-chave. Fazê-lo impediria o governo de Lula da Silva de funcionar eficazmente, na esperança de que forças pró-Bolsonaro no seio das forças militares e policiais pudessem intervir, criando as condições necessárias para que Bolsonaro regressasse ao Brasil e tomasse o poder.

Não há forma de dar cobertura ao que aconteceu no domingo - estes ataques foram o ato de abertura de uma tentativa de golpe de Estado.

Lula da Silva, que viajava no estado de São Paulo na altura dos ataques, deu uma conferência de imprensa improvisada e fez uma denúncia severa da invasão, criticando Bolsonaro e os seus apoiantes, e enfatizando que todos os vândalos responsáveis serão investigados e processados.

Lula colocou a culpa do ataque aos pés do seu predecessor. Falou de uma violência “sem precedentes” na história do Brasil e disse que uma investigação de fundo apuraria não só de quem participou mas também de quem financiou e apoiou estes “bolsonaristas”, como são referidos.

Ecos do 6 de janeiro

Tal como a dinâmica política nos EUA levou então à insurreição de 6 de Janeiro, os acontecimentos em Brasília são o último capítulo das divisões em curso de um país profundamente polarizado.

A vitória de Lula da Silva em outubro constitui uma forte reprimenda a Bolsonaro e à “MAGA tropical” [MAGA: abreviatura de Make America Great Again, lema de Trump] chamada "Bolsonarismo". Tal como o antigo Presidente dos EUA Donald Trump, Bolsonaro teve um mandato espinhoso e cheio de controvérsias, especialmente quanto à sua forma de lidar com a Covid-19. (O Brasil sofreu quase 700 mikl mortes na pandemia, de acordo com a Organização Mundial de Saúde).

A agenda anti-LGBTQ de Bolsonaro, as fracas políticas ambientais e as tendências autocráticas fizeram dele uma espécie de pária na esquerda do país, e valeram-lhe o epíteto de "Trump dos Trópicos".

Mas Lula da Silva, agora no seu terceiro mandato como presidente, é de certa forma uma figura igualmente controversa e polarizadora. Tendo cumprido dois mandatos de 2003 a 2011, fez um notável regresso político com a sua vitória em 2022. Apenas alguns anos antes de procurar novamente a presidência, estava a cumprir uma pena de prisão pelo seu papel no maior escândalo de corrupção do Brasil, a Operação Lavajato.

O sistema judicial brasileiro anulou, no entanto, a sua condenação em 2021, liberando-o para voltar a candidatar-se. Muitos à esquerda viram Lula da Silva como o antídoto perfeito para Bolsonaro e para a viragem para a direita dura para a qual ele tinha conduzido o país.

Bolsonaro não reconheceu a sua derrota de 30 de outubro, mas deu uma série de sinais indicando que não estava a planear fazer um desafio agressivo ao resultado das eleições - movimento que enfureceu muitos dos seus apoiantes, ao mesmo tempo que lhes dava esperança de que um plano maior para retomar o poder estivesse em marcha.

Durante semanas, até à tomada de posse de 1 de janeiro, elementos pró-Bolsonaro acamparam em Brasília, e houve mesmo uma detenção no mês passado num plano suspeito de bombardeamento para perturbar a tomada de posse de Lula da Silva. Mas a transferência de poder foi feita sem problemas no novo ano.

Para onde vai Lula a partir daqui

Como milhões de brasileiros neste país de quase 220 milhões, tenho estado colado aos meios de comunicação locais, assistindo a um evento que é igualmente assustador, senão mais, do que o ataque de 6 de Janeiro ao Capitólio dos EUA.

Poucas horas depois deste acontecimento histórico bastaram para saber que os livros de história o irão registar como o ataque mais significativo à maior democracia da América Latina desde que o Brasil regressou às eleições democráticas, no final dos anos 80.

A forma como Lula da Silva vai lidar com este ataque à democracia será a marca distintiva do seu terceiro mandato. Ele foi eleito para desfazer muitas das políticas de extrema-direita do governo Bolsonaro, reinserir o Brasil na ordem económica global internacional e, como “gestor” da floresta tropical amazónica e de uma das maiores massas de terra do mundo, reposicionar o país na vanguarda da ameaça existencial do planeta colocada pelas alterações climáticas.

Lula terá ainda de abordar todas essas questões, mas agora também concentrar-se noutros desafios muito mais prementes: restabelecer o Estado de direito; reafirmar a dedicação do país às instituições militares, policiais e civis; e revitalizar a crença dos brasileiros na democracia.

A sua presidência tem pouco mais de uma semana, mas agora tem de enfrentar rapidamente uma ameaça real e contínua à democracia.

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