"Se eu não fosse primeiro-ministro de Itália pedia-te em casamento agora": Berlusconi (1936-2023) ouvido por Durão Barroso, Santana Lopes, José Sócrates, Mário David, Martins da Cruz

13 jun 2023, 13:09
Silvio Berlusconi com o primeiro-ministro português, Durão Barroso, em 2004 (Arquivo AP)

Silvio Berlusconi é a prova personificada de que se pode falhar redondamente enquanto governante e ficar para a História, pelas melhores e piores razões, enquanto político

Silvio, na primeira pessoa (1936-2023)

Os testemunhos do presidente da Comissão Europeia que com ele conviveu mais tempo, as histórias dos primeiros-ministros portugueses que o conheceram melhor e a impressão dos embaixadores que sabiam que Berlusconi era, irremediavelmente, sinónimo de uma boa história ‒ ou de uma piada de muito mau gosto

POR SEBASTIÃO BUGALHO

 

Sardenha. Itália. 2003. A herdade era, pura e simplesmente, deslumbrante. Idílica e pensada centímetro a centímetro, pedra a pedra, escultura a escultura, a seu gosto. Esse era um dos traços mais estruturais da natureza de Silvio Berlusconi: o de anfitrião. Naquela tarde, ele, primeiro-ministro italiano, recebia em casa todos os líderes da direita democrática europeia. Os chefes de governos e os líderes da oposição, alguns secretários-gerais e um punhado de líderes parlamentares. O campo de golfe, assegurava repetidamente, cumpria todas as normas ambientais. A única mulher presente, por absoluta coincidência, tratava-se da mulher de um islandês.

Ali, tudo o servido era tricolor. Das entradas às sobremesas, a cozinha preparava cromaticamente cada prato para ilustrar a bandeira italiana. No antipasti, a rúcula, o tomate e a mozzarella tradicionais. Na pasta, pesto verde, pomodoro vermelho e ragu branco cremoso. No gelado, pistachio verde, fragola vermelha e nata. Tudo aquilo era Itália. Tudo aquilo era verde, vermelho e branco. Tudo aquilo era Silvio.

No final do repasto, Berlusconi perguntaria aos convidados se não se importariam de ouvi-lo interpretar a mais recente versão do hino do seu partido, o Forza Italia. Todos acederam. Valentino Valentini, seu chefe-de-gabinete, tradutor e escudeiro, buscou prontamente uma guitarra. E Silvio, para a elite do Partido Popular Europeu, cantou.

2003, imagem retirada de um programa de televisão. Silvio Berlusconi, primeiro-ministro de Itália, canta ao lado do compositor italiano Mariano Apicella durante uma festa privada na residência de verão do governante na ilha da Sardenha. As imagens foram difundidas na noite de 22 de setembro de 2003 num dos canais de televisão de Berlusconi e foram vistas por 11,3 milhões de espectadores. Foto ANSA/AFP via Getty Images

Depois das palmas, quase emocionado, disse-lhes: “Eu sou só um tipo com muita sorte que aconteceu ficar rico. Vocês são estadistas. E não imaginam a importância que estarem aqui tem para mim”.

Todos acreditaram. Era Silvio.

Bruxelas. Bélgica. 2005. O Conselho Europeu fora duríssimo. A apreensão crescia entre os Estados-membros com a invasão do Iraque e o impasse no Médio Oriente. As baixas militares ascendiam aos milhares.

À saída, entre a sala da reunião e o salão onde decorreria o habitual jantar entre chefes de governo, um deles parou no corredor diante de uma das hospedeiras do catering.

Com a pasta debaixo do braço, na frente dos seus homólogos, ajoelhou-se na alcatifa azul europeísta, segurou-lhe delicadamente na mão, beijou-a ao de leve junto aos nós dos dedos e disse-lhe, com um sorriso: “Se eu não fosse primeiro-ministro de Itália pedia-te em casamento agora”. Nunca a havia visto e a idade separava-os por décadas.

Todos acreditaram. Era Silvio.

Hokkaido. Japão. 2008. G8. Os líderes das oito nações mais prósperas do planeta encontram-se numa ilha no Pacífico. É a estreia de Gordon Brown e a despedida de George W. Bush.

8 julho 2008, ilha de Hokkaido, no Japão, reunião do G8. Líderes mundiais acenam depois de pousarem para uma foto de família Da esquerda para a direita: Silvio Berlusconi, primeiro-ministro de Itália; Dmitry Medvedev, Presidente da Rússia; José Manuel Durão Barroso presidente da Comissão Europeia; Nicolas Sarkozy, Presidente da França; George W. Bush, Presidente dos EUA; e Yasuo Fukuda, primeiro-ministro do Japão. Foto Nicolas Asfouri/AFP via Getty Images

A dada altura, Merkel tenta persuadir Medvedev, então presidente russo, a assinar um compromisso ambiental até 2030. O sucessor (e antecessor) de Putin recusa a ideia e sugere antes 2050 como meta. Merkel insiste, com graça: “Dmitry, isso não é justo. És o mais novo de nós todos. Em 2050 ainda estarás cá para ver. Nós é que já não”. E de um canto improvável da mesa ouviu-se uma alternativa. “Ah, mas vamos, pois!”.

O primeiro-ministro de Itália anunciou que, com 71 anos, acabara de abrir uma clínica de gerontologia e que tencionava viver “pelo menos até aos 140”, o que dava “mais do que tempo” para a Rússia cumprir o objetivo ecológico a que se propunham. “E estão todos convidados para vir usufruir”, assegurou.

Todos acreditaram. Era Silvio.

VITÓRIAS, PROMESSAS E COMPROMISSO
O conservador com os hábitos de um liberal. O nacionalista que se apaixonou pela Europa. O democrata-cristão que tinha pouco de crente. O bon vivant que não bebia um copo. O realista que vivia na sua própria realidade.

Silvio Berlusconi era, tanto quanto uma soma de contradições e estridências, uma caixa de surpresas. Não era respeitado mas respeitava. Populista, sim, mas bondosamente, também. Complexo, controverso e de uma simplicidade quase simplória nos momentos de maior à vontade, que eram a maioria.

Morreu segunda-feira, com 86 anos e uma transversalidade de tributos invejável. De Putin a Von der Leyen, do Papa a Fabrizio Romano, o mundo parou pelo menos um minuto para relembrar Il Cavaliere. A prova personificada de que se pode falhar redondamente enquanto governante e ficar para a História, pelas melhores e piores razões, enquanto político.

Filho de um banqueiro de Milão, próximo da Cosa Nostra, deixado por uma mulher que não conseguia suportar a extraconjugalidade do marido, não era exatamente um manancial de virtudes humanas. O seu braço-direito no imobiliário cumpriria sete anos de prisão por ligações à máfia, a sua omnipresença na televisão por cabo seria inescrupulosamente canalizada para fins políticos e uma condenação por fraude fiscal alimentaria milhares de horas dos seus críticos.

Foi, além de tudo isso, o primeiro-ministro mais estável em Itália desde a Segunda Guerra, o que mais tempo esteve no cargo e o que mais percentagem eleitoral conquistou.

“Ele não chega ao poder por combinação partidária ou intervenção presidencial, ao contrário da maioria dos demais. Era ele, ele e só ele”, enaltece quem o conheceu de perto.

Berlusconi com apoiantes durante um comício da Forza em Roma em 1994. Franco Origlia/Hulton Archive/Getty Images

As razões para o seu sucesso? Para quem partilhou a vocação e a função, a resposta é simples: “Era um político que representava a sua própria personagem e não outra. Era autêntico. Os italianos adoravam-no”. E o rasto de polémicas que deixava atrás de si? Outro conhecido mais benevolente justifica: “Ele começou nos anos 90 e morreu no ativo. Passaram-se três décadas. Não há legados perfeitos, muito menos com esta longevidade”.

E, de um modo, é verdade. Não há.

A questão, numa análise objetiva, é que há pouco a que chamar legado além da instituição da direita democrática no regime que nasceria depois da queda dos socialistas e dos democratas-cristãos em Itália, com o processo Mãos Limpas.

Silvio Berlusconi ajudou a esculpir os moldes do que é hoje o sistema político italiano, mas não os preencheu com massa capaz de ser recordada além disso. E ninguém teve tantas oportunidades para o fazer quanto ele. O crescimento económico que prometeu acabou com a quase entrada do FMI em Itália, em 2011. O alívio fiscal que vendeu está, até hoje, por concretizar no seu país.

É, como notam os governantes portugueses que com ele conviveram, uma figura cuja herança é talvez a própria figura. E, como ninguém negou no primeiro dia sem ele, uma figura munida de defeitos.

José Manuel Durão Barroso, provavelmente o português que passou mais tempo com Berlusconi ao longo do seu percurso, primeiro como primeiro-ministro, depois como presidente da Comissão Europeia, reconhece ter encontrado no italiano “uma figura sem dúvida controversa, mas também um colega leal”.

“Nunca faltou à palavra dada comigo ou com a Comissão Europeia”, cumprimenta, acrescentando que, “no seu modo peculiar, Silvio Berlusconi defendia o projeto europeu e os interesses de Itália com uma legitimidade popular que vinha do voto”.

“Mais do que uma vez, pude ver de perto a estima que por ele tinha grande parte do povo italiano”, recorda o português, que visitou Itália mais do que uma vez a convite do  governo de Berlusconi. “Lamento sinceramente a sua morte”, afirma à CNN.

BRINCAM COM ELE, MAS...
Pedro Santana Lopes, que se lembra bem dos conselhos europeus com Jacques Chirac, José María Aznar e Tony Blair, conviveu igualmente com Berlusconi nos corredores de Bruxelas. O episódio do pedido de casamento improvisado à hospedeira do corredor foi testemunhado precisamente pelo ex-primeiro-ministro português, hoje presidente da Câmara da Figueira da Foz.

Roma, Itália, 2004. Da esquerda para a direita: Jacques Chirac, Presidente de França; Tony Blair, primeiro-ministro do Reino Unido; Gerhard Schroeder, chanceler da Alemanha; Romano Prodi, president da Comissão Europeia; Simeon Saxe-Coburg-Gotha, primeiro-ministro da Bulgária; Algirdas Brazauskas, primeiro-ministro da Lituânia; Silvio Berlusconi, primeiro-ministro de Itália; Jose Luis Rodriguez Zapatero, primeiro-ministro de Espanha; Mikulas Dzurinda, , primeiro-ministro da Eslováquia; Anton Rop, primeiro-ministro da Eslovénia; Pedro Santana Lopes, primeiro-ministro de Portugal; Guy Verhofstadt, primeiro-ministro da Bélgica; e Karel De Gucht, ministro dos Negócios Estrangeiros da Bélgica, fotografados na Praça do Capitólio em Roma numa reunião de líderes europeus. Foto Vincenzo Pinto/AFP via Getty Images

“O que me impressionou foi que, 15 minutos depois daquilo, ele estava a jantar com todos os primeiros-ministros da União Europeia e a fazer uma intervenção arrebatadora sobre o impacto estratégico da guerra do Iraque na Europa”, lembra. “Recordo-me perfeitamente do primeiro-ministro britânico, que estava ao meu lado e não era de grandes elogios, comentar 'brincam muito com ele mas é muito, muito inteligente'. Ele estudava os dossiês. E tinha algo que realmente importava: uma ideia do seu país.”

"NÃO CARREGAVA OS MALES DO MUNDO, SABE?"
José Sócrates, que com ele coincidiu como primeiro-ministro no seu primeiro ano de maioria absoluta e nos últimos três de governação, não esconde que Silvio Berlusconi trouxe uma “forma de fazer política que marcou uma época”. Apesar de oriundos de áreas políticas rivais, o ex-secretário-geral do Partido Socialista deixa um cumprimento: “Ele inovou. Era o empresário, o homem-novo a fazer política. Não tanto o programa, mas a personalidade, a liderança, distante dos programas partidários tradicionais”.

Outubro de 2010. José Sócrates e Itália Silvio Berlusconi, durante uma cimeira da União Europeia na sede do Conselho Europeu. Foto Thierry Tronnel Corbis Getty Images

“Fundou um partido do zero, assente no seu património financeiro e mediático, amalgamando tudo isso”, descreve. “Eu não tenho exatamente simpatia por esse trajeto”, admite, constatando ao mesmo tempo “uma dimensão pessoal muito interessante”.

“Era um homem que se fez a si próprio, que não renegava as suas origens, que não escondia ter sido animador de cruzeiros pelo Mediterrâneo fora. Não era um indivíduo sofisticado mas era divertido. Não carregava os males do mundo aos ombros, sabe? Entre a surpresa e a repetição, preferia a primeira. Hoje, já não há tantos políticos assim”, diz à CNN Portugal o último português a conviver com Berlusconi nas mesmas funções.

SEM CARIMBO MAS COM PASSAGEM
Já Mário David, que era secretário-geral do PPE quando Berlusconi integrou a grande família do centro-direita europeu, seleciona três características do italiano, que conheceu bem: a resiliência, o europeísmo e a lealdade.

“Ele é o primeiro resistente ao carimbo de fascista contra um partido novo à direita. Não só resistiu como venceu”, elogia. Para Mário David, ex-secretário de Estado dos Assuntos Europeus e veterano da direita europeia, com a partida de Berlusconi “a direita europeia perde um referencial fundador porque ele, se pensarmos bem, foi o primeiro a consegui-lo, a ultrapassar o rótulo”.

Quanto ao europeísmo, Mário David lembra que o atual governo italiano, com Meloni e Salvini, “só tem chancela europeísta” por causa de Berlusconi. “É ele que indica um ex-presidente do Parlamento Europeu [Antonio Tajani] para ministro dos Negócios Estrangeiros deste governo. A chancela é dele”, defende.

Quando à lealdade, o português sublinha que Berlusconi “nunca rompeu com Putin, apesar de algumas críticas pontuais, tendo chegado a visitar a Crimeia com ele” após a anexação. “O presidente da Federação Russa contava Silvio Berlusconi como um dos seus cinco verdadeiros amigos ‒ isto, segundo o próprio Berlusconi”, sorri ao telefone, lamentando a perda.

Rússia, 3 de fevereiro de 2003. Vladimir Putin, Presidente da Rússia, e Silvio Berlusconi, primeiro-ministro de Itália, riem-se antes de iniciarem um Jantar informal numa tenda no campo perto de Zavidovo, a cerca de 120 km de Moscovo. As temperaturas no exterior eram de 20 graus celsius negativos. Foto Alexei Panov /AFP via Getty Images

António Martins de Cruz, que foi ministro dos Negócios Estrangeiros quando Berlusconi acumulou as pastas de chefe do Governo e da política externa, lembra-se bem das reuniões de MNE em que ambos se cruzaram em Bruxelas. “Tenho de ir embora para o Conselho Europeu, mas preferia ficar aqui convosco”, era o adeus clássico do primeiro-ministro aos homens da diplomacia dos restantes Estados-membros, conta o embaixador.

“Só há direita em Itália porque houve Berlusconi em Itália”, afirma Martins da Cruz, lembrando que Meloni despontou na política pela mão do defunto. “Eu tomaria atenção à operação do charme do PPE à primeira-ministra italiana para percebermos, verdadeiramente, o que Berlusconi representou e o que continuará a representar”, conclui, em jeito de provocação, à CNN- Portugal.

Atenas, Grécia, 17 de abril de 2003. O primeiro-ministro italiano, Silvio Berlusconi, conversa com o primeiro-ministro e com o ministro dos Negócios Estrangeiros de Portugal, José Manuel Durão Barroso e António Martins da Cruz, durante a conferência europeia em que participavam os países então candidatos à adesão à EU. Foto Milos Bicanski/Getty Images

COM CRISTO, POR CRISTO, SEM CRISTO
Segundo a Economist, uma sondagem de 1993, um ano antes de ser eleito primeiro-ministro pela primeira vez, apurou que entre os jovens do seu país Silvio Berlusconi era “mais amado do que Jesus Cristo”.

Passaram-se 30 anos. Por um lado, o sentimento já não seria hoje o mesmo. Por outro, também ele conquistou a sua eternidade. Alguns italianos perguntarão, com legitimidade: a que custo? Outros tantos responderão que, pelo preço, terá valido a pena. Ele, orgulhoso vendedor de si mesmo, sorriria com simpatia, sabendo ter comprado por tuta e meia a mais valiosa das fortunas: a memória do seu povo.

E, em parte, a nossa.

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