Estrela-Belenenses: um jogo de Reis no distrital

Adérito Esteves , Estádio José Gomes, na Reboleira
7 jan 2019, 23:55

Antigos rivais reencontraram-se no equivalente à 6.ª divisão de Portugal, num dia que foi muito além do futebol jogado dentro das quatro linhas

«Eish! Olha para a fila que já está!»

«Oh, também não queres entrar meia hora antes do jogo…»

«Claro que quero. Isto hoje é especial.»

A Amadora viveu, no domingo, dia de Reis, um momento muito especial. Uma tarde em que o futebol com paixão voltou a ser a estrela que guia e mobiliza multidões. E isso mesmo era percetível em cada conversa que se escutava na Reboleira.

No dia em que Estrela da Amadora e Belenenses, dois antigos rivais, se encontraram no fundo do futebol português, vieram à tona os sentimentos que deviam estar sempre associados ao futebol.

Mais do que rivalidade, viu-se solidariedade. Partilhou-se o desejo de ver o antigo rival voltar à ribalta. E acompanhá-lo, claro. Para o futebol seguir o caminho natural e a rivalidade voltar ao que era.

A cerca de uma hora do início da partida, as artérias que circundam o velhinho José Gomes estavam repletas de público. No mar de gente azul, sobressaía o tricolor histórico que há cerca de uma década sucumbiu nas trevas da insolvência. E que agora luta por renascer.

Após cerca de dez minutos numa fila desordenada – mas ordeira – o Maisfutebol entrou no estádio. O objetivo era viver aquele encontro histórico na bancada. No meio do turbilhão de emoções de um estádio em que ninguém se importou com as cadeiras empoeiradas. Num dia em que até as escadas desapareceram, tal a afluência de público.

Ali, onde se escutavam formas tão distintas de viver o Estrela.

Como a do senhor dos seus 50 anos que deu uma volta sobre si próprio como a apreciar um local onde já fora feliz.

«O meu lugar era ali em cima. Mesmo ao lado da tribuna presidencial. Antes ficava sempre lá, mas há muitos anos que não entrava aqui.»

Mas também as dos jovens que se iam sentar na bancada, mas que podiam muito bem estar no relvado a representar o clube que esta época voltou a ter equipa sénior depois de nove anos de ausência.

«Sabes que eu vim aos treinos de captação. Mas quando soube, já era muito tarde, o treinador até me disse que gostou de mim, mas o grupo já estava fechado.»

Era, contudo, também pelo adversário que aquele dia de Reis era tão especial. O Belenenses vive um momento difícil de definir. A divisão fratricida faz com que o mesmo azul – já não se pode dizer com o mesmo símbolo – surja a competir no topo do futebol nacional, mas também neste sexto escalão, onde reencontrou o Estrela.

Mas por mais que seja difícil explicar as questões de identidade de dois Belenenses, é inegável a capacidade mobilizadora do clube, que se fazia sentir (e ouvir!) a mais de uma hora do apito inicial, e que ecoou durante quase duas horas no interior do Estádio José Gomes.

Honrar as raízes com o sonho de voltar a ver o Estrela florir

No meio da multidão de gente incógnita que assistiu à partida - os númeors divulgados pelo Estrela apontam para mais de 7 mil espectadores -, encontravam-se nomes históricos dos dois clubes. Carrasqueira, Filgueira e João Paulo Brito, por exemplo, marcaram presença entre os adeptos que viajaram do Restelo.

Já na bancada «presidencial» - separada do resto da bancada central por fitas facilmente transponíveis – estavam, incansáveis nos acenos, antigos jogadores do Estrela como Abel Xavier, os irmãos Rui e Jorge Neves, Rebelo ou Renato, que até jogou nos dois clubes e se assumia «arrepiado» com o ambiente que encontrou na Reboleira.

«Ver tanta gente quando estava a chegar aqui foi arrepiante. Na maioria dos nossos jogos na Liga não tínhamos nem um terço do público que está aqui», recorda o antigo avançado. «Os jogos entre o Estrela e o Belenenses tinham sempre mais gente porque há muita gente de Lisboa que gosta dos dois clubes e vinha ver e agora podemos reviver os velhos tempos», continua.

Abel Xavier, Rebelo, o médico Bento Leitão e os irmão Jorge e Rui Neves na fila de cima a asssitir ao jogo; e Renato Anjos em baixo

Recordar, sim, mas também honrar o passado.

E falar no passado do Estrela tem, obrigatoriamente, de passar pela maior de todas as conquistas do clube da Amadora: a Taça de Portugal de 1989.

Dessa equipa, faziam parte Abel Xavier, Rebelo e os irmãos Neves. Todos eles de regresso a uma casa que guarda tantas lembranças, como assumia Abel Xavier em conversa com o Maisfutebol.

«Não esqueço as minhas raízes, que estão aqui neste clube, do qual guardo memórias muito bonitas. Por isso, não podia deixar de estar presente neste dia.»

E no caso do antigo internacional português, «estar presente» foi mais do que sentar-se na bancada a aplaudir aqueles que agora envergam a camisola tricolor que ele vestiu durante seis épocas, entre a formação e os primeiros anos de sénior.

«Tive a oportunidade de voltar a descer ao balneário para falar aos jogadores. Quis passar-lhes a mensagem do quão importante é o papel deles nesta fase do clube e explicar-lhes um pouco da história do Estrela. Quis que eles percebessem que há pessoas do futebol e pessoas que estão no futebol. É diferente. E eles são pessoas do futebol. Têm um papel preponderante porque são eles que fazem as coisas acontecer.»

E se foi especial voltar ao balneário, o que dizer da envolvência criada em torno daquele jogo?

«Incrível. É de enaltecer a nova estrutura pela vontade demonstrada e pela capacidade de erguer o Estrela e por ter percebido que é uma necessidade para a Amadora. E o que temos aqui é a prova de que o futebol é mobilizador e aglutinador. O futebol dá esperança às pessoas. E aquilo que desejo é que o clube consiga fazer este caminho.»

Uma tarde de regressos «a casa»

O mesmo desejo foi expresso por Jorge Neves que assumia «o prazer enorme» de voltar ao clube onde se formou para uma carreira feita, depois, mais a norte, sobretudo no Beira-Mar. Mas que começou ali naquele relvado, agora em tão mau estado.

«Sentir esta envolvência de outros tempos é bom. E é especial estar a assistir ao recomeço de uma era, com um jogo que faz recordar os grandes jogos que se viviam aqui quando o clube estava noutro patamar.»

Jorge passa a bola ao irmão Rui e o discurso mantém-se.

«Fiz questão de estar presentes neste momento simbólico do clube que, felizmente, as pessoas têm vontade de não deixar morrer. E ainda bem», aponta Rui Neves, não escondendo alguma emoção por ver renascer o clube onde fez quase todo o trajeto profissional.

«Esta era a minha casa. Entrei no clube aos 14 anos e saí aos 34. Foram vinte anos aqui, onde fiz toda a carreira, excetuando uma época que estive no Gil Vicente», sublinha.

E ao lado do antigo defesa direito, o homem de quem recebeu a braçadeira de capitão: Rebelo, senhor que vestiu a camisola tricolor durante 14 épocas consecutivas.

«Este dia está a fazer-me voltar ao meu tempo. Aos jogos míticos que vivemos aqui, como a caminhada para a conquista da Taça ou os jogos europeus. Estamos cá em cima, na bancada mas parece que estamos no campo. Hoje senti o mesmo que sentia quando entrava no relvado. A emoção é a mesma», garantia o antigo defesa.

Ele que deixava uma frase que resumia de forma perfeita a tarde daquele dia de Reis que vai ficar durante muito tempo na memória de quem o viveu no Estádio José Gomes: «voltar onde se foi feliz é sempre especial».

E o futebol português voltou onde foi muito feliz durante vários anos. Dentro das quatro linhas registou-se um 0-0. Mas isso pouco importava.

A certeza que fica é a de que todos ganharam. Como se pode ver no vídeo associado a este artigo, instantes após o final da partida.

 

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