"Vamos pôr em risco a vida de crianças". Falta de equipamentos médicos pode resultar na morte de recém-nascidos e a culpa é desta lei da UE

16 out 2023, 07:00
Criança hospitalizada (Fonte Getty)

Lei da União Europeia exige a recertificação de todos os dispositivos médicos, o que está a provocar a descontinuação de vários aparelhos e vai impossibilitar certas terapêuticas que poderiam salvar vidas

O alerta chegou de especialistas internacionais: há material médico que está a falhar na Europa e que pode pôr em risco a vida de recém-nascidos. Em causa, está a atualização da lei da EU que regula os dispositivos médicos, como medicamentos, equipamentos cirúrgicos e implantes, que está a levar alguns fabricantes a descontinuar e retirar muitos aparelhos do mercado. Entre eles estão os cateteres usados para tratar problemas cardíacos congénitos em recém-nascidos. Em Portugal, a situação também está a preocupar os médicos. "Na prática, isto acarreta para os doentes a necessidade de serem tratados de uma forma mais invasiva, pondo em risco a sua vida ou não serem tratados de todo", avisa o cardiologista pediátrico no Hospital de Santa Marta e nos Lusíadas, José Diogo Martins. Também a cardiologista pediátrica e diretora clínica do Hospital de São João, Maria João Batista, não esconde o receio: "Isso preocupa-nos? Sim, e já está a acontecer, já há material que não é rentável para as empresas e que por isso está a sair do mercado".

A gravidade da situação levou o cardiologista pediátrico irlandês Damien Kenny, especialista em problemas congénitos, a fazer um aviso: "Alguém vai morrer como consequência”. Em declarações à edição europeia do jornal norte-americano POLITICO. Damien Kenny, que escreveu um ensaio publicado sobre o tema no jornal científico Acta Pediatrica, contou que o que os cateteres, stents (pequeno tubo que permite manter uma artéria aberta) e os pequenos balões cirúrgicos destinados a recém-nascidos já começam a escassear. A título de exemplo, o médico irlandês explicava que o que, antes desta atualização do Regulamento de Dispositivos Médicos, era resolvido com um procedimento pouco invasiva feita no próprio berço de hospital, agora, poderá voltar a ser necessário recorrer a cirurgias de peito aberto, somente por não existirem certos equipamentos disponíveis em determinadas alturas.

“Receio que vamos chegar ao ponto em que não haverá uma solução. Por outras palavras, não haverá nenhuma terapia alternativa e alguém vai morrer como consequência”, frisou Damien Kenny.

José Diogo Martins garante que “subscreve” a posição do colega irlandês: “Conheço o artigo, conheço as pessoas que são citadas e, na verdade, a avaliação que fazem é rigorosa, prudente, não populista nem exagerada”. 

“Em vez de fazer um cateterismo através de uma picada de uma veia, vamos estar a fazer uma cirurgia cardíaca que tem um tipo de riscos muito superior”, diz, admitindo: “Vamos pôr em risco a vida de algumas das crianças que já nascem com doença de coração, porque deixámos de poder fazer procedimentos devido ao facto de os cateteres necessários terem deixado de existir”.

Diagrama exemplificativo da atriosseptostomias de "Rashkind” (fonte: MDS Manual)

O que queria a UE com esta lei?

O fenómeno está a replicar-se em toda a União Europeia e deve-se aos efeitos colaterais da última atualização da lei de Bruxelas que regula todos os tipos de dispositivos médicos. Com as novas restrições e consequente recertificação destes dispositivos, muitos fabricantes estão a optar por descontinuar certos aparelhos por falta de rentabilidade, sobretudo, os que previamente já existiam em baixo volume, ou seja, dos quais há menos stock nas unidades de saúde.

A ideia da União Europeia era proteger os doentes de produtos defeituosos ou com níveis de segurança questionáveis, como aconteceu no caso do escândalo britânico dos implantes mamários PIP. Contudo, as regras são particularmente restritas para equipamentos produzidos em pequena escala, que, por si só, já são menos rentáveis.

O Regulamento dos Dispositivos Médicos (UE) 2017/745 (RDM) tem como propósito primário assegurar a qualidade e a segurança de todo o tipo de dispositivos médicos como medicamento, dispositivos médicos, aparelhos cirúrgicos ou até implantes, através da “aplicação das novas regras com vista a uma melhoria da vigilância, fiscalização do mercado e da rastreabilidade, bem como garantir que estes produtos reflitam o estado-da-arte científico e tecnológico mais recente”, como explica o site do Infarmed.

Foi aprovado em 2017, e depois de um ano de atraso devido à pandemia, entrou em vigor a 26 de maio de 2021 e está em período de transição até 26 de maio de 2024, altura em que este problema colateral dos dispositivos descontinuados deverá voltar a agravar-se

Segundo o cardiologista pediátrico José Diogo Martins, este caso dos cateteres é apenas um dos exemplos, pois, há muitos outros dispositivos médicos que já desapareceram ou que se prevê que venham a deixar de existir no próximo ano.  “É um assunto muito grave que nos preocupa muito”, refere o médico. 

Aliás, a cardiologista pediátrica Maria João Batista afirma que Bruxelas tem de agir o quanto antes: “Estamos no timing certo, se não for feito nada agora, neste momento, o pior cenário pode mesmo acontecer”.

"Se estivermos todos distraídos e nos esquecermos que há um grupo pequenino de crianças que tem problemas que dependem de dispositivos muito específicos e que não são rentáveis economicamente para as grandes empresas” o pior pode acontecer, diz a diretora clínica do Hospital de São João.

"Situação podia ter sido evitada"

É este um problema que se restringe ao SNS? A resposta é não, garantem os médicos, lembrando que esta é uma situação "transversal" a todo o serviço de saúde e à União Europeia.

Aliás, toda esta situação poderia ter sido prevista e evitada, explica à CNN Portugal João Gonçalves, diretor-executivo da Associação Portuguesa das Empresas de Dispositivos Médicos (APORMED), cintando os resultados do inquérito publicado em julho de 2022 no site da Associação Europeia de Tecnologias Médicas, a MedTech Europe, em que se podia ler que “54% das empresas responderam que não tinham intenção de transitar parte do seu portefólio para a certificação ao abrigo do novo Regulamento Europeu, prevendo-se uma redução significativa ordem dos 20%”.

A APORMED reconhece que o facto destes aparelhos serem comercializados em baixo volume, e tendo em conta a elevada carga burocrática e custos financeiros envolvidos na transição da certificação para os novos regulamentos, está a ser dado como o motivo pelo qual muitos fabricantes podem descontinuar a comercialização de dispositivos médicos.

"Inaceitável" e um "retrocesso" da medicina

Os recém-nascidos com problemas congénitos não serão os únicos atingidos. Segundo José Diogo Martins, além da cardiologia pediátrica, também os tratamentos inerentes às doenças raras serão muito afetadas. Isto porque, explica, são áreas que utilizam "muitos dispositivos órfãos, que não têm outra alternativa no mercado e que, apesar de serem utilizados em baixo número por ano, têm um impacto absolutamente fundamental no tratamento; seja em pessoas com doenças raras seja em crianças que nascem com problemas cardíacos". 

José Diogo Martins classifica a situação como "inaceitável" e diz ser um "retrocesso" perante a eventualidade de terapêuticas eficazes, menos agressivas e com mais de 40 anos de resultados comprovados desaparecerem. A alternativa é só uma e passa por "usar dispositivos piores, mais caros ou mais inadequados".

Aliás, o Hospital de Santa Marta, onde trabalha, é uma das unidades de saúde nacionais que está envolvida num estudo europeu sobre o uso do cateter nas cirurgias cardíacas em recém-nascidos conhecidas como atriosseptostomias de "Rashkind”. O objetivo é demonstrar à União Europeia que este aparelho utilizado há mais de 40 anos, é seguro e que devia ser isento da nova recertificação sob o risco de ser totalmente descontinuado. 

"Neste momento já não temos alguns dispositivos: ou já foram retirados do mercado, ou estamos a ter dificuldade em arranjá-los", alerta o cardiologista pediátrico José Diogo Martins.

Apesar de tudo isto, a diretora do Hospital São João mantém-se convicta de que, mesmo no pior dos cenários, os médicos "vão encontrar alternativas". Maria João Batista lembra, no entanto, que "se tiver menos dispositivos, o risco associado aos procedimentos é claro que aumenta".

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