Azevedo. Como os herdeiros transformaram Belmiro e criaram um continente de marcas

27 ago 2023, 08:00
Belmiro de Azevedo

OS HERDEIROS || Durante o mês de agosto, todos os domingos, contamos-lhe o que estão a fazer os herdeiros dos homens e das mulheres mais ricos de Portugal, com o património que receberam

Belmiro de Azevedo tinha um desejo que nunca escondeu de ninguém: que a Sonae sobrevivesse várias gerações, blindando-a por isso a eventuais querelas na descendência.

“A minha grande aposta é a de criar uma empresa que dure mais do que três gerações”, costumava dizer. E, para tal, avaliou o caminho de uma gestão autónoma, não garantida pelos laços de sangue. Embora os filhos Paulo e Cláudia tivessem feito os seus percursos na Sonae, Belmiro de Azevedo preparou vários gestores de topo para a liderança. Interessava-lhe mais o mérito.

Levou então a cabo um processo de transição muito transparente. Na disputa entraram Ângelo Paupério, Álvaro Portela, Nuno Jordão e Paulo Azevedo. A todos fez, olhos nos olhos, as mesmas perguntas. Quer ou pode liderar a Sonae? E se não for escolhido, aceita a escolha de um dos outros três? Qual deles escolheria? O caminho tornou-se claro.

Em maio de 2007, Paulo Azevedo assumia a liderança da Sonae. Belmiro deixaria as funções executivas nesse mesmo ano. E, em 2015, ao completar 50 anos de carreira no grupo, largaria as funções não executivas. Assim se dava aquela que muitos chamam a “sucessão mais bem planeada” de Portugal.

E há motivos para essa descrição. O processo de passagem de testemunho começou a ser preparado ainda na década de 1990. “O engenheiro Belmiro e a família fizeram um pacto familiar sobre como seria o futuro da Sonae, com regras”, explica à CNN Portugal um advogado amigo da família, que pede para não ser identificado, para permitir maior honestidade no testemunho.

“Cuidou de tudo: como seria a sucessão, a preservação do universo Sonae, como é que a família poderia aceder à Efanor [‘holding’ familiar, detentora da Sonae] e como é que a própria família é avaliada, consoante a performance da Sonae. Há uma Fundação [Belmiro de Azevedo], que tem um papel importante na definição e avaliação dos membros da família que podem ser membros dos órgãos sociais da Efanor. A família não passa para os órgãos da Efanor de qualquer maneira, só por ter o nome Azevedo”, concretiza a mesma fonte.

Algumas das marcas que constituem o portefólio da Sonae

Donos do Continente... com a marca da solução rápida aos consumidores

Os Azevedo são, de uma forma simplista, conhecidos como “os donos do Continente”. Ao longo dos últimos anos, muitos são os portugueses que têm sentido que as lojas desta marca ‘nascem como cogumelos’. Em Lisboa, por exemplo, há espaços emblemáticos a serem transformados em lojas Continente, confirmando a estratégia do grupo num modelo de proximidade.

Mas o Continente é, na verdade, um continente de marcas que gravitam à sua volta. E será praticamente impossível viver em Portugal sem alguma vez se ter, pelo menos, cruzado com algumas destas insígnias. Cresceram os supermercados Meu Super, as padarias Bagga, as lojas de produtos biológicos Go Natural, as papelarias Note!, as lojas com produtos para animais Zu, os espaços de beleza e bem-estar Wells, as clínicas dentárias Dr. Wells ou os seguros de saúde KeepWells. E, mais recentemente, os restaurantes Cozinha Continente.

Depois há a tecnologia da Worten, o cartão de crédito Universo ou os centros comerciais Sierra, com o Colombo e o NorteShopping à cabeça. No vestuário, Zippy, Salsa e Mo integram o catálogo. Até há bem pouco tempo, antes da Sonae ter alienado a posição na Iberian Sports Retail Group, a moda desportiva, com a Sport Zone, fazia também parte desta constelação de marcas. Há ainda a destacar os ginásios Solinca e os hotéis The Editory.

Uma das apostas mais recentes e vincadas está agora na tecnologia, através da BrightPixel, que integra participações em projetos como a Feedzai ou a Outsystems.

Quase se poderia dizer que hoje seria possível resolver quase todas as necessidades numa ida às compras, porque as marcas de retalho da Sonae tendem a estar concentrada nos espaços maiores. Exemplo: vai ao dentista, compra legumes para a sopa do jantar, experimenta umas calças de ganga, almoça pizza, queima as calorias numa aula do ginásio, compra cadernos para os miúdos, traz a ração para os gatos. E paga tudo com o cartão Universo.

O princípio da diversificação de marcas sempre esteve presente na Sonae, embora tenha ganho especial força com os herdeiros. E a base do negócio é simples: se é identificada uma necessidade, há uma oportunidade para fazê-la escalar como marca e desenvolver-se um negócio independente. Uma marca pode surgir numa prateleira do hipermercado e transformar-se numa loja própria. Tudo depende da reação dos clientes. E é essa diversidade que permite também ao grupo consolidar-se e perpetuar-se como um todo.

“A Sonae tem tentado fazer uma reprodução de marcas. Fazer como se ela própria fosse uma maternidade de marcas. Um dos exemplos é a Worten, que começou por ser um departamento do Continente. Sempre que um negócio tinha ou tem alguma escala para se transformar numa marca, fazem-no”, explica Carlos Coelho, especialista em marcas, que trabalhou com o grupo Sonae em processos de reformulação.

Mas nem sempre foi assim. Nem sempre a Sonae foi esta incubadora de marcas em que se transformou. “O engenheiro Belmiro não era um ‘marquista’. Aliás, ficava sempre muito desconfiado das marcas, que exigiam grande inovação. Mas como era um homem de inovação, acabava por gostar das marcas”, completa.

Foi assim que peça a peça, marca a marca, a Sonae se foi tornando no atual aglomerado. Se há uma necessidade, se há margem para criar um negócio, para formar massa crítica e ter consumidores, arrisca-se. Sempre com a escala internacional em vista, mesmo que o sonho do além-fronteiras para a Sonae nunca tenha sido especialmente profícuo. Está presente em mais de 60 países, mas é de Portugal que continua a depender fortemente, em especial da operação do retalho.

“Belmiro de Azevedo era um empreendedor nato, mas não um ‘marquista’. O seu sonho era a indústria. O retalho era a forma de ganhar dinheiro. Era um sentimentalista apaixonado pela indústria. Tinha sim uma engenharia do negócio, com muito rigor, com um certo equilíbrio entre a vida e o trabalho”, resume Carlos Coelho.

Para Belmiro, confirma o amigo próximo ouvido pela CNN, “a menina dos olhos era a Sonae Indústria". “A lógica de marca é algo desenvolvido pela área da distribuição já na última década, já tanto sem a influência dele. Mas ele tinha uma preocupação que a segunda geração está a pôr em prática, que é a diversificação, que é sair da área do retalho”, conta.

Morte aos 79 anos, partilhas em vida

29 de novembro de 2017: morre Belmiro de Azevedo, aos 79 anos, deixando um império avaliado à altura em 1300 milhões de euros. Mas há muito que o património já estava distribuído pelos herdeiros. Fez as partilhas em vida.

Antes dono e senhor da ‘holding’ Efanor, tornou-a verdadeiramente familiar ao dividir a sua maioria absoluta pelos três filhos. Abdicou depois de todos os cargos no grupo. Belmiro não queria que acontecesse com os Azevedo o mesmo que com os Pinto de Magalhães, família que estivera na origem da Sonae em 1959, onde os conflitos internos acabaram por ditar o afastamento do projeto.

“No pacto familiar dos Azevedo, evitar conflitos é um subproduto. A ideia principal era a ideia de manter vivo e bem tratado um património que o engenheiro vivia como nacional, social, de dezenas de milhares de trabalhadores. Queria evitar que fosse tudo reduzido a pataco, tudo vendido. Ou que, ficando na família, fosse maltratado e mal gerido”, garante o advogado amigo da família.

Belmiro com o filho Paulo em 2006

Paulo, a escolha natural

“O próprio Belmiro costumava dizer que o Paulo estava muito mais preparado do que ele para a liderança da empresa. Não que fosse empreendedor, mas tinha um mundo que o pai não tinha. E tinha a educação do rigor e das boas contas. Trouxe uma cultura mais moderna, mais ‘marquista’. O portefólio de marcas era muito importante, para garantir que o negócio estava devidamente equilibrado e que podia fazer face a alguma instabilidade no mercado”, recorda o especialista em marcas Carlos Coelho.

Paulo Azevedo foi o primeiro passo da sucessão, assumindo as rédeas em 2007, ainda o pai era vivo. Não era um estranho, um herdeiro que não conhecesse o negócio, porque desde o final da década de 1980 que faz carreira no grupo. Foi ele que protagonizou a histórica Oferta Pública de Aquisição (OPA) da Sonae à PT Telecom – que, embora falhada, é encarada por muitos como uma revelação do seu caráter enquanto empresário que sabe arriscar.

Durante 12 anos, num registo discreto, de intervenções muito calculadas à imprensa – ao contrário do pai, que era mais interventivo, ‘sem papas na língua’, sempre disposto a um confronto -, Paulo procurou fazer crescer o universo Sonae e deixar ainda mais arrumada a relação da ‘holding’ familiar Efanor com as diferentes empresas do grupo, com a ajuda de Ângelo Paupério, com quem chegou a dividir a função de CEO.

Deste período, leva também o feito da redução da dívida e o dissabor de não ter conseguido levar a internacionalização mais longe. Em 2019, passou o cargo da liderança diária e operacional para a irmã Cláudia, sentando-se na cadeira de “chairman”.

“O Paulo herdou essa preocupação do pai, de que as pessoas não se podem eternizar nas coisas. É um homem inteligentíssimo. Chegou à conclusão de que, se não saísse, a irmã teria de esperar muitos anos para ter essas funções”, explica o advogado amigo da família Azevedo, reiterando que este foi o único motivo, e descartando os rumores de uma potencial doença, que chegaram a existir na altura. Para o advogado, a “aceleração de carreiras” é um dos pontos fortes na transformação da Sonae.

Paulo vestiu a camisola como ninguém. Ou o ‘oufit’ todo, para sermos mais precisos: numa apresentação de contas fez questão de vincar que a camisa e o casaco eram da Mo, as calças da Salsa e as sapatilhas da Berg. Afinal, o que será bom para os clientes, também tem de o ser para quem o vende.

Paulo Azevedo na apresentação de resultados em 2018, os primeiros após a morte do pai (Lusa)

Ódios de crescimento: qual o limite?

O grupo Sonae tem crescido. Em resultados, como mostra uma subida de quase 28% nos lucros em 2022, para 342 milhões de euros. Mas também em presença, estando mais próximo do quotidiano dos portugueses. De certeza já reparou nisso ao andar na sua cidade, com mais lojas de marcas do grupo Sonae a abrirem portas.

Mas poderá continuar neste ritmo, a alimentar esta perceção de que estão mesmo em todo o lado? “Acho que as marcas têm um limite, em que o excesso se torna intrusivo”, aponta Carlos Coelho.

“Quando essa marca tem excesso de presença ou começa a tomar posições em locais que, claramente, são sensíveis na cidade, e que pensamos que há ali uma certa violação daqueles espaços, essas marcas aos poucos, nesses pontos, começam a ter alguma resistência”, aponta o especialista em marcas.

As marcas até podem tender a transformar-se numa espécie de deus, disponíveis para dar resposta a todo e mais algum problema. Contudo, os consumidores costumam preferir a diversidade. “Quando sentimos que chegamos a um sítio e somos sufocados, que é uma grande ratoeira de um conglomerado, esse não pode ser o futuro”.

Cláudia, a filha mais Belmiro

Quem decide o futuro (e o presente) é Cláudia Azevedo, a mais nova dos três irmãos Azevedo. Belmiro costumava dizer que era a mais parecida com ele. Tinha “mais killer instinct”. É, contudo, bem mais discreta do que o pai.

Claúdia é encarada como o rosto da aposta mais evidente nas marcas. A sua preocupação com o futuro é tão vincada que, recentemente, procedeu a uma alteração da identidade corporativa da Sonae, cujo slogan passou a ser “Shaping Tomorrow, Today” [a dar forma ao amanhã, hoje]. E atualizou os “mandamentos” deixados pelo pai, no sentido de refletir esse compromisso com os novos tempos.

A passagem de testemunho da Paulo para Cláudia também foi encarada com naturalidade, sem sobressaltos, até porque ela sempre esteve ligada ao grupo. Começou no marketing do Universo e ganhou destaque com a tarefa de reestruturar a Sonae Capital. É, por isso, alguém a quem se destaca a capacidade de avaliar investimentos e de analisar potenciais escaladas no que respeita à internacionalização, sempre encarada como a “obsessão” dos herdeiros, mas também a sua “maior frustração”.

Depois de assumir as rédeas, em 2019, os desafios têm sido múltiplos. Primeiro veio a pandemia, que acabou por beneficiar o negócio do retalho, com um maior consumo das famílias dentro de casa – algumas enchendo as despesas para um verdadeiro ‘apocalipse’. Depois veio a guerra e a inflação, com o retalho alimentar debaixo de todas as atenções, com acusações de aproveitamento nas margens, que foram sempre sendo negadas.

A Sonae quer afirmar-se como um grupo mais ágil, mas também mais tecnológico, com as constantes apostas na Bright Pixel, onde Cláudia Azevedo esteve diretamente envolvida, investindo em áreas como a cibersegurança, infraestruturas digitais ou digitalização dos processos de pagamento.

E é aqui que, diz quem a conhece bem, ela também se afasta do pai. “O engenheiro Belmiro tinha a lógica de chegar a um novo investimento e dizer: ‘eu é que mando, vamos aplicar a cultura Sonae’. Esta nova geração, especialmente a Cláudia, tem uma abordagem diferente: a de que é preciso respeitar e manter a cultura dos empreendedores”, descreve o amigo de família ouvido pela CNN Portugal.

Os últimos anos na Sonae têm sido um constante compra-e-vende. As vendas de uma posição de 25% na dona do Continente, da operação da Worten em Espanha, do imóvel onde funciona o Continente no Colombo ou de metade do negócio do Cartão Universo ao Bankinter são alguns dos exemplos mais marcantes. Mas há também reforços de posição na Sonae Sierra, com a compra do mítico Atrium Saldanha, ou a aquisição de supermercados na Alemanha. Sempre negócios que movimentam centenas de milhões de euros e que confirmam a posição da Sonae como um dos principais ‘players’ nacionais.

Cláudia Azevedo vestiu as cores da Ucrânia, numa mensagem de solidariedade, na apresentação de resultados de 2021 (Eco)

O terceiro filho e a fundação de família

Além de Paulo e Cláudio, Belmiro teve um terceiro filho. Nuno não está tão ligado ao universo empresarial da Sonae, mas não deixa de estar envolvido na continuidade do legado deixado pelo pai. Foi jornalista, mas foi como gestor cultural, com funções na Fundação de Serralves e da Casa da Música, que ganhou notoriedade.

Após a passagem pela Casa da Música, ajudou a organizar a componente agrícola da família na Casa Agrícola de Ambrães. E depois ligou-se à Fundação Belmiro de Azevedo, outro dos legados do “engenheiro Belmiro” onde vários membros da família, inclusive a mulher Margarida e netos, marcam presença.

A instituição dedica-se a projetos no âmbito da educação, solidariedade social e, mais recentemente, biodiversidade – um tema de grande interesse para Paulo Azevedo. O Colégio Efanor, que atribuiu bolsas de estudo, é um dos pilares da sua atuação.

A CNN Portugal contactou a assessoria de imprensa da Sonae SGPS no sentido de obter um testemunho dos herdeiros ou de atuais administradores do grupo. Foram também contactados vários gestores de topo. Não obtivemos contributos.

Belmiro de Azevedo estava no pódio dos homens mais ricos de Portugal (Arquivo)

 

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