Há um quarto escuro que é uma "poderosa" arma de guerra - e é capaz de estar instalada no seu telemóvel

22 mai 2022, 21:00
Telegram

O Telegram é uma aplicação criada por russos que já foi alvo de uma tentativa de bloqueio pela própria Rússia. Esta app já era importante antes da guerra, tornou-se ainda mais agora. E tem influência direta no decurso da guerra. Como, porquê?

Antes da invasão da Rússia, Nadia Teixeira nunca tinha utilizado o Telegram. Apesar de ter a aplicação de mensagens instalada no telemóvel, só a 24 de fevereiro é que começou a usá-la para obter informação sobre o que se passa na terra natal, Chernihiv, no leste da Ucrânia. "Há muitos chats e muitas noticias da Ucrânia. Sigo canais nacionais e também a nível regional. É mais vídeos de rockets - de onde foram disparados e onde caíram. Também estou em grupos sobre a cidade que dizem quais supermercados e quais farmácias estão abertas. Tudo passa por aqui, no Telegram."

A partir da sua casa em Torres Vedras, esta ucraniana de 43 anos recebe com preocupação as informações da Ucrânia, de onde fugiu - contrariada - com o marido (que não é ucraniano) apenas dez dias antes da guerra. "Não estou descansada, ficava melhor perto dos meus pais. Estou sempre no Telegram a ver se há avisos sobre sirenes de ataques aéreos para avisar os meus pais que ainda estão lá. É uma forma de ter acesso à informação mais rápida e tal como ela é."

O Telegram ganhou destaque no Ocidente com a guerra na Ucrânia mas o sucesso já vem de trás. As origens desta aplicação remontam a 2006, data em que os irmãos russos Pavel e Nikolai Durov criaram a rede social VKontakte (VK), com uma plataforma muito semelhante à do Facebook (até no logótipo). 

"A primeira rede social, a Kontakte, foi um grande sucesso na Rússia, mas depois começou a ter problemas com o Governo", explica à CNN Portugal a ativista russa Ksenia Ashruvaulima. "Os Serviços Secretos queriam tirar o dono [Pavel Durov] de lá e ficar com a base de dados. E conseguiram. Ele ficou sem a Kontakte e em 2013 criou o Telegram."

Este episódio, que aconteceu um ano antes da invasão da Crimeia, fez de Durov uma das caras modernas do contrapoder na Rússia, tudo devido a um pormenor que é uma das bases do sucesso do Telegram - a forma como a app está construída e encriptada faz com que seja difícil de banir ou suspender o serviço em qualquer país, por isso é que tem sido tão usada na Ucrânia. Mas já lá vamos. "Ele é uma figura que não se percebe bem de que lado está. Parece que está do lado 'bom': quando lhe pediram as chaves de acesso ao código do Telegram, em 2018, fala-se que ele enviou uma chave física e fez toda uma campanha de ativismo acerca disso."

Carta alegadamente assinada por Pavel Durov, fundador do Telegram, e divulgada por Alexei Navalny: "Envio as chaves do Telegram com os meus melhores votos", pode ler-se

"O Telegram explodiu e expandiu-se mais do que o Whatsapp na Rússia. Tinha uma experiência de utilizador melhor e no início também tinha uma comunicação melhor entre vários dispositivos. O próprio Governo usava o Telegram", conta ainda Ksenia Ashruvaulima.

Segundo avançou a BBC em março, Durov disse publicamente que ia continuar a proteger os dados dos ucranianos: "Algumas pessoas perguntaram se o Telegram é de alguma forma menos seguro para os ucranianos porque já morei na Rússia. Deixem-me dizer a essas pessoas como a minha carreira na Rússia terminou", afirmou o criador, em alusão ao episódio da chave. Outro facto: ao contrário do que muitos pensam, o Telegram não tem servidores ou escritórios na Rússia - a sede atual fica no Dubai.

Esse seguro quarto escuro

Em si, o Telegram é uma plataforma de mensagens muito semelhante ao Whatsapp, onde as mensagens são enviadas segundo um processo encriptado. Mas, segundo explica à CNN Portugal Rodrigo Adão da Fonseca, especialista em cibersegurança, as duas aplicações têm níveis de criptografia que são distintos - e esta é a grande diferença.

Acautelando que "não há nenhuma aplicação que seja 100% segura", Rodrigo Adão da Fonseca frisa que o Telegram tem mais valências nesse sentido. Isto porque, explica, esta aplicação permite criar salas secretas que usam um nível de criptografia mais reforçado para evitar que terceiros subtraiam informações: "Ao criar uma sala secreta, ela não está associada a ninguém. E permite também fazer uma partilha por link que não identifica ninguém. No fundo é como um quarto escuro - as pessoas podem falar, mas não se podem ver", explica o especialista. Além disso, o Telegram permite de uma forma simples dar um prazo de validade às mensagens, o que dá também uma segurança reforçada.

Os grupos de Telegram facilitam o reencaminhamento de mensagens, já que o alcance das publicações é ampliado pela quantidade de pessoas no mesmo canal. Contudo, a praticidade também torna a app numa fonte favorável de disseminação de notícias falsas e desinformações. Também não há algoritmo que decida o que mostrar aos utilizadores ou o que restringir e a sua arquitetura permite grupos ilimitados. Os comentários são facilmente desativados, transformando os canais num megafone que envia informações para um público de milhões de seguidores.

A verdade e a mentira

O Telegram, que no ano passado atingiu mil milhões de downloads, transformou-se numa fonte de informação para os dois lados desta guerra na Ucrânia. E, no fundo, é difícil imaginar como o conflito estaria a desenrolar-se sem o Telegram. O major-general Agostinho Costa e o major-general Carlos Branco explicam à CNN Portugal que a aplicação é instrumento para ambos os governos e um centro de informações para os cidadãos de ambos os lados. Os funcionários do governo ucraniano - incluindo o presidente Volodymyr Zelensky - contam com o Telegram para tudo, desde reunir apoio mundial até divulgar alertas de ataques aéreos e mapas de abrigos antiaéreos locais. O mesmo acontece com os canais do governo russo e da oposição russa, que agora se encontram isolados da maioria das redes sociais convencionais. Detetives amadores, jornalistas e até oficiais militares vasculham os canais 24 horas por dia, sete dias por semana, para novos detalhes sobre os últimos ataques ucranianos ou desenvolvimentos militares.

Para combater fugas de informação através do Telegram, o governo ucraniano proibiu entretanto a publicação de vídeos que mostram os locais dos ataques - uma vez que muitos desses vídeos eram utilizados pelas forças russas para identificar os locais dos antiaéreos. "Os ucranianos mandavam vídeos de onde caem os mísseis mas eles agora proibiram, dá prisão. Apenas partilhamos os que não se percebem bem onde são", explica Nadia Teixeira. 

Segundo o major-general Agostinho Costa, "inicialmente, quando Yavoriv foi atacada, foi porque os soldados ingleses meteram imagens nas redes sociais". São as consequências de um campo de batalha digital e da guerra de informação. "O Telegram é a forma como a outra parte consegue chegar a nós. É um meio digital russo e, como se sabe, tem havido um bloqueio aos media russos." E isso mostra por si só a falência da medida da UE, diz o major-general: "É um tiro no pé. Foi um erro encerrar a RT e a Sputnik, que os russos utilizam agora através do Telegram. É a nossa janela para chegar à informação russa - mesmo no meio da propaganda, conseguimos tirar algumas ilações. O esforço que foi feito para silenciar a Rússia acaba por ser contornado pelo Telegram. Todos nós o usamos".

Mais: "Esta guerra é completamente diferente. É uma guerra fundamentalmente comunicacional e informacional. Trava-se pelas televisões mas também por aquilo que se comunica. E há que ter essa capacidade de filtragem - há muitas imagens que são verdadeiras mas também há muitas falsas", adverte o major-general.

Trata-se de uma posição partilhada também pelo major-general Carlos Branco, que considera que o Telegram "é um instrumento importante para quem estuda este conflito porque aumenta a oferta". "Democratiza o processo informativo. Uma vez que estamos limitados a ouvir a voz da outra parte - através da limitação dos canais russos -, no Telegram temos acesso a informação que de outra forma não teríamos." 

Também por isso o major-general Carlos Branco confessa ser um "utilizador intensivo do Telegram": "Utilizo fundamentalmente para ver canais. Não intervenho ativamente. Sou um recetor, limito-me a ler e a ouvir as ideias que se transmitem e, como tenho várias fontes de informação, confronto o que vejo no Telegram com informação que recolho noutros meios. No espaço de uma hora posso consultar três, quatro canais e ver indivíduos que defendem posições diferentes. Vejo se se complementam, se se contradizem. Do mesmo evento consigo recolher informações contraditórias. Sou muito cuidadoso para não ser manipulado e, em consequência disso, não manipular a audiência quando falo publicamente", diz Carlos Branco. Agostinho Costa complementa: "Temos imagens enviadas pelos próprios combatentes, temos o drama humano, temos o relatório militar, a conferência de imprensa de Zelensky. Aliás, a Zelensky não lhe sobra tempo de governar, está sempre a comunicar", ironiza.

Exemplo de mensagem de Zelensky no Telegram

"Por enquanto é uma fonte democrática"

O major-general Agostinho Costa defende que o Telegram "é fundamentalmente um instrumento de operações psicológicas". "Faz parte da estratégia dos dois lados. E ambas as partes estão a fazê-lo muito bem: vejamos bem os filmes artísticos que são filmados só para serem publicados no Telegram. Há operações psicológicas que se travam no Telegram. Importa chegar ao adversário pelo psicológico, não é por acaso que há vídeos no Telegram de militares detidos". Tal deve-se, justifica o major-general, a uma "operação psicológica para levar o adversário a acreditar que se for detido vai ser bem tratado". 

"Mas há outro pormenor", sublinha Agostinho Costa. "A primeira coisa que qualquer uma das partes faz quando se depara com um cadáver de um militar é ir buscar os telemóveis e colocar as imagens no Telegram." Há uma exploração permanente da imagem: "Esta é uma batalha de informação, não basta eliminar o inimigo, é preciso tirar-lhe a informação do telemóvel - que pode servir para o incriminar de crimes de guerra, por exemplo."

Carlos Branco resume tudo numa frase: "O Telegram transformou-se numa ferramenta poderosa". E depois acrescenta: "O Telegram passou a ser o instrumento muito importante para quem estuda este conflito porque aumenta a oferta e é muito poderoso para formulação de opiniões - é algo que eu equiparo à grande imprensa mas com uma grande diferença - não há um gatekeeper. Por enquanto é uma fonte democrática, no sentido em que posso escolher quem eu quero consultar, sem ter quaisquer restrições ou censura." 

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