«Go'do não...»: a lenda de «Fatty» Foulke

26 jun 2015, 10:18
Fatty Foulke

O maior guarda-redes de todos os tempos? Pelo tamanho, sem dúvida...

As dúvidas e imprecisões começam no nome de família. Era Foulke, segundo todos os registos fidedignos, mas é William Henry Foulkes o nome que consta na lápide de família, no cemitério de Burngreave, em Sheffield, onde foi enterrado em 1916. Pouco importa: contada ao longo de mais de cem anos, a lenda de Fatty
Foulke muda pouco, ou nada, tenha ou não um «s» no fim do apelido.



Dizer que era o mais famoso dos guarda-redes do seu tempo é dizer pouco: na viragem do século XIX para o XX, o posto tinha escasso tempo de especialização e ainda menos glamour
associado. E glamour
não era propriamente palavra fácil de associar ao filho ilegítimo que a jovem Mary Ann Foulke teve em 1874, e que estava destinado a tornar-se a primeira vedeta das balizas na história do futebol.

Criado pelos avós maternos na povoação de Blackwell, William parecia condenado a uma vida nas minas de carvão, mas a estatura invulgar (1,93) e a vocação para o desporto – críquete e futebol - mudou-lhe o fado. A propensão para o excesso ficou confirmada no incidente que lhe deu início à carreira. Tinha apenas 19 anos quando, num particular entre os mineiros de Blackwell e o Derby County, em 1893, uma saída mal calculada o fez arrancar, a soco, os dentes da frente a John Goodall, estrela dos profissionais e ponta de lança da seleção inglesa.

Ainda distante da corpulência com que viria a terminar a carreira, o jovem William dava nas vistas pela coragem e pela força e a inesperada agilidade funcionava como bónus. Impressionados, os dirigentes do Derby County propuseram-lhe um contrato semiprofissional assim que o jogo acabou.

A proposta era tentadora, mas Foulke, a conselho do irmão, decidiu esperar que a sua fama chegasse a outros clubes. Teve razão: umas semanas mais tarde, ainda antes do 20º aniversário, alertado por um árbitro que funcionava como olheiro nos tempos livres, o Sheffield United bateu-lhe à porta com uma proposta de cinco libras no imediato, mais uma verba significativa por cada jogo em que participasse.

O homem que comeu todas as tortas


A ascensão de Foulke na baliza de um dos grandes clubes ingleses foi feita em paralelo com o aumento dos números na balança. O seu apetite tornou-se mítico logo nas primeiras semanas e tornou-se folclore do Sheffield United, em especial nas refeições em grupo: no seu próprio interesse, todos os outros jogadores estavam avisados para não chegarem tarde à mesa. No livro «The Outsider», o escritor e jornalista Jonathan Wilson compila os registos a cada três anos, testemunhando os estragos: William pesava 84 quilos quando chegou. 90 em 1896. 124 em 1899. 145 em 1902. E perto de 160 em 1905, quando se transferiu de Sheffield para o Chelsea.


Fatty Foulke em ação num jogo de 1902


Para trás ficou um currículo respeitável, com duas Taças de Inglaterra (em 1899 e 1902), um título de campeão (em 1898) e ainda uma solitária presença na seleção inglesa, numa goleada sobre o País de Gales (4-0, em 1897).

Mas, mais do que troféus e conquistas, foram as peculiaridades físicas e de carácter, que lhe garantiram a posteridade. Uma das muitas lendas a seu respeito conta que Foulke foi o pretexto - e primeiro alvo - de um cântico que ainda hoje ecoa nas bancadas inglesas sempre que está em campo algum jogador com peso a mais:

«Who ate all the pies?/Who ate all the pies?/You fat bastard!/You fat bastard!/You ate all the pies»


Com efeito, as fotos da época, em especial as que o mostram no Sheffield United, com o equipamento às riscas (os guarda-redes ainda não tinham camisolas diferentes, e podiam agarrar a bola em qualquer ponto do seu meio-campo) sugerem uma espécie de Obélix, um bom gigante bonacheirão e bem humorado.

Sim, Foulke gostava de contribuir para o espectáculo, arrancando sorrisos aos espectadores pela forma simiesca como se pendurava na trave nos períodos mortos do jogo. E foi sem surpresa que, em fevereiro de 1897, num particular entre as duas equipas de Sheffield, Foulke, por essa altura já carinhosamente alcunhado de Fatty
, partiu ao meio a trave de uma das balizas, conseguindo não se magoar com a proeza.

Como ele próprio admitiu em 1907, numa entrevista ao London Evening News, levava a peito a sua condição de animador dos adeptos, durante os jogos e dos companheiros de equipa, nas viagens em grupo: «Não há melhor momento para uma boa piada do que depois de uma derrota», garantia. Mas a imagem de bom gigante, que o tornou personagem de ficção nas rábulas de variedades da época, era apenas meia verdade: o temperamento de Foulke era também capaz de explosões difíceis de controlar – e isto ajuda a explicar o facto de não ter voltado a jogar pela seleção, apesar de ser durante uma década, o guarda-redes mais famoso do império britânico.



A mais célebre dessas explosões de fúria aconteceu em setembro de 1898, num jogo com o Liverpool. A dada altura, Foulke considerou que um choque com o avançado dos «reds», George Allan, não tinha sido acidental. Como retaliação, pegou no adversário pelos pés, ergueu os braços e arrastou-lhe a cara na lama. Como o jogo não tinha sido interrompido, o árbitro assinalou uma grande penalidade – que, devidamente convertida, acabou por custar a vitória ao Sheffield.

Um outro episódio famoso, com contornos de lenda reza que, na final da Taça de 1902, depois de um primeiro jogo que acabou empatado, teria sido visto pelos convidados VIP, em nu integral, a percorrer os corredores do interior do estádio em perseguição do árbitro. Inspirador de caricaturas, contos juvenis e canções de vaudeville
, o lado de celebridade de Fatty
Foulke foi ganhando ainda mais ascendente sobre o desportista com a mudança para Londres.



Por essa altura, a sua forma já não era acima de qualquer suspeita e os quilos a mais começavam a pesar-lhe nas articulações. Em 1907, com 33 anos, terminou a carreira. O estilo bon vivant
e o gosto pela vida noturna, não lhe permitiram poupar para uma reforma tranquila. Mudou-se para a cidade balnear de Blackpool e, durante uns tempos, ganhou dinheiro com uma barraca de atrações, defender penáltis de veraneantes, na praia. Depois, mudou-se para Sheffield, onde passou a gerir um bar, o Duke Inn.



O álcool foi o excesso final, numa vida toda ela excessiva: o maior guarda-redes do seu tempo – de todos os tempos, se a questão é tamanho e peso – sofria de aterosclerose e hipertensão, mas acabou por morrer de cirrose, com apenas 42 anos. Este soneto do poeta brasileiro Vinicius de Moraes podia ter-lhe sido dedicado:

«Nasci omnívoro: dêem-me feijão com arroz/E um bife, e queijo forte, e parati/E eu morrerei, feliz, do coração/Por ter vivido sem comer em vão»


Soldados desconhecidos é uma rubrica dedicada a figuras pouco conhecidas da história do futebol, com percursos de vida invulgares

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