“O Ocidente tem medo do Ocidente”. Resultado: há um “enorme atraso” na entrega de equipamento e Kiev perde “potencial de combate”

Agência Lusa , DCT
20 ago 2023, 08:49
Guerra na Ucrânia (Associated Press)

José Arnaut Moreira defende que o sonho imperial russo terminou em abril de 2022, quando começou um novo período a que eu chamaria o período da esperança ucraniana

O analista militar José Arnaut Moreira considera que os aliados da Ucrânia apostaram no gradualismo no seu apoio e não forneceram tudo o que Kiev precisa para enfrentar a invasão russa, porque "o Ocidente tem medo do Ocidente".  

Quando se assinala um ano e meio da guerra na Ucrânia, iniciada em 24 de fevereiro de 2022, o major-general do Exército destacou em entrevista à Lusa a "opção política" do Ocidente "em fornecer apenas aquilo que é necessário em cada um dos momentos".

Esta opção, prosseguiu, é difícil de compreender em Kiev e justifica o avanço lento da contraofensiva ucraniana em curso, ao fim de meses de discussões entre os aliados sobre o envio de equipamentos pesados essenciais, como tanques alemães Leopard2 ou os norte-americanos Abrams, que ainda não chegaram ao terreno, os sistemas modernos de defesa antiaérea ou mais recentemente os caças norte-americanos F-16, que na quinta-feira receberam luz verde de Washington mas só deverão chegar aos céus do país no próximo ano.

Estas discussões levaram a "um enorme atraso" nas entregas, na análise do comentador militar, e permitiram a Moscovo "organizar e estabelecer linhas defensivas consistentes", numa atitude dos aliados de Kiev do que chama "gradualismo de ir fornecendo apenas pequenos incrementos de capacidade de potencial de combate para não irritar a Federação Russa", nem escalar o conflito para lá das fronteiras da Ucrânia.

"Ou seja, a Ucrânia nunca dispõe do potencial de combate suficiente para realizar grandes manobras, porque não está a ser alimentada para isso", apontou, e, nesse sentido, é injusto acusar o Exército ucraniano de lentidão nas suas operações, "porque não tem capacidade para as conduzir mais depressa".

A montante de tudo isto, "o Ocidente tem medo do Ocidente", destacou, porque não quer desde o início as forças da NATO envolvidas numa confrontação direta com a Federação Russa, que também joga com essas cautelas e usa-as na sua narrativa e nas ações psicológicas dirigidas aos aliados sobre as suas 'linhas vermelhas' em relação ao armamento fornecido a Kiev, como está a acontecer novamente com os mísseis de longo alcance alemães Taurus.

"O Ocidente não tem confiança no Ocidente", insistiu o major-general, numa situação que persegue os aliados desde o fim da guerra fria, em que "se passa o tempo todo a discutir a segurança da Rússia, quando o que se devia estar a discutir era os problemas da segurança da Europa e os seus interesses", incompatíveis com Moscovo, que "não perde nenhuma oportunidade para ameaçar os seus vizinhos", usando o seu mito de invencibilidade, mas que já enfrenta ataques no seu território.

Putin à espera de Trump

Nesta fase, na ausência de perspetivas de negociações de paz e em que ambas as partes persistem na opção militar, mesmo que o apoio ocidental desaparecesse ou que os russos tenham dificuldade em repor os seus meios, segundo Arnaut Moreira, isso não seria necessariamente o fim da guerra, porque "há muitas outras formas de conduzir o conflito", que não passam necessariamente pela sua natureza convencional, existindo outras possibilidades do ponto de vista político, económico ou outros.

Se o Presidente russo, Vladimir Putin, pode alimentar esperanças em alterações políticas nos Estados Unidos nas eleições de 2024, que conduzam a uma inversão no apoio à Ucrânia - cenário no qual "sobra para a Europa" - Arnaut Moreira alertou que Kiev aposta na sua contraofensiva militar e "as guerras são guerras de vontade e o que acontece quando o material falta é que mudam na forma como são exercidas".

No caso da Ucrânia, gerou "ódios insanáveis entre duas nações e dois povos que eram irmãos e ucranianos e russos não vão viver mais em paz, é impossível que isso aconteça".

Mesmo que a guerra fique congelada do ponto de vista convencional, "ela pode desenvolver-se noutros patamares na parte insurrecional, por exemplo, como atentados, perseguições de natureza cultural, linguística ou pressões que são feitas do ponto de vista económico sobre as populações".

Sonho imperial russo acabou em abril de 2022 

O major-general José Arnaut Moreira defende que o sonho imperial russo acabou em abril de 2022, três meses depois da invasão da Ucrânia, e o líder do Kremlin, Vladimir Putin sabe, que a guerra "está absolutamente perdida".

Para o especialista militar, em entrevista à Lusa, a ofensiva russa, iniciada em 24 de fevereiro de 2022, é "na verdade uma continuação da guerra de 2014", com a anexação ilegal da Crimeia e a insurreição no Donbass, leste da Ucrânia, e só acontece por "desleixo Ocidental", quer da NATO quer da União Europeia, que viviam "numa certa esperança de grande cooperação com a Federação Russa" e fecharam os olhos às ações hostis de Moscovo.

"A invasão de 2022 é a concretização do sonho imperial russo. Isto é, a Federação Russa considerou que estavam reunidas as condições de natureza política, porque a leitura daquilo que tinha feito o Ocidente em relação à guerra de 2014 mostrava o Ocidente desunido, fraco e sem capacidade de resposta", observou, a que se somou a militarização da Crimeia.

Criaram-se, segundo o analista militar, todas as condições para, "em 2022, o sonho imperial russo passar a ter afirmação e expressão territorial", mas que, na verdade, só durou três meses, quando se tornou claro que o poder político não ia colapsar em Kiev e que as forças armadas da Ucrânia eram capazes de conduzir ações de natureza defensiva contra o segundo maior exército do mundo.

"A partir de abril do ano passado começou um novo período a que eu chamaria o período da esperança ucraniana", sustentou Arnaut Moreira, que recordou a recuperação de território pelas forças de Kiev, logo naquele que se encontrava ocupado nas proximidades da sua capital, no norte do país, e da retirada das forças russas das regiões de Kharkiv, no leste, e de Kherson, no sul, no ano passado.

Uma ofensiva falhada de Moscovo no início de 2023 foi acompanhada de campanhas de destruição de infraestruturas civis em pleno inverno.

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