Como Simone Biles deu a volta e se tornou a ginasta mais medalhada de sempre

9 out 2023, 09:14
Simone Biles nos Mundiais de Antuérpia (Foto EPA_OLIVIER MATTHYS)

Dois anos depois de ter desistido dos Jogos Olímpicos e pôr o mundo a falar sobre saúde mental, a estrela da norte-americana voltou a brilhar. No regresso aos Mundiais, ganhou quatro medalhas de ouro, ficou sozinha no topo e ainda deu nome a um salto.

Simone Biles fechou o ciclo com mais duas medalhas de ouro neste domingo. Deixa Antuérpia como a ginasta mais condecorada da história, 30 medalhas em Mundiais e mais sete em Jogos Olímpicos. Dois anos depois de ter desistido dos Jogos Olímpicos de Tóquio para lidar com a sua saúde mental, ela deu a volta por cima e mostrou que ainda é a estrela que brilha sobre todas as outras. 

«Tinha de provar a mim própria que ainda conseguia ir para ali e rodopiar. Podia mostrar que os críticos estavam errados, que não sou uma desistente. Enquanto estiver ali, a rodopiar outra vez e a reencontrar a alegria pela ginástica, o que interessa?», disse Biles neste domingo, no final da semana que a levou de volta ao topo. «Não estava demasiado preocupada com a contagem ou a cor das medalhas. Só queria ir para ali e fazer os meus exercícios outra vez. Só queria competir outra vez com confiança, ajudar a equipa a pontuar e ver o que acontecia.»

Mas Simone Biles, de volta ao seu melhor, continua a ser única e é garantia de medalhas. Em Antuérpia, venceu quatro medalhas de ouro e uma de prata, aos 26 anos, no mesmo sítio onde há dez anos se deu a conhecer ao mundo. Tinha 16 anos quando em 2013 conquistou também na cidade belga quatro medalhas nos seus primeiros Mundiais, incluindo o ouro no concurso completo e no solo.

A infância difícil e a paixão instantânea pela ginástica 

Era a confirmação do talento da menina que chegava ao topo depois de uma infância difícil em que passou por várias famílias de acolhimento, sem que a mãe tivesse condições para cuidar dela e dos seus três irmãos. Desses anos, recordou em tempos a sensação de estar sempre «com fome e com medo», uma experiência que a levou a associar-se a instituições de apoio a crianças que estão no sistema de acolhimento.

Simone encontrou a estabilidade junto do avô materno e da sua esposa, que a adotaram formalmente aos seis anos. Cresceu em Houston, no Texas, e a ginástica foi amor à primeira vista, desde que entrou pela primeira vez num ginásio, numa atividade no jardim infantil. «Apaixonei-me instantaneamente», contou recentemente numa conversa com fãs nas redes sociais. A mãe, Nellie, contou à revista People que Simone voltou para casa com um recado dos professores, a recomendar que ela se inscrevesse na ginástica. E nunca mais parou: «Nunca faltou a um treino. Mesmo quando estava doente e eu lhe dizia para ficar em casa, dizia ‘Não, tenho de ir treinar!»

Rio 2016, a confirmação de uma super-estrela

Biles, com o talento, a força e a constituição física perfeitas para a modalidade, depressa se destacou. Desde as primeiras conquistas internacionais como sénior em Antuérpia, construiu um percurso inigualável, em crescendo até aos Jogos Olímpicos de 2016. No Rio de Janeiro, ganhou o ouro por equipas com os Estados Unidos e foi campeã olímpica individual em três categorias – salto, solo e concurso completo –, além de ter levado o bronze na trave. Entrava em definitivo para o panteão dos grandes atletas da história.

Vítima de Larry Nassar, também ela

No ano seguinte, fez uma pausa. E no início de 2018 juntou a sua à voz das ginastas que denunciaram os abusos sexuais perpetrados por Larry Nassar, antigo médico da seleção dos Estados Unidos. Foi um processo penoso, com a exposição pública de crimes que se arrastaram durante anos e resultaram na condenação de Nassar, num cúmulo de sentenças que representam na prática prisão perpétua.

Biles continuou a competir e a ganhar. Conquistou seis medalhas nos Mundiais de 2018, quatro de ouro, e mais cinco no Campeonato do Mundo de 2019. Depois veio a pandemia, a perturbar a preparação de todos os atletas, e o adiamento dos Jogos Olímpicos por um ano.

«O peso do mundo sob os ombros» em Tóquio

Biles chegou a Tóquio como grande favorita, com todos os holofotes mediáticos sobre si. Mas não estava bem. Depois de alguns sinais de instabilidade nas qualificações, assumiu que algo não estava certo. «Sinto o peso do mundo nos meus ombros», começou por desabafar nas redes sociais. Ainda iniciou a participação na final por equipas, mas desistiu. Não era apenas a pressão. Biles contou que sentiu que estava mesmo em risco de um acidente grave, depois de ter sentido por várias vezes momentos de confusão no ar, nos treinos e em competição. Aquilo a que se chama «twisties», uma sensação de desorientação espacial e perda de referências. «É aterrador tentar fazer um movimento mas não ter a mente e o corpo sincronizados», disse.

Então, decidiu parar. «Tenho de me focar na minha saúde mental», explicou: «Temos de proteger a nossa mente e o nosso corpo e não fazer aquilo que o mundo quer que façamos. Já não confio tanto em mim. Talvez seja de estar a ficar mais velha. Não somos apenas atletas. No fim de contas somos pessoas e às vezes temos simplesmente de dar um passo atrás.»

A decisão de Biles pôs o mundo a falar sobre saúde mental. Teve muitas reações de apoio, também ouviu críticas. Ela ficou em Tóquio até final, junto da equipa norte-americana, mas foi abdicando de participar nas várias finais individuais. Só voltaria para disputar uma delas – foi bronze na trave.

Meses mais tarde, disse que não devia ter tentado competir em Tóquio. «Eu devia ter desistido muito antes de Tóquio. Se virem tudo que passei nos últimos sete anos, nunca deveria ter participado de outra equipa olímpica», afirmou em 2021, numa entrevista à New York Magazine em que reconheceu também como a afetou o processo de Larry Nassar: «Quando Larry Nassar estava na imprensa, era de mais. Mas eu não queria deixar que ele me tirasse tudo, tudo aquilo para o qual trabalhei desde os seis anos. Então fui além do que podia durante o tempo que a minha mente e o meu corpo permitiram.»

Muitas horas de terapia e o regresso

Depois de Tóquio, fez uma pausa total na competição. Concentrou-se na sua saúde mental e na sua vida pessoal, deixou de pensar exclusivamente na ginástica. Já este ano, casou-se com Jonathan Owens, jogador de futebol americano que joga atualmente nos Green Bay Packers. E fez terapia, como contava em julho deste ano na conversa com os adeptos. «Tenho feito muita terapia, vou uma vez por semana durante quase duas horas. Passei por tanto trauma, portanto é uma bênção poder trabalhar em alguns dos traumas e na cura.»

Deixou o tempo passar, sem fazer grandes planos.

Mas decidiu que queria voltar a tentar, como disse numa entrevista ao site Olympics.com, a falar sobre as razões que a levaram a voltar. «Acho que foi sobretudo pensar se daqui a 10 anos, quando olhar para trás, quero ter algum arrependimento. Quero estar a ver os Mundiais ou os Jogos Olímpicos de Paris na TV e pensar: ‘Wow, se eu tivesse ido para o ginásio e se me tivesse esforçado um pouco…’? Porque posso sempre fazer o que quiser quando a minha carreira acabar. Mas não posso fazer a minha carreira para sempre.»

Regressou à competição em agosto, dois anos depois de Tóquio. E voltou em grande, com o ouro no concurso completo nos campeonatos norte-americanos – a primeira atleta de sempre a vencer o título por oito vezes e também a mais velha, aos 26 anos.

Um salto com o nome dela e mais cinco medalhas em Antuérpia

Estava pronta para os Mundiais. E apresentou-se em grande em Antuérpia, desde logo com mais um salto que ficará batizado com o seu nome. Ela completou pela primeira vez numa competição internacional o Yurchenko Double Pike, um salto com duplo mortal à retaguarda encarpado que recebeu nota máxima de dificuldade e passou a chamar-se Biles II – é o quinto movimento cunhado por ela.

Depois, liderou os Estados Unidos na conquista de uma inédita sétima medalha de ouro por equipas em Mundiais. Essa foi a primeira grande barreira que superou, disse, explicando que já estava mais descontraída quando, dois dias mais tarde, ganhou o ouro também na final «all around»: «Estava muito mais nervosa na final por equipas, porque foi quando tudo aconteceu em Tóquio, estava um bocado traumatizada com isso.»

Não escondeu a emoção no pódio. «Significa tudo para mim. A luta, tudo o que fiz para voltar aqui, sentir-me suficientemente confortável e confiante para competir», disse, depois de brincar com o assunto, a explicar que tinha passado o dia todo com algo no olho, que a fazia lacrimejar.

Houve vários momentos que mostraram uma Simone Biles descontraída em Antuérpia, entre eles o sorriso com que reagiu a um tropeço na reta final do exercício de solo no concurso «all around», que não a impediu de vencer a competição: «Tropecei. Desastrada. Na verdade, sou assim fora do ginásio», disse, ela que em 2017 revelou ter sido diagnosticada com défice de atenção, que trata com medicação.

O pódio dessa final do concurso completo – que teve a portuguesa Filipa Martins em competição, a terminar no 21º lugar - foi também ele histórico, o primeiro integralmente constituído por ginastas negras: a brasileira Rebeca Andrade foi medalha de prata e a norte-americana Shilese Jones levou o bronze. «É fantástico», disse Biles. «Magia das raparigas negras. Espero que isto ensine todas as raparigas que podem fazer tudo aquilo a que se dedicarem.»

Ainda restavam mais quatro finais. Não as ganhou todas. No sábado, tentou repetir o seu novo salto, mas caiu na chegada. Ainda assim, ficou com a prata, enquanto o ouro foi para Rebeca Andrade, outra grande figura da modalidade em grande, a elevar o nível de exigência para Biles, nuns Mundiais em que não participaram atletas russos.

E agora, Paris?

Ainda no sábado, Biles terminou no quinto lugar nas paralelas assimétricas. Voltou no domingo, para fechar com chave de ouro: conseguiu o lugar mais alto do pódio na trave e, por fim, no solo. Superou o recorde de 33 medalhas do bielorrusso Vitaly Scherbo e deixa Antuérpia com 37, sozinha no topo.

 

Daqui por menos de um ano há Jogos Olímpicos. Simone Biles evita falar sobre Paris 2024, insistindo na ideia de que irá passo a passo. «Acho que vamos seguir a mesma abordagem que seguimos este ano, competição a competição e veremos onde chegamos», diz. A sua treinadora vai um pouco mais longe. Cecile Landi, que treina Biles em conjunto com o seu marido, Laurent Landi, assume que essa é a meta: «Para nós, treinadores, é obviamente o objetivo. Vamos prepará-la para isso, se ela quiser.»

 

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