“Cada fato que faço, sinto que estou a vestir o Luís António”. Ângela cria roupa para prematuros, para que outros pais não passem pelo mesmo: não ter o que vestir aos filhos no funeral

22 jul 2023, 08:00

Ângela e Luís perderam o filho prematuro. Na hora de preparar o funeral, sugeriram-lhes que vestissem o bebé com roupas compradas numa loja de brinquedos, que ainda assim ficariam grandes. Foram precisos dois anos para esta mãe perceber como podia transformar o luto em força, para ultrapassar a mágoa de não ter o que vestir ao filho na hora mais difícil. Hoje cria fatos, botas e gorros, que doa a maternidades. Esta família quer inspirar outros a fazer o mesmo onde moram. E pede aos hospitais de todo o país que os contactem, para que façam chegar o seu trabalho “à pessoa certa”

Quando Ângela Borges, 49 anos, comprou a máquina de costura, para desenrascar bainhas nos tempos de emigrante em Londres, nunca imaginou que ela pudesse vir a ter tanto uso. Tudo mudou “quando isto aconteceu”.

“Isto” é a morte de Luís António, o filho que nasceu às 24 semanas. Viveu durante seis dias, mas tornou Ângela e o marido, Luís Melo, de 44 anos, pais para sempre. Foi muito desejado, após múltiplas tentativas de gravidez que foram falhando.

A máquina de costura fica no centro do quarto que tinham preparado para Luís António. E o som das linhas a cravarem-se no tecido ouve-se todos os dias, por três ou quatro horas. Fazer roupas para bebés prematuros é o momento de terapia de Ângela.

“Cada fato que faço, sinto que estou a vestir o Luís António. Cada gorro, cada sapato”. Ângela “alivia” a própria dor, pensando que pode estar a atenuar o sofrimento de outra família que vai passar pelo mesmo que ela: a morte de um bebé prematuro.

Porque Ângela e Luís, na hora da morte do filho, não tinham o que lhe vestir. Era demasiado pequeno para qualquer roupa para prematuros que houvesse no mercado – essas, diz esta engenheira florestal, são para os bebés que estão mais perto do fim de ciclo.

Na maternidade, chegaram a sugerir que fossem a uma loja de brinquedos, que comprassem “roupas para nenucos”, mas avisando que “ainda assim seria grande”. Ainda tentaram fazer essa compra, mas nada daquilo lhes fazia sentido. Não lhes dignificava a perda. “Não é concebível ter de se ir a uma loja de brinquedos ter de comprar uma roupa para se vestir um filho. Não é concebível”.

“Não quero que os outros pais passem pelo sofrimento de verem as horas a passar e não saberem o que é que o filho vai ter para vestir no funeral”, conta à CNN Portugal. A ideia ficou a remoer por muito tempo. Mas foi só quando o segundo aniversário de Luís António se aproximava que Ângela conseguiu ter “a força” necessária para avançar. “Cada dia que passava, havia um pai ou uma mãe que eu não estava a conseguir ajudar”.

A 5 de maio, no dia que será sempre do filho, o casal entregava os primeiros fatos, gorros e botas para prematuros na Maternidade Dr. Bissaya Barreto, em Coimbra. Desde aí, a máquina de costura nunca mais parou. E Ângela, mesmo sendo a única na divisão, nunca está sozinha. “Eu sinto que ele está sempre ao pé de mim”.

Luís António despediu-se dos pais embalado numa manta, que a avó tricotou durante toda a noite, na véspera do funeral. Mas agora tem um guarda-roupa como ninguém. “Ele tem muitos fatos. Todos os que faço, onde ele estiver, tem-nos provado todos. Todos passaram por ele”, orgulha-se a mãe.

Ângela e Luís foram pais de Luís António a 5 de maio de 2021

Uma roupa para cada momento

Os fatos, gorros e botas que Ângela e Luís têm doado a unidades de saúde perto da sua casa, na Figueira da Foz, podem ter diferentes usos.

O casal embala, em pequenas bolsas de plástico, conjuntos que têm um fato, um gorro, um par de botas e uma manta. Por fora, escrevem os tamanhos, para que tudo seja mais fácil na hora de maior aflição. Estes “kits” servem para os bebés prematuros que não sobrevivem.

Há depois outros “kits”, apenas com gorro e botas, para os bebés que estão na incubadora. Enquanto estão nas “casinhas de vidro”, os prematuros não precisam de roupa. Mas, à medida que vão crescendo e ficando fortes, começam a ter momentos de contacto pele a pele com os pais. É nesses momentos que a doação do casal faz toda a diferença, protegendo as extremidades.

Ângela cria ainda gorros que, sobrevivendo o bebé ou não, são entregues aos pais como memória daquele momento. “A minha ideia é a de criar uma recordação, ligada a algo material, que se possa agarrar, que nós, no nosso caso, não temos”, explica.

“E se os prematuros sobreviverem, que espero que sejam muitos, que um dia mais tarde, quando forem grandinhos, possam ter noção do quão pequeninos eram. E saberem que este era o seu primeiro gorrinho. Que não tiveram uma primeira roupinha, como todos os bebés de fim de ciclo têm”, completa.

É considerado um bebé prematuro aquele que nasce antes das 37 semanas. Em Portugal, dos 79.795 bebés nascidos em 2021, 5997 eram prematuros. São 7,5% do total – ou 16 a cada dia.

Segundo dados cedidos à CNN Portugal pela Sociedade Portuguesa de Neonatologia, os prematuros representam mais de metade das mortes de bebés nos primeiros 28 dias de vida. No país, por ano, morrem cerca de 140 bebés neste período neonatal. Em 2021, foram 135.

Cada fato leva cerca de hora e meia a ser feito

Um centímetro gigante

Num bebé prematuro, cada centímetro faz a diferença. E Ângela Borges aprendeu isso mal começou a costurar e tricotar. Os fatos têm diferentes tamanhos, conforme o grau de prematuridade. Mas há referências: para o corpo 15 centímetros, para braços e pernas 10 a 12 centímetros, para a cabeça 9 a 12 centímetros de diâmetro.

“Quando comecei a fazer, baseei-me numa fotografia que tenho do Luís António ao pé do termómetro. O termómetro é o tamanho do corpo. Agarrei o meu termómetro e media 12 centímetros. Então achava que ao fazer um fatinho com 13 ou 14 centímetros já servia. Mas depois disseram-me que houve um fatinho que não tinha servido. Pedi a medida do termómetro da maternidade. E o deles tem 13 centímetros. Em criaturas tão pequenas, um centímetro é gigante”, explica.

Tentativa e erro. E muita dedicação. Cada peça demora, em média, uma hora e meia a ser feita. Depois há o restante ritual: colocar as molas, lavar, passar a ferro, embalar. Para que tudo esteja o mais preparado possível para o momento que ninguém quer preparar: a morte de um filho. “O que eu peço é que deem aos pais a hipótese de escolher, que não lhes imponham uma roupa”. Apesar das opções em todas as cores e padrões, os tons brancos tendem a ser os mais escolhidos.

Em cada fato que faz, Ângela procura ter uma versão parecida. É que, entre os prematuros, também há gémeos.

Fotografia de Luís António serviu de referência para os primeiros fatos

Um exemplo que quer chegar a outros

O projeto de Ângela Borges seria praticamente desconhecido se o marido, Luís Melo, gestor de profissão, não o tivesse partilhado no Twitter. A publicação rapidamente se tornou viral. Chegaram, pelo ecrã, muitas outras histórias de perdas como a deles – e, sobretudo, a vontade de ajudar. “Muitos disseram que o funeral foi feito com roupas grandes demais”, resume.

“O objetivo era despertar consciências para algo que não passa pela cabeça de ninguém. Não passa pela cabeça de ninguém pensar o que é que um bebé prematuro leva vestido para o funeral. Dá-nos um pouco de alegria saber que podemos contribuir para que outros casais ou outros pais não passem pela mesma dor e pela mesma experiência”, aponta Luís.

O casal desafia outros, tenham ou não passado pela perda de um filho, a começar iniciativas semelhantes e a entregar essas peças nos hospitais e maternidades que fiquem mais próximos das suas áreas de residência. Há instituições, como lares de idosos, que já têm essa prática. Mas toda a ajuda é bem-vinda.

A casa de ambos está cheia de peças para bebés prematuros. O luto ainda existe, talvez nunca seja superado. Contudo, Luís rejeita que essas roupas em miniatura, sempre à vista, sejam uma dor mal resolvida. “Meses após o meu filho nascer, publiquei um texto em que dizia que aquele era o momento de parar de esconder, de parar de fugir à dor. E que nós deveríamos falar pelo que passámos, e falar do nosso filho todos os dias, se fosse preciso, com toda a gente”, recorda.

O casal gostava de fazer chegar as roupas que faz a outras maternidades do país. E pede aos responsáveis dos serviços hospitalares para que os contactem. Querem “chegar à pessoa certa”, para garantir que todo o esforço chega a quem precisa dele - as famílias dos bebés prematuros que morrem – e não se perca. “Não sabendo a quem as coisas foram entregues, quem faz esse acompanhamento, não fico descansada”, confessa Ângela.

Ângela passa várias horas por dia dedicada a este projeto

Sugestão: um espaço para a despedida

Ângela e Luís fazem a sua parte. No entanto, há respostas no apoio às famílias que perderam bebés prematuros que não estão nas suas mãos. Das equipas que os acompanharam, dizem, receberam todo o apoio. Mas há coisas que, apesar de toda a boa vontade, têm de ser os decisores a assumir.

“Seria um espaço para que os pais, como nós, pudessem pegar no filho pela primeira vez e pela última vez. A nós aconteceu-nos isso num espaço que mais parecia um arrumo. Ter um espaço onde se possa dar a notícia e ter esse contacto é importante. Depois é o acompanhamento do luto dos pais por um psicólogo, o que aconteceu no nosso caso”, resume Luís.

"Kits" são embalados, com referência dos tamanhos

O toque

Durante seis dias, Ângela quis muito tocar no filho. Nunca a deixaram, era demasiado frágil. O primeiro toque só aconteceu depois da notícia que ninguém queria ouvir. Ângela e Luís só souberam da morte na manhã seguinte.

“É o agarrar aquela coisa tão pequenina, que cabe aqui, na mão, assim. Mas fria. Gelada. É muito...  Eu queria dizer que foi muito bom, mas ao mesmo tempo, é de gelar o coração”, descreve a mãe.

O pai não queria pegar. Contudo, a enfermeira acabou por forçar o momento. Ainda hoje Luís agradece esse gesto. Ou ter-se-ia arrependido para sempre.

Relacionados

Família

Mais Família

Patrocinados