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Colunista e comentador

“David Carmo foi utilizado como bode expiatório nos problemas graves do FC Porto”

8 jan, 23:18

Rui Santos diz que o jovem defesa central do FC Porto foi vitima de um caso de delito de opinião que funcionou como um boost de reafirmação da liderança de Sérgio Conceição.

Caro David Carmo,

Quando o FC Porto decidiu pagar ao SC Braga 20M€ pelos seus serviços confesso-lhe que achei um exagero.

Como acho um exagero — mesmo percebendo as vicissitudes que fazem o Mercado funcionar — o dinheiro pago por outros muitos jogadores, independentemente daquele que pode ser o seu valor potencial.

Vale o que vale porque o negócio do futebol assenta na hipervalorização dos activos, como acontece aliás com outras indústrias.

Não é que não acredite nas suas possibilidades e recursos, mas o que o David foi fazendo no SC Braga - lamento dizer-lhe - nunca me pareceu suficiente para justificar esses 20M€.

Vê se me entende: não é drama, o Mercado não é confiável e é uma Maria-vai-com-as-outras. Nunca sabemos o que esperar, hoje está de chuva, amanhã sorri como o sol e os factores que lhe abrem ou fecham o sorriso são mais-que-as-mães. E o papel dos empresários e das comissões acentuam a verve de entidade não confiável. Em suma, os Mercados são como os gatos: muitas vezes sedutores mas quase sempre falsos e só revelam uma parte.

Mas que diabo: foi o David que exigiu ao FC Porto que pagasse 20M€ pela sua aquisição? A SAD presidida por Pinto da Costa e o treinador Sérgio Conceição não estavam de acordo que 20M€ iria ser um grande investimento, desportiva e financeiramente?

O cerne da questão, no entanto, está muito para além do que você vale como jogador e está muito para além da narrativa oficial.

Atalhando, desde já: o David foi usado, injustamente, pelo contexto.

É preciso dizer que Sérgio Conceição, no início da época, deu primazia à dupla de centrais mais experiente que tinha ao dispor: Pepe, com 40 anos e Marcano, com 36. O FC Porto já sabia que tinha, a curto-prazo, um problema de sucessão. E admito que tenha sido a pensar nela que o contratou ao SC Braga, porque nessa altura não havia Zé Pedro — e Fábio Cardoso, ex-Santa Clara, quase nos 30, já chegou ao Dragão sem exigências correspondentes aos ciclos de formação.

É preciso ver — e é uma coisa normalíssima — os 40 anos de Pepe estão a pesar esta época. Os tempos de recuperação são maiores, as lesões não se curam tão rapidamente e é bom ter a noção de que Pepe não dura sempre e está no fim.

Os milagres também têm validade.

Também por isso um clube que deu 20M€ por um jovem defesa central com 22 anos (foi a primeira aquisição da época passada) deveria ter cuidados especiais com a sua gestão, orientação e utilização, sobretudo quando vem de um sistema táctico que não tinha nada a ver com aquilo que iria encontrar no Dragão.

Atalhando, de novo: depois da derrota em casa com o Estoril, em Novembro, mas sobretudo a eliminação pelo mesmo Estoril da Taça da Liga, já em Dezembro, debaixo da tensão da AG que a todos despertou para a brutal realidade das opiniões oprimidas, tantas vezes escondidas e, finalmente, antes do Natal, a derrota do FC Porto em Alvalade, a partir da qual ficou muito claro que a equipa portista não teve andamento para o Sporting, ainda por cima com Pepe expulso (Fábio Cardoso já havia sido expulso na Luz), Sérgio Conceição sentiu-se acossado na sua liderança.

Este é o ponto.

Talvez da forma mais incómoda desde que Conceição assumiu a tarefa de ser mais do que treinador do FC Porto.

A equipa e o balneário não estavam a responder como outrora.

Sérgio decidiu, então, após a derrota em Alvalade, convocar os jogadores para debaterem o desempenho frente ao Sporting. Deu-vos essa abertura. Os relatos apontam para que não tenham havido excessos, cada qual disse o que lhes ia na alma, e assim - segundo os relatos - terá acontecido consigo, David, queixando-se concretamente de falta de carinho do grupo e de diferença de tratamento em relação aos colegas.

Se foi assim, o caso configura um grave delito de opinião.

Nós sabemos que, no futebol, e a culpa é vossa, jogadores, porque não se preocupam com coisas essenciais para além do dinheiro, a democracia não abunda e muitas vezes é nula, mas se um treinador lhes abre a porta para dizerem o que pensam… então é para dizerem o que pensam. Não é para serem apanhados numa armadilha ou para serem despejados no Gulag da equipa B.

Ou a democracia é só para alguns? Ou a democracia, para mentes ditadoras, é só para usar quando dá jeito?

Obviamente que foi para humilhar; não foi para melhorar potencialidades. Não há ninguém que custe 20M€ que aceite pacificamente a decisão política de ser deportado para o Gulag da equipa B.

É claro que foi uma manifestação de… “excomungação da ordem”. É claro que a sua ousadia foi interpretada como uma rebelião contra o regime, e contra duas das suas figuras principais como são Sérgio Conceição e Pepe.

Portanto, David, você foi usado como bode expiatório, foi usado para que Sérgio Conceição, levando a SAD a reboque, desse um novo boost à sua liderança, precisava disso, a ver se a cabina finalmente reagia, mas começa a ser difícil usar apenas o chicote quando o dragão está tão emagrecido, os problemas são muito mais reais e profundos e já não se resolvem tão facilmente ou através do grito ou de medidas mais musculadas.

Se tiver oportunidade, saia, tente reequilibrar-se num ambiente um pouco mais desanuviado, em que as pessoas possam respirar e até, convenhamos, dizerem (com correção) o que pensam. Tem contrato até 2027 e ainda pode ser, noutro contexto, muito feliz no FC Porto.

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