“Fomos assombrados pela infertilidade”. Ser mãe através da ciência é uma luta onde só se começa “a pensar no enxoval aos sete meses”

9 set 2023, 08:00

Este sábado, 9 de setembro, assinala-se o Dia Nacional da Natalidade. Há muitas formas de se ser mãe. E, para muitas famílias, é na ciência que depositam toda a esperança de cumprir este sonho. Carlota e Laura são duas bebés nascidas em Portugal com recurso à Procriação Medicamente Assistida. Como elas, há cada vez mais. Num caminho que está repleto de obstáculos e duras perdas

Carlota sobe com agilidade. Pelos degraus de corda, até ao topo do escorrega. Cá em baixo, a mãe, Marta Silva, espera-a de braços abertos. Sempre de braços abertos para o seu maior milagre.

A história desta família é como a de tantas outras que, no silêncio, viveram “assombrados” com um fantasma chamado infertilidade, que lhes entrou em casa sem aviso ou pedir licença, para tornar o sonho numa autêntica corrida de obstáculos.

“Conhecemo-nos e casámos, começámos a ter aquela expectativa de sermos pais, era um desejo muito grande dos dois e fomos assombrados pela infertilidade”, recorda Marta Silva, hoje com 37 anos.

Nos tratamentos de fertilidade, o tempo nunca é só o tempo. “É o nosso maior inimigo”. Marta e o marido, Frederico Leandro, hoje com 39 anos, tentaram engravidar durante um ano. Sem resultados, procuraram ajuda médica. Em 2014 iniciaram os tratamentos. Só em 2017 é que chegou a boa notícia: Marta estava grávida.

A gravidez não foi tempo de graça, de alívio, de respirar fundo. Antes pelo contrário. Depois de várias perdas e muito investimento emocional e financeiro (de milhares e milhares de euros), aprende-se a esperar sempre o pior. E arranjam-se estratégias para que a ligação que mais se deseja não seja tão forte, porque ela, por imperativos do destino, pode cessar a qualquer segundo. A cautela torna-se palavra de ordem.

“Não consegui desfrutar como pensei poder vir a desfrutar de uma gravidez. Não consegui porque logo no início tivemos uma situação, tive um problema médico que me levou a ter de fazer repouso logo desde o início. Foi sempre com muito receio, com muito medo que alguma coisa pudesse correr menos bem. Começámos a pensar no enxoval já aos sete meses de gestação”.

Marta e Frederico numa sessão de fotografias para registar a gravidez (DR)

O medo de falhar

O medo não termina quando nasce um filho pelo qual se lutou tanto. Quanto muito, transforma-se. “No momento em que ela nasce, é uma descarga brutal. Cada vez que olhava para ela, não queria acreditar que aquilo tinha acontecido e que era de verdade. Parecia-me um sonho”. Carlota, um sonho com cinco anos, que hoje já sabe escrever as primeiras palavras: mãe, pai. Sempre acompanhados de um coração no quadro onde costuma fazer os desenhos.

Marta e Frederico começaram os tratamentos de fertilidade no privado, enquanto esperavam que os chamassem do serviço público, no Hospital de Santa Maria, em Lisboa. Fizeram várias tentativas, que falharam. Antes de Carlota, houve outros sonhos em formação.

“A principal diferença entre o público e o privado é a demora. Tudo acontece muito mais rápido num hospital privado”, compara Frederico Leandro, sabendo que a passagem do tempo vai tornando as probabilidades de sucesso mais curtas e aumentando as ansiedades, mesmo para eles, que eram um casal jovem.

E as falhas, como se lida com elas? “É como ter de fazer um luto. É muito triste. É muito doloroso. Cada processo implica uma carga emocional muito grande. Uma carga financeira também muito grande. E muitas expectativas. É acreditar sempre que é desta que vai resultar. E quando não é… é aceitar, aceitar e partir para a luta novamente”, descreve esta mãe através da ciência, professora de profissão.

Porque a própria Carlota lhes prova que é preciso insistir: fazia parte de um conjunto de embriões que foram preservados pelo casal. O primeiro a ser implantado não funcionou. “Houve um período de espera até ser novamente implantado, de cerca de um ano, em que a Carlota, hoje Carlota, esteve congelada no hospital”, recorda o pai, que é técnico de robótica e automação.

Episódios que, vistos à distância, passam a ser contados com um sorriso. Tal como as recordações da privação de sono e do choro intenso durante os primeiros meses. Tudo compensado pela sensação de ter uma filha nos braços. Mas uma felicidade que não apaga toda a montanha-russa de emoções do passado. Este casal não quer voltar a ter de passar pelo mesmo processo, pelos mesmos tratamentos, para ter um segundo filho.

Carlota em bebé (DR)
Um abraço no parque infantil

Mães de segunda viagem

Márcia e Sandra Soares vão para a segunda viagem. Como casal, e estando ambas na casa dos 40, viam a janela de oportunidade fechar-se. “Se tivéssemos outra idade, talvez tivéssemos esperado mais um pouco”, reconhece Sandra, de 41 anos.

Porque Laura, a verdadeira protagonista desta história, ainda não chegou aos três anos. Está na fase das descobertas. Adora desenhos animados, elefantes e já aprendeu que, na Ponte 25 de Abril, os comboios viajam no tabuleiro de baixo quando foram as três ao zoológico. Gosta de andar descalça em casa e de mostrar que sabe comer a papa sozinha sem se sujar. E que a gata Luena é uma amiga de verdade.

As paredes da casa enchem-se de fotografias. E, no quarto, há uma barriga de gesso. “Era a primeira vez, queria fazer tudo a que tinha direito”, ri-se Márcia, de 40 anos. Ela que queria tanto ser mãe que chegou a cruzar a fronteira para se submeter a tratamentos de fertilidade em Sevilha, numa altura em que a lei portuguesa ainda não permitia às mulheres sem parceiro masculino serem mães sozinhas.

Corria o ano de 2014. Márcia ainda pensou em desistir. Entretanto, a lei foi alterada em 2016. Só em 2019, já com Sandra como companheira, é que receberam a boa notícia: iam ter um bebé. Laura nasceu já no meio da pandemia de covid-19, sem direitos a visitas e com restrições no toque. Mas isso não atenuou a alegria.

“Uma gravidez que demora tanto tempo a acontecer, acho que vai ser sempre vivida com o receio. Da minha parte foi.  Não acreditava que fosse correr bem até ao fim”, recorda Márcia.

Mas, depois de se ter passado por todo este percurso, a maternidade torna-se mais fácil à segunda vez? Márcia e Sandra pensavam que sim. Mas duas experiências de aborto vieram provar-lhes o contrário, aponta Márcia:

“Achava que nada poderia ser pior do que já tínhamos passado antes.  Pelas falhas, pelo tempo. Mas, de facto, passar por duas perdas gestacionais foi muito mais difícil. Apercebi-me que muitas mulheres já passaram pelo mesmo, mas não falam sobre isso”.

O apoio psicológico que recebeu, diz, foi determinante para lidar com cada perda. Questionou-se se merecia ser mãe, se era mesmo algo que queria, o que teria de errado para não conseguir engravidar. “De certa forma, acabamos por nos culpabilizar um pouco”.

Sobretudo quando, ao seu redor, havia sempre gravidezes a acontecer. “Cheguei a ter sete colegas grávidas ao mesmo tempo. Sentia alguma inveja ou ciúmes. Penso que é normal. Acho que esse sentimento faz parte. Custava muito saber que essas pessoas já estavam grávidas pela segunda vez e eu não tinha sequer conseguido a primeira”, recorda Márcia.

Sandra e Márcia durante a gravidez da primeira filha (DR)
Dias são repletos de brincadeira

Óvulo de uma, ventre de outra

Estas mulheres são ambas professoras. Passam a vida a lidar com crianças. Mas ter uma (em breve, duas) dentro de casa é o verdadeiro desafio das suas vidas. “É um trabalho de 24 horas por dia, sete dias por semana. É descobrir um bocadinho sobre ela a cada dia. E arranjar estratégias para a estimular, para a ver crescer e a disfrutar”, concretiza Sandra.

Márcia e Sandra reconhecem que, como casal homossexual, a pressão social para a maternidade não foi tão vincada. Contudo, depois de Laura nascer, a questão começou a ser mais repetida: quando vão ao segundo? “Às vezes podem partir do princípio que vai ser fácil, porque é o que vimos nos filmes e nas novelas”. Mas não é: na vida real, existem perdas que nem sempre se partilham com os outros. E, tendo de recorrer ao privado como elas, que agora nem puseram o serviço público como opção devido à idade, ter um filho custa largos milhares de euros.

A fatura pouco importa quando o sonho se torna real. “O nascimento é algo que não dá para transmitir em palavras, é inexplicável, um misto de emoções”. A cada gesto de Laura, a cada vez que a menina levanta dois dedos pequeninos para dizer quantas mães tem, a sensação renova-se. E hoje as viagens de carro, outrora solitárias até Sevilha, transformaram-se numa autêntica festa.

Neste segundo filho, o óvulo veio de Sandra, mas é Márcia que está a gerar o bebé no seu ventre. Sandra nunca se imaginou grávida. E já imaginaram o filho que vem aí a caminho?

“Não imagino ainda muito, sou muito cautelosa. Vivo um dia de cada vez, faço as coisas que me deixam saudável e que permitam que o bebé esteja bem, a desenvolver-se da melhor maneira, mas não faço muitos planos”, diz Márcia.

A ciência já fez a sua parte. Agora basta que a outra parte, a fé de que vai correr tudo pelo melhor, dê frutos.

Laura com as "duas mães", como lhes chama (DR)

3% do total

Em Portugal nascem cada vez mais bebés com recurso a técnicas de Procriação Medicamente Assistida (PMA). Em 2020, foram 2797 nascimentos, resultantes de 8429 ciclos de tratamentos. É um número ligeiramente inferior a anos anteriores, muito devido aos efeitos da pandemia.

Veja-se que em 2019, o número de nascimentos superou os três mil (3005) e o de ciclos de tratamento foi de 9936. Dados do Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida (CNPMA) que refletem melhor o crescimento que se vinha registando nos anos antes.

Os bebés nascidos através da procriação medicamente assistida representam praticamente 3% de todos os nascimentos em Portugal.

À CNN Portugal, a Associação Portuguesa de Fertilidade recorda que 28,6% das crianças resultantes da aplicação das técnicas tiveram origem em tratamentos realizados em centros públicos de PMA. Ou seja, a maioria continua a ser fruto dos avultados investimentos feitos pelas famílias nos centros privados, muitas vezes por considerarem que as listas de espera no serviço público podem ser um obstáculo à concretização do seu sonho.

De uma forma generalista, é habitual indicar-se que a taxa de sucesso nos tratamentos de PMA ronda os 30%. Mas importa referir que esse valor depende de muitos fatores, como a idade da mulher ou a técnica escolhida. A maioria das mulheres encontra-se na casa dos 30 anos.

A Associação Portuguesa de Fertilidade já veio pedir ao Governo que disponibilize mais profissionais, recursos e equipamentos para a procriação medicamente assistida, lembrando que esta “ajuda a combater a baixa natalidade”. A associação lamenta mesmo que exista uma “aparente indiferença pelo Ministério da Saúde” em relação às famílias com dificuldades em ter filhos, a quem “a porta do SNS se fecha por limites etários impostos à mulher e incapacidade de resposta aos milhares de casais em espera”.

Carlota no baloiço

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