"Grândola, Vila Morena", o tema que escapou à censura: em 1974 o Coliseu inteiro cantou com José Afonso a canção que se tornou senha da Revolução

29 nov 2023, 12:00
Zeca Afonso - José Afonso

Os registos destes momentos estão prestes a serem classificados como Património Nacional. A proposta será apresentada esta quarta-feira ao Ministério da Cultura

Em 29 de Março de 1974, realizou-se no Coliseu de Lisboa, o I Encontro da Canção Portuguesa, a pretexto da entrega de prémios da Casa da Imprensa relativos a 1972. O espetáculo esteve quase para não acontecer, a polícia estava no local e a Censura proibiu mais de trinta canções. Mas o Coliseu estava lotado - cerca de cinco mil pessoas tinham comprado o bilhete por 20 escudos (e até por 50 escudos no mercado negro) - e as autoridades não quiseram causar uma revolta. O ambiente era claramente de festa e de resistência. Joaquim Furtado apresentou os prémios. Ao longo da noite, passaram pelo palco músicos como Carlos Alberto Moniz e Maria do Amparo, Carlos Paredes, Manuel Freire, José Jorge Letria, Adriano Correia de Oliveira, Fausto, Vitorino e o poeta José Carlos Ary dos Santos, entre outros. José Afonso só cantou nesse espectáculo duas canções, a "Grândola, Vila Morena" e "Milho Verde". 

No final, já perto das duas manhã, sobem todos ao palco para uma última atuação. "Então, vamos outra vez cantar o Grândola", disse Zeca Afonso, que teria preferido cantar no fecho "Venham mais cinco" ou "O que faz falta", por terem refrões mais politizados. Mas, não sendo possível, optou por cantar o "Grândola", uma das poucas canções que havia escapado à censura, acompanhado por todos os cantores em palco e secundado a plenos pulmões por milhares de vozes em uníssono.

António Figueira Mendes estava lá, com a mulher, e lembra a emoção de estar entre "cinco mil pessoas a cantar em conjunto".  "Havia já uma apropriação da canção pelo povo", diz. "O fruto estava a ficar maduro, estava quase a cair. Tudo aconteceu porque era o momento de acontecer", recorda à CNN Portugal o atual presidente da Câmara de Grândola. Menos de um mês depois, a canção de José Afonso seria uma das senhas que pôs em marcha a Revolução do 25 de Abril.

Património nacional: para preservar os registos de dois momentos importantes

Agora, os registos sonoros originais da senha da Revolução, transmitida pela rádio na madrugada do 25 de Abril, assim como a interpretação da canção "Grândola, Vila Morena" no I Encontro da Canção Portuguesa, poderão integrar o Património Nacional de Portugal.

A proposta de classificação é apresentada esta quarta-feira à Direção-Geral do Património (Ministério da Cultura), pela Direção-Regional de Cultura do Alentejo e pela Câmara Municipal de Grândola, no âmbito das celebrações dos 50 anos do 25 de Abril. A ideia surgiu, precisamente, durante as reuniões em que se planeavam estas comemorações. "Sentimos que tínhamos esta responsabilidade de fazer alguma coisa para preservar esta memória", explica António Figueira Mendes, mentor da iniciativa de registar os documentos sonoros como património nacional. "Não é só uma canção, a 'Grândola' está indelevelmente ligada à nossa terra."

I Encontro da Canção Portuguesa, 29 de março de 1974 (DR)

Esta é a primeira proposta de classificação de património fonográfico em Portugal. "Propõe-se para classificação como bem móvel dois conjuntos de fitas magnéticas de som que documentam dois eventos determinantes para os eventos ocorridos a 25 de Abril de 1974 e que permitiram o derrube do regime político vigente", explica a candidatura. Esses dois conjuntos são: a senha integral emitida no programa “Limite” (Rádio Renascença) que sinaliza o início das movimentações militares na madrugada de 25 de Abril de 1974 (uma bobina com 11 minutos) e a gravação do concerto “Primeiro Encontro da Canção Portuguesa”, que teve lugar no Coliseu dos Recreios em Lisboa, na noite de 29 de Março de 1974 (gravação repartida por duas bobinas, na qual a partir dos 80 minutos se ouve o 'Grândola').  As propriedades destes patrimónios pertencem, respetivamente, à Fundação Mário Soares e Maria Barroso e à RTP que autorizaram e se associaram à proposta.

O que está em causa não é a classificação da canção de Zeca Afonso, mas apenas destes dois registos. "Foram dois momentos muitos importantes", explica à CNN Portugal Ana Paula Amendoeira, diretora Regional da Cultura do Alentejo. "O Encontro da Canção foi um momento simbólico e emotivo, a Pide estava presente e, apesar disso, é possível perceber como a canção foi acolhida pelas pessoas, é uma prova do grande envolvimento com aquele tema. Também foi isso que levou a que fosse escolhido, pouco depois, como senha da Revolução." 

"Os registos já estão digitalizados, mas interessa-nos salvaguardar a gravação original", sublinha. "Queremos preservar a autenticidade e integridade dos registos. É inegável a sua importância histórica e cultural porque estão associados a um momento determinante na história da democracia portuguesa."

A homenagem de José Afonso à vila alentejana de Grândola

A ligação de José Afonso à vila alentejana de Grândola começou a 17 de maio de 1964, quando o músico ali atuou a convite da Sociedade Musical Fraternidade Operária Grandolense, conhecida como "Música Velha". "Era uma coletividade com uma grande atividade e que sempre teve, do ponto de vista democrático, grande importância no concelho. Além da banda, tinha uma biblioteca muito importante, com alguns livros proibidos, e também tinha clubes de teatro. Por isso era frequentada por muitos jovens", recorda à CNN Portugal António Figueira Mendes, que hoje é presidente da Câmara de Grândola mas que, na altura, era um jovem de esquerda, envolvido no Partido Comunista, tendo chegado a passar algumas temporadas na prisão.

Cerca de 200 pessoas juntaram-se naquele domingo no Cine-Teatro Grandolense para ouvir Zeca cantar. Foi aqui que, como se explica no site do Observatório da Canção de Protesto, interpretou pela primeira vez "Cantar Alentejano", que evoca o assassinato de Catarina Eufémia, dez anos antes, numa letra de António Vicente Campinas. "Havia sempre pides disfarçados e nós sabíamos disso, mas correu tudo bem", conta o autarca de Grândola.

Correu tudo tão bem que, poucos dias depois, José Afonso escreveu uma carta de agradecimento com um poema com três estrofes dedicado aos sócios da "Música Velha" - estas estrofes estão na génese da canção "Grândola, Vila Morena" que, após várias alterações, viria a ser fixada no album "Cantigas do Maio", editado no final de 1971.

Para a gravação de “Cantigas do Maio”, José Mário Branco, que era o diretor musical do disco, reservou durante por duas semanas o Strawberry Studio, situado num castelo do século XVIII, a 30 quilómetros de Paris. A José Afonso e José Mário Branco juntaram-se ainda Francisco Fanhais e Carlos Correia.

Foi de José Mário Branco a ideia de dar à canção a estrutura do cante alentejano e de gravar o tema só com vozes, com um início que lembra o passo arrastado dos cantores dos grupos tradicionais, marcando o ritmo.  "Influenciado por uma das imagens mais fortes que eu guardo de Peroguarda - a imagem dos homens abraçados, regressando da monda ao fim da tarde, cantando no regresso a casa -, também propus que se ouvissem os passos deles, no macadame da estrada, ao ritmo da canção", contou José Mário Branco. "E então ensinei ao Zeca, ao Fanhais e ao guitarrista Bóris (Carlos Correia) como é que os camponeses faziam esses passos: alternadamente, num claro compasso quaternário, um pé arrasta-se e, no tempo seguinte, pousa no chão - o movimento seguinte do outro pé completa o quaternário."

O tema escapou aos ouvidos desatentos dos censores que, aparentemente, não entenderam as referências ao povo que mais ordena. Zeca percebeu que o público reagia bem ao "Grândola", mas o que aconteceu no Coliseu de Lisboa em 29 de março de 1974 foi, de facto, um indício de algo que ainda não se sabia muito bem o que era.

O espetáculo foi gravado, com meios técnicos muito rudimentares, pelos técnicos de som José Videira e Manuel Tomás, e foi transmitido em três noites consecutivas no programa "Limite" da Rádio Renascença. Essa é a gravação que vai agora ser classificada.

A senha da Revolução foi escolhida num momento de aperto junto ao elevador de Santa Justa

Por esses dias, estava já a ser preparada, no maior segredo, a Revolução de 25 de Abril. O comandante Carlos de Almada Contreiras tinha na altura 32 anos e já uma longa carreira na Marinha que o levou até ao Centro de Comunicações da Armada, localizado no Terreiro do Paço. E tinha "um problema para resolver", conta à CNN Portugal.

"Depois do que tinha acontecido a 16 de março [o  falhado "levantamento das Caldas"] percebeu-se a importância de, numa futura operação, dar um sinal que confirmasse em cima da hora que as ordens de operação que tinham sido atribuídas às unidades dias antes eram para ser executadas. Foi-me comunicada pelo Otelo [Saraiva de Carvalho] a necessidade de arranjar uma maneira de dar um sinal para todo o país. Isso era essencial. Era uma questão de ordem militar."

Inspirado num livro que estava a ler naquele momento sobre o golpe de Pinochet no Chile, Carlos Contreiras percebeu que a solução poderia passar por usar uma rádio com cobertura nacional para transmitir uma ou mais músicas pré-combinadas. "Copiei a ideia", admite. Através de Álvaro Guerra, jornalista do República, fez um primeiro contacto com a Emissora Nacional, mas percebeu que não seria viável. Lembraram-se depois da Renascença, que também tinha cobertura nacional, e que a partir da meia-noite tinha o programa "Limite, apresentado por Leite Vasconcelos e conhecido por ter "alguma abertura".

"Encontrei-me com o Álvaro Guerra debaixo do Elevador de Santa Justa, na rua do Carmo, e disse-lhe que a canção escolhida era o 'Venham mais Cinco', do Zeca Afonso. Ele foi à rádio, que ficava ali perto, no Chiado, e eu fiquei à espera. Quando volta, diz-me que o 'Venham mais Cinco' não podia ser porque estava proibido e foi aí que escolhi o 'Grandola'", conta o comandante. "Para nós tinha algum significado que fosse uma música do Zeca Afonso. E como sou alentejano lembrei-me do 'Grândola'. Mas, pensando agora, devia ter escolhido uma música completamente inócua, que não chamasse a atenção. Militarmente não foi uma boa decisão. Depois, correu tudo bem e ninguém se lembrou, mas devia ter levado um puxão de orelhas."

"No dia 22 de abril transmitimos aos nossos camaradas que estavam em contacto com as unidades militares que deviam sintonizar a Rádio Renascença às 00:20 do dia 25 onde iria passar o 'Grândola, Vila Morena, antecedida da primeira estrofe dita pelo locutor. As ordens foram entregues em mão, em folhas escritas à máquina e policopiadas, que foram distribuídas de norte a sul do país." A operação deveria arrancar pelas 3:00 da madrugada.

"Entretanto, e paralelamente, o Otelo e o Costa Martins falaram com os Emissores Associados de Lisboa para pôr a canção 'E depois do Adeus', do Paulo de Carvalho, pelas 22:55, mas o problema é que essa rádio só se ouvia em Lisboa, por isso era tão importante o outro sinal", lembra o comandante. "Eu estava na Parede, depois de confirmar que tinha passado o primeiro sinal, tive que ir até Carcavelos ter com o Álvaro Guerra para lhe dizer que estava tudo a andar. Tinha um papel com a morada, subi as escadas, toco a campainha e aparece uma senhora com um gato. Não era ali. Fiquei atrapalhado. Era no andar de cima. Lá o encontrei. Ele saiu no seu Volkswagen até ao Chiado para avisar o Leite Vasconcelos. Podia ter corrido tudo mal, não é? Imagine que havia um acidente ou qualquer outra coisa?"

Aconteceu ainda um outro percalço: à hora prevista, o locutor colocou um tema de Tony de Matos, mas, após alguns momentos de tensão, o técnico Manuel Tomás, interrompe a canção e coloca a bobina certa. O resto faz parte da história. E a canção de Zeca tornou-se um dos símbolos do 25 de Abril.

Lembrar o 25 de Abril, 50 anos depois

A proposta de classificação destes dois registos do tema "Grândola, Vila Morena" integra o programa de celebração dos 50 anos do 25 de Abril no concelho de Grândola. "Já nos 25 anos tivemos um programa muito extenso e, desta vez, vamos voltar a ter", explica o autarca. "Vamos ter um programa muito ligado às escolas, porque é preciso relembrar a história e contar aos mais novos a importância desta data. E vamos implantar uma obra de arte pública em cada uma das freguesias", revela António Figueira Mendes.

Para assinalar a data, entre muitas outras iniciativas, a artista Fernanda Fragateiro irá criar uma obra de arte que será serigrafada e será ainda inaugurado em Grândola um monumento da autoria de Vhils. A imagem gráfica das comemorações inclui uma ilustração de André Carrilho, que representa um grupo de pessoas segurando um enorme megafone do qual sai um cravo. Como se dissesse que, 50 anos depois, é importante continuar a espalhar a mensagem de Abril.

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