Olá, eu sou a Renata e deram-me dez minutos. Fiz isto deles

Cláudia Marques Santos
31 jan 2022, 19:23
Renata Cambra

A porta-voz e cabeça de lista por Lisboa do MAS - Movimento Alternativa Socialista fez-se notar num debate televisivo entre os partidos sem assento parlamentar. Bastaram aqueles 10 minutos que teve para Renata Cambra se tornar trending topic no Twitter. Conseguiu 5030 votos nas eleições. Muito ou pouco? “Em Vila Real ficámos à frente do Chega.” É uma forma de ser muito mas houve tempo que foi pouco: “Se com os dez minutos que tivemos na RTP já conseguimos uma subida significativa, imagine-se com mais”. A CNN Portugal na sede do MAS durante a noite eleitoral

O cão anda com o cravo vermelho na boca a retraçá-lo. Todos os militantes se riem. A flor não é verdadeira mas a dona achou por bem tirá-la e coloca-a antes a adornar-lhe a coleira. Por esta altura já se sabe que os grandes derrotados à esquerda são o Bloco e o Partido Comunista.

No lado esquerdo da sala principal da sede do MAS - Movimento Alternativa Socialista em Lisboa, reservado ao palanque, existem dois cartazes que parecem ter décadas - um é verde escuro e o outro laranja esmaecido. A sede, que fica no segundo andar de um prédio perto da praça do Chile e que tem um Cash Converters no rés-do-chão, tem ar de ter sido um escritório saído dos anos 80, divisórias feitas por paredes de alumínio branco e portas forradas a fórmica a imitar madeira escura. O primeiro cartaz propõe o “fim dos privilégios dos políticos” e o segundo “prisão para quem roubou e endividou o país”. Na faixa inferior de ambos, que são de 2012 e 2015, pode ler-se “faz falta um novo 25 de Abril”, ou não fosse o símbolo do MAS uma versão estilizada do cravo vermelho cujo rendilhado de pétalas deu lugar a uma estrela de cinco pontas, uma ironia que podia ser alusiva ao facto de o MAS ter a sua raiz num movimento que divergiu do Bloco de Esquerda. Serão eles, o PCP e o Livre, os principais alvos da crítica do MAS durante a noite  das legislativas. O seu slogan de campanha foi “acordar a esquerda”.

A cara de Renata Cambra, eleita em novembro porta-voz do partido e cabeça de lista pelo círculo de Lisboa,  ligeiramente de perfil, com olhar sorridente – entre o inocente e o confiante próprio da juventude –, irradia dos panfletos roxos de campanha que se encontram em cima de uma mesa. No debate que a RTP dedicou aos líderes de partidos sem assento parlamentar, a 18 de janeiro, Renata Cambra destacou-se pela clareza com que expôs as suas ideias. É raro não vermos a jovialidade ser um factor de condescendência em termos de confiança num candidato político. É esse o caso de Renata Cambra. Tem um talento natural para falar em público – que diz não ser inato, refere ficar a tremer durante dez minutos depois de discursar – e as câmaras gostam dela. 

Será por volta das onze da noite que Renata discursará para a trintena de militantes que se encontram na sede, entre eles João Faria-Ferreira, cabeça de lista por Setúbal, e Inês van Velze, cabeça de lista por Coimbra. O fundador do partido, Gil Garcia, está presente apenas através do cartaz a azul que se encontra de frente, assim que se entra na sala, a defender o referendo relativamente à questão do euro. Está em isolamento devido à covid-19. O único televisor está ligado na RTP 1, o telemóvel em cima da mesa onde se encontram os panfletos está a transmitir a SIC e o tablet a CNN Portugal.

São agora dez para as oito e as pessoas começam a chegar. À direita da sala há um pequeno balcão de bar de onde começam a servir-se de cervejas. E, numa mesa tapada por uma toalha vermelha, vão sendo colocados os tupperwares e caixas que cada um vai trazendo com comida. No televisor ouve-se José Rodrigues dos Santos a anunciar que faltam dois minutos para a RTP divulgar as primeiras projeções da noite. Junto ao bar, uma bandeira arco-íris, símbolo do movimento LGBT, é a figura central da parede, rodeada que está por cartazes alusivos a diversas lutas e manifestações a que o MAS se tem associado, da Greve Feminista Internacional aos Povos Unidos Contra a Troika, da corrupção ligada às explorações de petróleo, gás e carvão à celebração dos 100 anos da revolução russa.

“Temos 0,1%, não é brincadeira”, diz João Faria-Ferreira, sempre agarrado ao telemóvel a consultar diferentes plataformas de informação. No site do Ministério da Administração Interna vão consultando o número de votos, partido a partido, por concelho e distrito.  São 20h13 e Renata Cambra entra na sala. Está vestida de preto, com um vestido acetinado com ramagens de flores, os sapatos de plataforma que usou durante a campanha e um casaco de cabedal. Começa a cumprimentar os camaradas. No televisor, o Chega está a ver consolidada a terceira posição enquanto força política, seguido de perto pela Iniciativa Liberal. Renata Cambra abre uma garrafa de vinho branco, que serve em copos de papel. Uma fatia de bolo de cenoura com cobertura de chocolate na mão de uma militante parece ganhar vida própria, de tão intenso que é aquele amarelo, lustrado pela luz fria das lâmpadas fluorescentes do tecto.

Entra um senhor que tem ao peito um crachá feito em pano do símbolo do partido. O cão salta para cima de toda a gente, muito contente, e pede festas. João Faria-Ferreira repete a frase acabada de dizer por Duarte Cordeiro, em direto da sede de campanha do PS, “será uma vitória da humildade”, mas em tom sarcástico. A dona do cão abre um tupperware que coloca no chão com bagas de ração. O canal a dar na televisão é agora o da CNN Portugal e, perante os blocos de cores associados a cada partido, Faria-Ferreira diz, a brincar, “até aqui o Bloco [de Esquerda] nos rouba a cor”. O BE está representado a roxo. São nove da noite e fala-se na televisão em ecogeringonça e na eventual necessidade de António Costa necessitar apenas de um pequeno partido para se coligar.

A RENATA

Renata Cambra tem 30 anos, é professora de Português e é precária. Foi assim que se apresentou no debate televisivo, é assim que se apresenta nos vídeos feitos para as redes sociais. É ativista desde 2009, altura em que entrou para a faculdade, em Coimbra. Acabou o curso de Português e foi das que tiveram de emigrar em plena troika. Esteve três anos na Galiza, a fazer mestrado na universidade do Minho e a trabalhar num call center em Vigo. Através do Instituto Camões foi colocada em três universidades alemãs – Frankfurt, Marburgo e Mainz – a dar aulas de português para estrangeiros. Em 2019 veio visitar o avô, doente, e decidiu regressar. “Estava muito farta de ser estrangeira. Frankfurt deu-me muitas oportunidades mas também é uma cidade difícil, não é como Berlim. Sentes-te estrangeira todos os dias”, diz Renata. “Senti que queria ser professora de Português mas aqui.  Entretanto veio a pandemia e ainda andei a vender Vodafone de porta a porta.” Conseguiu uma “contratação de escola”, na Gil Vicente, e mudou-se para Lisboa em abril de 2020, ano em que integra a direção do MAS. Aquando da decisão do Presidente da República de dissolver o Parlamento e avançar para eleições antecipadas, Renata Cambra foi eleita a porta-voz do partido e começaram os preparativos de campanha, em “contrarrelógico”, como refere o militante Daniel Martins. Conseguiram apresentar candidatos por todos os círculos eleitorais com um orçamento de 5 mil euros.

A noite é tranquila, não há grandes sobressaltos quanto a números. Inês van Velze, botas de meio cano Doc Martens, cabelo ruivo encaracolado apanhado em rabo de cavalo, está a fazer malha, sentada numa das muitas cadeiras que se encontram encostadas aos espaços vazios das paredes. “Primeiro, há que expressar o nosso alívio por vermos que, em princípio, não teremos um governo de direita, e de extrema-direita, em Portugal.”

São nove e meia da noite, faltam ainda os números dos grandes centros urbanos, e Renata Cambra faz um primeiro balanço dos resultados. Quanto à subida do Chega a terceira força política, Cambra lamenta ter-se verificado aquilo para que sempre alertou durante a campanha. “Infelizmente, isto significa aquilo que nós temos vindo a dizer, comprova o caminho seguido pela esquerda parlamentar nos últimos seis anos – não recompensou a esquerda de maneira nenhuma. Este perder de força ajudou a reforçar o PS, que já era uma tendência de 2019 face a 2015, e o facto de a esquerda ter estado amarrada à solução governativa do PS permitiu que o descontentamento fosse canalizado pela extrema-direita.”

Os membros do MAS são muito críticos da política do “não mencionar para não propagar” do Bloco de Esquerda e do PCP relativamente ao Chega. Defendem o oposto, mesmo em contexto pandémico foram sempre para as ruas associar-se ou organizar manifestações, como as antirracistas. Foram eles que abafaram o discurso de Ventura em Évora com o canto de Grândola Vila Morena em setembro do ano passado.

São agora dez e meia da noite e Catarina Martins, do Bloco de Esquerda, discursa em direto a assumir a derrota, ao eleger apenas cinco deputados quando em 2019 tinha eleito 19. “‘Não lhes queremos dar palco’, ‘não lhes queremos dar palco’”, precisa apenas de dizer Daniel Martins para Inês van Velze, que se limita a assentir com um esgar de sorriso, enquanto ouve Catarina Martins. “Agora, olhem.” Na parede por cima das cabeças dos militantes sentados a olhar para a televisão isola-se, orgulhosa, a moldura de uma capa do jornal Público com uma fotografia a cheio da famosa manifestação de 15 de setembro, aquando da troika. Em grande plano destacam-se as faixas do MAS, que dizem “basta! de roubar o povo”.

A resposta de Renata Cambra quanto ao que é necessário fazer para renovar a confiança das pessoas na esquerda é pronta: “Com mais autenticidade, com mais transparência, com mais espontaneidade. Esta esquerda parlamentar tem uma atitude sempre muito estudada”. E aponta caminhos de mobilização que a juventude está já a traçar, como é o caso dos movimentos ligados às alterações climáticas.

Essa aproximação às ruas e às pessoas é um dos orgulhos do MAS e Renata Cambra não o esconde, assim como tem consciência do salto gigante que a visibilidade mediática proporciona. Lamenta não ter mais tempo de antena junto das televisões. Daniel Martins sugere até que Renata daria uma boa comentadora de televisão.

“Soubemos sempre da vontade de castigar a esquerda e da pressão do voto útil – mais o facto de não termos tido, apesar de tudo, uma grande visibilidade. Não se compara a visibilidade que teve o MAS, que teve a Renata, com a visibilidade que teve o Livre ou o Rui Tavares”, critica Renata Cambra. A deputada dissidente do Livre Joacine Katar Moreira manifestou publicamente o seu voto no MAS. “Já agradeci à Joacine. E acredito até que tenha tido ce refletir bastante porque a pressão é muito grande hoje em dia.” Quanto a Rui Tavares acusa-o de existir apenas quando há eleições. “É importante termos uma representação parlamentar. Temos um conjunto de ideias que normalmente ninguém consegue ouvir”, explica Renata Cambra. “Acredito que a importância de haver uma representação como a do MAS é garantir que, em momentos que são fulcrais, a esquerda não volta a falhar. Como foi o caso dos ataques ao direito à greve que o governo PS conseguiu implementar e que um governo PSD/ CDS nunca conseguiu fazer. Desde o 25 de Abril que nunca tinha sido feita uma requisição civil.”

São 22h45 e uma das militantes mais velhas fala alto para toda a gente ouvir: “Temos 5030 votos, já dobrámos 2019”. A noite está feita. “Em Vila Real ficámos à frente do Chega”, diz Daniel Martins. O MAS tem feito campanha contra a exploração de lítio na zona. “Na verdade somos a única esquerda que avança nestas eleições, se excluirmos o PS.” E o Livre de Rui Tavares.

“Se com os dez minutos que tivemos já conseguimos uma subida significativa, imagine-se”, diz Renata Cambra, referindo-se ao debate na RTP. “No dia a seguir fui ao mercado de Setúbal e havia gente que sabia quem eu era, sabia quem era o MAS. Isso é muito diferente daquilo a que estamos habituados. Depois fui à estação [de comboios] de Coimbra e a senhora das limpezas sabia quem eu era. Na estação de serviço, a mesma coisa. Recebi mensagens tanto de jovens que votaram pela primeira vez como de casais da minha geração ou pessoas mais velhas.”

João Pedro, um jovem brasileiro que chegou do Rio de Janeiro na sexta-feira para estudar Direito na Universidade de Coimbra, aproveitou a boleia de Daniel Martins e Inês van Velze para vir mostrar o seu apoio ao MAS. Tem vestida uma t-shirt preta que tem escrito em letras garrafais brancas “Marx & Rosa [Luxemburgo] & Lénin & Trotsky & MES”. MES - Movimento Esquerda Socialista, ligado aos movimentos estudantis, é um dos braços do PSOL, um partido brasileiro trotsquista com os quais o MAS tem traçado pontes. “O MAS avança em relação a 2019, deu um salto organizativo muito importante”, conta. “O trotsquismo implica uma dinâmica internacional, da Europa à América. É impossível esta luta avançar sozinha no meu país.”

São onze da noite, alguém desligou o som do televisor. Dois militantes ligam as colunas ao microfone, que se encontra no palanque. Renata Cambra vai discursar. O microfone está a fazer reverb e desligam-no, mas Renata segura-o na mesma enquanto discursa para os militantes na sala. É a metáfora perfeita da sua condição de política. O discurso dura sete minutos e reflete a tranquilidade da noite em termos de resultados. Na contagem final, o MAS viria a ter 0,11% dos votos, 5.990.

“Se a esquerda hoje perde a quantidade de deputados que perde é porque há muita gente que realmente sentiu que a esquerda não fez um bom trabalho. Mas a culpa não é de ser de esquerda, porque não é na direita que estão as soluções.” O discurso acaba, os militantes aplaudem, Renata tem um sorriso. Durante um deles, de garrafa na mão, diz: “A esquerda desceu mas o MAS subiu. Há bastante champanhe”. E distribui o espumante rosé, bruto, pelos diversos copos de papel. Depois dos brindes, os militantes começam a despedir-se, saem primeiro os mais velhos.

Renata Cambra vai servir-se de um café. É final de noite e aparece Arya, a cadela de Renata, tímida mas mais confiante por haver já pouca gente. Encostada ao umbral da porta da sala, cansada, olhos a começarem a cerrar, Renata ainda ouve o discurso de Rui Tavares, é meia-noite. A porta está mesmo ao lado do balcão do bar. O balde do lixo improvisado de uma caixa de cartão de garrafas de cerveja encontra-se cheia, como se fosse um mapa topográfico da noite. Está cheia de garrafas de vidro, de copos de papel, de guardanapos sujos, que ninguém se lembrou de separar.

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