"Ó amigo, fale alto que isto agora é um país livre": Francisco Fanhais cantou contra a ditadura e, 50 anos depois, diz que "não podemos cruzar os braços"

24 abr, 09:00
Francisco Fanhais, José Mário Branco e José Anfonso ensaiam os passos para a música "Grandola Vila Morena" (DR - Fotografia de Patrick Ullmann/ Associação José Afonso)

É dele uma das vozes que ouvimos na gravação original de "Grândola, Vila Morena", o tema de José Afonso que se tornou senha da Revolução. Francisco Fanhais conta-nos como era ser um "cantor de intervenção" e como viveu a chegada da liberdade

"Em 1986, o Zeca já estava muito doente e foi homenageado em Viana do Castelo, ele não pôde ir mas eu fui. No dia seguinte, estava na estação à espera do comboio, aproximou-se um rapaz com um aspeto desmazelado e achei que ele me vinha cravar, e diz-me assim: 'tu estiveste ontem na festa do Zeca, não estiveste? Eu gramei das cantigas. Importas-te de lhe levar um recado? Dás um abraço meu ao Zeca e diz-lhe que ele não morre no coração da malta nova'. Eu estava à espera de tudo menos deste recado. Afinal, sempre fui cravado, mas não como estava à espera. Desde então, tenho-me esforçado por cumprir a profecia: o Zeca não morre no coração da malta nova. Tem sido essa a minha missão, manter a memória do Zeca viva, contribuo como posso."

José Afonso morreu pouco depois, com apenas 57 anos. O seu amigo e também músico Francisco Fanhais tem hoje quase 83 anos. A memória não lhe falha. Conta esta e outras histórias com alegria e às vezes, a meio da conversa, até canta um verso para mostrar como era quando eram novos e cantavam juntos pela liberdade.

A primeira vez que contactou com a música de José Afonso foi em 1963. Estava no seminário e a certa altura um colega bateu-lhe à porta e deu-lhe "um disco pequenino, um EP como se dizia na altura". "Eu sei que tu gostas de música e vais gostar desta", disse-lhe, deixando-lhe ainda um conselho: "Mas ouve baixinho." "Efetivamente as paredes tinham ouvidos", recorda Francisco Fanhais, referindo-se à PIDE, a polícia política, que controlava tudo o que se dizia e que poderia eventualmente beliscar o regime. O disco tinha acabado de sair e tinha quatro faixas, incluindo "Os Vampiros" e "Menino do Bairro Negro", duas das primeiras canções politizadas de Zeca Afonso. "Fiquei logo fascinado com a simplicidade musical, aquela voz, a força do poema", recorda.

Cinco anos mais tarde, já padre Fanhais e também já músico, foi convidado por um amigo para participar numa sessão musical que ia realizar-se nas grutas da Lapa, no concelho de Torres Novas, na noite de 28 de dezembro de 1968. Pelo palco passaram Francisco Fanhais, Jorge Vala, José Amaro e José Afonso. O concerto era organizado por um grupo de jovens com o apoio da autarquia. "O presidente da Câmara, apesar de ligado ao regime, era um homem muito íntegro, e deixou logo claro: aqui a PIDE só entra por cima do meu cadáver", recorda o músico. O agente da PIDE, conhecido na terra, fez um relatório a dar conta do evento aos seus superiores mas, de facto, não pôde contar muito porque não entrou. "Foi um concerto muito bonito, cheio de gente da oposição."

Foi nessa noite que nasceu a amizade entre Francisco Fanhais e José Afonso, e foi José Afonso que lhe deu a sugestão de participar no programa de televisão "Zip Zip", que o tornou conhecido em todo o país. "Viemos a encontrar-nos mais vezes, eu estava no Barreiro, ele morava em Setúbal. Éramos convidados para tocar em sociedades recreativas. Nessa altura eu já sabia que o que me interessava na música era passar a mensagem, lutar contra a ditadura e contra a guerra colonial", conta Francisco Fanhais. Um dos seus temas mais conhecidos é a "Cantata da Paz", a partir do poema escrito por Sophia de Mello Breyner Andresen para a vigília na Capela do Rato, em Lisboa, a 30 de dezembro de 1972, contra a guerra colonial e a favor da liberdade: "Vemos, ouvimos e lemos, não podemos ignorar".

Mas as autoridades "foram percebendo que as cantigas reuniam muita gente e eram um forte instrumento da oposição" e começaram a intervir. "Eu dava aulas de moral no liceu do Barreiro e fui suspenso porque nas aulas falava de temas proibidos. Também fui suspenso das funções de padre por causa dos meus conflitos internos com a Igreja Católica. E também fui proibido de cantar pela PIDE", recorda Fanhais. É nessa altura que decide acompanhar José Afonso e a mulher, Zélia, que iam viajar para França. "Queria respirar outros ares, ver que rumo dar à minha vida. A primeira pessoa que contactei lá foi o José Mário Branco e disse-lhe: 'eu não vim como turista, não estou aqui para passear no Quartier Latin, estou aqui para fazer o que não posso fazer lá que é cantar'", conta Fanhais. Cantou para os emigrantes portugueses e fez leituras de programas na rádio e na televisão.

"Em outubro de 1971, o Zé Mário disse-me 'vamos gravar o disco do Zeca'", o disco era o "Cantigas do Maio". José Mário Branco, que era o produtor, tinha reservado durante duas semanas os Strawberry Studios, localizados num castelo do século XVIII, em Hérouville, a 30 quilómetros de Paris. "Participei essencialmente n'O Coro da Primavera', sou eu que faço a voz do tenor, e também canto na 'Grândola, Vila Morena'", conta Francisco Fanhais.

No momento da gravação, "o Zé Mário, que tinha estado no Alentejo com o Giacometti, disse logo que aquilo era uma moda alentejana e que devíamos fazê-lo só com vozes e como se fôssemos um grupo de trabalhadores a cantar pela rua ao final do dia do trabalho", recorda. "Ainda experimentámos fazer os passos no estúdio mas não ficava bem, até que ele encontrou aquela gravilha no exterior e fomos tentar. O Bóris [o músico Carlos Correia] não estava nesse ensaio, mas estava no dia da gravação."

Francisco Fanhais, José Mário Branco e José Anfonso ensaiam os passos para a música "Grandola, Vila Morena" (DR - Fotografia de Patrick Ullmann/ Associação José Afonso)

O resto é história. "Grândola, Vila Morena" foi escolhida pelo militares como uma das senhas da Revolução de Abril e, desde então, tornou-se um hino à liberdade que, ainda hoje, é cantado. "Não podíamos imaginar, naquela altura, que a canção iria ganhar um simbolismo tão importante", diz. Aqueles passos são os passos do povo, que caminha para a liberdade. "Aqueles passos ficaram logo associados à Grândola, são inconfundíveis. Basta ouvir aquilo e já sabemos o que aí vem." 

"Finalmente podíamos cantar em liberdade, desabafar, desopilar"

Francisco Fanhais soube da Revolução por um amigo mas as notícias que chegavam a Paris eram poucas e confusas: "A dúvida era se seria um Kaúlza de Arriaga a querer voltar aos tempos de Salazar ou se era mesmo uma revolução democrática, mas depois percebemos que as músicas de intervenção começaram a passar na rádio e ficámos mais descansados." Assim que as fronteiras abriram, sentiu que tinha de voltar imediatamente a Portugal.

"No dia 29 de abril meti-me no comboio, cheguei a Vilar Formoso no dia 30 de manhã. A estação estava completamente vazia à exceção de um cabo que batia os pés no chão para aquecê-los. Abrimos as janelas para respirar o ar puro do Portugal novo. E o meu companheiro de viagem, na brincadeira, vira-se para o cabo e sussurra-lhe: 'onde é que estão os PIDES?' O rapaz responde a gritar: 'Oh amigo, fale alto que isto agora é um país livre'."

Francisco Fanhais ainda hoje se emociona a contar esta história. "Ó amigo, fale alto que isto agora é um país livre", repete, com a voz embargada. "Finalmente, podíamos falar à vontade. O país estava em festa, aquele 1.º de Maio foi um acontecimento extraordinário."

Fanhais e Zeca decidiram oferecer-se como voluntários para as campanhas de dinamização cultural do MFA - Movimento das Forças Armadas. Foram juntos à 5.ª divisão, na rua Castilho, e depois foram juntos para Bragança, onde passaram 15 dias com o realizador Luís Filipe Rocha e com as pessoas da região. "Foram tempos muito bons, havia uma alegria e uma vontade de fazer algo pelo país", conta. Foi lá que o Zeca compôs a música 'Em terras de Trás-os-Montes', com a história do Manuel Augusto, preso pela PIDE, que lhe contaram as pessoas de uma aldeia." 

Percorreram o país, Francisco Fanhais, José Afonto, Adriano Correia de Oliveira, Vitorino, José Jorge Letria, José Barata-Moura, entre outros, cantavam em todo o lado, sobretudo onde havia lutas populares. "Finalmente podíamos cantar em liberdade, desabafar, desopilar, pôr cá fora tudo o que pensávamos", diz o músico.

Quando os anos revolucionários passaram, Francisco Fanhais encontrou o sossego em Alvito, onde mora há já muito tempo, mas está sempre disponível para participar em eventos e ir falar a escolas - "Adoro, sobretudo, se forem mais crescidos porque já dá para termos conversas sobre os valores". Continua a cumprir a sua missão. Na noite de 24 de abril, vai celebrar os 50 anos de democracia em Viana do Alentejo, num concerto com outros músicos da terra.

"Vamos lá ver como é que juntamos todos outra vez forças para não cair no logro de darmos votos à extrema-direita", desabafa. "Não podemos cruzar os braços. Era importante que nas próximas eleições, as pessoas percebessem que estão a votar num programa racista e xenófobo, num programa antidemocrático, que é contra tudo aquilo por que lutámos."

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