No princípio era o verbo e no fim... bola

16 mai 2016, 10:03
Jorge Jesus e Rui Vitória

O bate-boca entre os treinadores de Benfica e Sporting durou praticamente toda a época. Jorge Jesus andou quase sempre à frente, a falar de cérebros e de Ferraris, Rui Vitória foi ouvindo e engolindo, até que no fim gritou. «Campeão».

Quem olha para a forma como a coisa descambou ao longo da temporada não imagina que a relação de Rui Vitória com Jorge Jesus começou com um elogio. Gentileza do treinador do Benfica, claro, que é um diplomata, um cavalheiro dos tempos modernos.

«Sei que foi feita muita coisa boa no passado. Não sou um fundamentalista. Há coisas que vão naturalmente ser mudadas, mas também há coisas que vão ser aproveitadas.»

Esta frase foi dita na apresentação e nesta altura a relação era afável e atenciosa, portanto. Mas há um pormenor que faz toda a diferença: Jorge Jesus ainda não tinha falado publicamente.  A primeira vez que o fez foi em entrevista à RTP, para lançar a Supertaça.

Jorge Jesus foi então... Jorge Jesus.

Um desafiador, um provocador, um brigão pronto para mostrar três dedos (ou quatro), mais um piscar de olho e um sorriso hostil, daqueles que se fazem na rua, com o pé a fugir do chinelo, quando se quer tirar algum vizinho do sério e partir para a discussão.

«As ideias que estão lá são todas minhas. Vou jogar contra uma equipa com as minhas ideias. Não mudou nada, zero, enquanto eu cheguei ao Sporting e mudei tudo. O cérebro daquilo não está lá, mas tudo aquilo continua. Pensei que mudasse alguma coisa porque chegou um treinador novo, com novas ideias, mas até agora nada. Não vejo nada.»

O cérebro soltou a língua e deixou as orelhas de Rui Vitória a arder.

O técnico encarnado, que claramente não convive bem com o confronto, ficou com um problema para resolver, e com uma dor de cabeça para curar. Mas esse também é um mérito de se ser cerebral: a capacidade de jogar em vários campos.

A conferência de imprensa anterior à Supertaça foi naturalmente dominada pelas declarações de Jorge Jesus e não foi fácil a Rui Vitória falar de futebol.

«Que fique claro: quem me conhece sabe que sou respeitador com o meu grupo e com o meu passado. Respondo e falo com quem quero, onde quero e quando a minha cabeça decide. Por isso quem está à espera de alguma resposta, pode abandonar a sala.»

No final do jogo, e apesar do desalento da derrota, Rui Vitória não mudou muito o discurso: Jorge Jesus continuou a merecer dele apenas um sagrado silêncio.

«Se a pergunta for sobre o jogo, respondo, tudo o que for comentários a outro treinador, não o faço. Já disse que falo quando quero, com quem quero e onde quero. A minha personalidade não muda por ganhar ou perder. Penso pela minha cabeça. O treinador do Sporting fica a falar sozinho porque não me apetece falar com ele.»

Rui Vitória tentava desta forma fugir da polémica como o diabo tenta fugir da cruz. Porquê? Porque o treinador do Benfica é um português médio que quer viver como qualquer português médio: em paz e sossego. Sem ter de se chatear ou de ir para a guerra.

Afinal de contas, recorde-se, ele é um homem que faz massagens e exercícios de relaxamento. É um homem, no fundo, que preza o bem-estar físico e psicológico, e que estima a capacidade de não se desgastar com conflitos desnecessários.

Infelizmente para ele, os conflitos insistiam em persegui-lo e em desgastá-lo sem necessidade aparente. Por isso na semana de estreia do campeonato foi notícia uma série de SMS que Jorge Jesus teria enviado a jogadores do Benfica antes da Supertaça.

Rui Vitória respirava fundo e tentava relaxar, mas era cada vez mais difícil.

«Quero encerrar este assunto, mas também quero deixar bem claro isto: não me venham com história de mind-games que isto foi tudo menos mind-games. Ou jogos da mente, para ser mais claro. Foi tudo menos jogos da mente. Não me venham com histórias, nem me contem histórias que eu já ando no futebol há algum tempo e isto não foi nada disso.»

Jorge Jesus, por outro lado, estava como peixe em água. O treinador leonino sempre se deu bem entre conflitos, nunca fugiu a uma boa discussão e por isso ia alimentando a coisa da melhor forma que podia. A maior parte das vezes com um sorriso nos lábios.

«O dérbi é só no domingo, temos tempo. Importante nesta altura é falar do regresso do Salvio. Fico muito feliz. Merece, é um grande jogador, um grande profissional e um amigo. Digo publicamente, não há cá SMS, que isso foi só treta.»

Uma vez por outra, o ataque tornava-se mais cerrado. Numa entrevista ao jornal Record, na primeira paragem competitiva para jogos das seleções, atacou mais duro.

«Aquilo que disse antes da Supertaça foi para mexer um pouco com ele e com o Benfica. E ele levou aquilo para o lado que eu queria, que era um Benfica mais da cabeça dele e menos da minha. Foi por aí que partiu a vantagem do Sporting, claramente.»

Rui Vitória já tinha desabafado umas semanas antes e portanto estava com o espírito leve, levezinho. Pelo que respirou fundo, sorriu e fez de conta que não era nada com ele.

«A minha preocupação exclusiva, enquanto tiver este símbolo ao peito, é o Benfica. Ponto final parágrafo. Levanto-me às 7 da manhã, trabalho das oito às oito, literalmente. Só o Benfica esgota o meu pensamento. Não quero despender energias com mais nada.»

Ora depois disto, o menos provável era pensar que seria Rui Vitória a reabrir nova frente de batalha: mas foi isso que aconteceu. Provavelmente foi um lapso linguístico, mas certo é que as armas saíram do armário e dos dois lados da barricada voltou-se a desconfiar.

«De um lado vai estar uma equipa, que somos nós, e do outro vão estar onze jogadores... não sei se é uma equipa, mas são onze jogadores.»

Ora um dia depois o Sporting ganhou por 3-0 e Jorge Jesus soltou-se.

«Não vou responder diretamente ao Rui Vitória. É fácil depois de ganhar. O que posso dizer é que podíamos ter ganhado por mais, o Benfica não teve uma oportunidade. Era fácil pôr o Rui Vitória deste tamanhinho… Mas não ponho, por respeito.»

Num início de temporada anormalmente rico em dérbis, Sporting e Benfica voltaram a encontrar-se em novembro e com nova vitória leonina, que afastou o rival da Taça.

Mas antes de avançar para o jogo, convém explicar que o dérbi começou na sala de imprensa, e com um cronómetro na mão.

Vale a pena, aliás, contar a história toda: tudo começou quando o Sporting informou a imprensa na quinta-feira que a conferência de Jesus ainda não tinha hora marcada. O Benfica agendou, ainda na quinta-feira, a conferência de Rui Vitória para a s 19 horas e o Sporting informou então, na sexta-feira de manhã, que Jesus falaria às 19.30 horas.

Nessa altura pensou-se que o Sporting tinha esperado para agendar a conferência para depois de Rui Vitória, o que lhe daria possibilidade de ouvir o adversário e responder. O Benfica terá pensado o mesmo, ou não, e o certo é que Rui Vitória se atrasou 33 minutos. O que acabou por provocar que Jorge Jesus falasse primeiro, e não depois como queria...

«Horas combinadas: 19.30. Estamos aqui para falar. Somos pontuais», atirou o Jesus.

No dia seguinte, como já se disse, o Sporting ganhou e depois do jogo acabou por ser Rui Vitória quem explodiu primeiro. Em causa, deixou bem claro, estava a arbitragem.

«Ser bom não é ser bonzinho. Ser bom não é ser bombom. Já são três vezes em que o Benfica é prejudicado. Já chega! Tenho dois jogadores a caminho do hospital por faltas que deviam ter sido assinaladas. Já chega. Peço respeito pelo Benfica. Se é para fazer barulho também sabemos fazer. Até tenho uma voz grossa.»

Jorge Jesus referiu que foi limpinho, limpinho, e seguiu em frente. Festejou o natal em família, celebrou a passagem de ano, e voltou à carga contra Rui Vitória em janeiro. Fê-lo logo no dia 2, depois do Sporting vencer o FC Porto por 2-0.

Afinal de contas não são meia-dúzia de rabanadas e sonhos que lhe adoçam o paladar.

«Lopetegui é um treinador de qualidade. É um líder e está a fazer um bom campeonato. Na 14ª jornada tinha mais cinco pontos do que na época passada. Há quem tenha oito ou nove a menos. E não fazem essas perguntas a esse, só ao Lopetegui.»

O país inteiro percebeu que Jesus estava a falar de Rui Vitória, e Rui Vitória também o percebeu. Por isso explodiu com uma violência até então ainda não vista.

«Meus amigos, perguntas incómodas façam as que quiserem. Carácter não me falta. Mas essas perguntas deviam ter sido feitas a quem estava aqui em maio de 2011, em maio de 2012 e maio de 2013. Não sou mau carácter nem mau colega. Sou o Rui Vitória e serei sempre assim, respeitador dos meus colegas e princípios de ética.»

Rui Vitória engrossou a voz e foi ouvido mais longe, mas nem por toda a gente. Jorge Jesus não o ouviu, por exemplo, e só soube que o rival falara como falara no dia seguinte, quando um jornalista lhe contou: pelo meio até jurou que lhe chamara mau colega.

«Ele disse que eu sou mau colega? Treinador... como eu não o qualifico como treinador, não é meu colega. Para ser treinador tem de se ser muito mais... Se vamos falar de treinadores devem é estar calados e chegar-se à frente. Estamos a brincar, ou quê? Mas enfim. Fi-lo sair da toca, que era o que eu queria. Tirei-o da toca. Vamos ver se aquele Ferrari continua... Quando treinas um Ferrari, tens de ter mãos para ele. Vamos ver.»

As frases de Jorge Jesus caíram mal e mereceram muitas críticas, pelo que Rui Vitória não precisou de engrossar mais a voz. Pelo contrário: foi até mais polido.

«A maioria dos treinadores em Portugal, como o treinador do Sporting, até chegar ao Benfica teve 20 anos de carreira em que andou exatamente como os outros. Com a idade que eu tenho se calhar andava na luta pela subida de divisão, ou pela manutenção.»

O passado recente aconselhava Jorge Jesus a acalmar, até porque a última resposta tinha sido mal recebida: Rui Vitória nunca dissera que Jesus era mau colega, embora tivesse dito que ele, Rui Vitória, não era mau colega. O que deixava a entender que Jesus o era.

Mas textualmente, é verdade, nunca o dissera, e o treinador leonino foi enganado por um jornalista, explodiu na sala de imprensa e não saiu bem na fotografia. Por isso, lá está, o passado recente aconselhava a alguma calma. Mas Jesus não consegue acalmar-se.

«Para chegar à I Divisão tive de trabalhar muito. Comecei na III, subi, fui para II B, subi. Cheguei à Honra e subi. Para conseguir isso, tive de conquistar títulos, para chegar à primeira divisão tive de subir pelo meu trabalho. Há outros que também começaram no Vilafranquense, no Fanhões, no Alcochetense, mas ganharam…bola.»

Havia no entanto um problema: o Benfica vinha numa sequência de vitórias. Desde o início de dezembro que não perdia um jogo e em janeiro era só triunfos. Foram onze vitórias seguidas, aliás, que se tornaram na melhor resposta de Rui Vitória a Jesus.

Por isso quando lhe perguntavam por declarações do treinador leonino, Rui Vitória sorria.

«Ei... Siga. Próxima pergunta», atirou, enquanto encolhia os ombros.

Não há, de facto, melhor som que o burburinho dos triunfos. Por isso o técnico encarnado até levou na brincadeira quando um jornalista lhe chamou por engano... Jorge Jesus.

«Eh pá. Não se engane... Estamos no Estádio da Luz.»

E sorriu novamente. Sorriu muito, aliás, ao longo de vinte e sete vitórias em trinta jogos, que lhe permitiram partir do quarto lugar e chegar à liderança da Liga. Uma liderança, de resto, conquistada em Alvalade, onde o Benfica venceu por 1-0 numa vingança fria.

Ora esse dérbi, refira-se, voltou a incendiar os ânimos. Jesus acendeu o rastilho.

«O Sporting demonstrou que é mais forte, mas muitas vezes as equipas que vão pouco à baliza e jogam como uma equipa pequena também ganham. E hoje foi esse o caso.»

Rui Vitória, que já estava na liderança e deixava as vitórias falar por si, foi parco na resposta: disse apenas uma frase.

«Devia estar a falar do jogo da época passada.»

Foi quase sempre assim a partir daí, aliás. Rui Vitória deixou que as vitórias falassem por ele e deixou também Jorge Jesus a falar sozinho. Até que no último dia disse tudo.

Começou por ouvir Jorge Jesus fazer mais um autoelogio, enquanto dizia que ele, Jesus, criava, e outros, falando provavelmente de Rui Vitória, copiavam. Começou por ouvir este autoelogio, pegou numa garrafa de champanhe e brindou ao título de campeão.

«Nós somos diferentes. Eu não sou como ele. A minha abordagem da vida é completamente diferente. A minha mente funciona desta maneira: primeiro estão os meus jogadores, a minha família, o presidente, a minha equipa técnica, o staff que trabalha comigo, as pessoas que nos ajudam com o pequeno-almoço, e por aí fora. Em 13º lugar surgem os meus antigos colegas de trabalho, depois os professores das minhas filhas, em 23º lugar vem o motorista que uma vez que me levou a Fátima, em 77º está o vendedor de pipocas de uma festa que tive, e em 90º vem o treinador do Sporting...»

Palavra de campeão.

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