A crise e os preços das casas empurraram-nas de volta para casa dos pais. “É um tiro no ego da pessoa ter de se sujeitar a isto”

14 out 2023, 08:00
Casa (Getty Images)

Sara, Francisca e Teresa tiveram de fazer as malas, deixar para trás uma vida independente e voltar para as casas onde cresceram e de onde saíram para serem independentes. Agora, já com filhos. Têm emprego e um salário fixo, mas não conseguem pagar uma casa. O desafio agora é gerir as emoções e fazer com que as relações com quem as acolheu de volta não se deteriorem. Os especialistas deixam alguns conselhos práticos

Sara Henriques tem 37 anos. Trabalha há 12 anos na mesma empresa, mas a sua experiência profissional é muito maior e há muitos anos que não precisava de “prestar contas” a ninguém. Vivia numa casa que pertencia a um familiar e foi obrigada a sair. Quando percebeu que o salário mínimo que recebe não lhe permitiam fazer face ao arrendamento de uma casa para viver com o filho de oito anos, foi um choque. Valeram-lhe os “braços abertos” com que o pai, José Henriques, a receberam a ela e a Rafael, que, na altura, tinha apenas três anos.

José prontificou-se a ceder o próprio quarto no T1 onde vive, em Odivelas, às portas de Lisboa, para a filha e o neto dormirem. Fez do sofá da sala a sua cama. É assim há três anos. “Apesar de ter pontuação máxima para ter direito a uma casa com renda acessível, ainda estavam a meter pessoas de 1983. Mandaram-me inscrever-me de dois em dois anos e é o que tenho feito. Neste momento, é um quarto para mim e para o Rafael e o meu pai dorme na sala. O Rafael não tem o quarto dele, as condições dele. Não tem a privacidade dele. E está a entrar numa idade em que já começa a pedir isso. E mesmo eu… nós mulheres gostamos sempre do nosso canto. Não é a mesma liberdade. É sempre diferente. Já estamos aqui há três anos. Chega a um ponto que começa a ser um pouco cansativo”, admite Sara.

Sara Henriques foi a única pessoa que aceitou contar a sua história dando o nome e a cara. Regressou a casa do pai, com quem a convivência é pacífica. (Arquivo Sara Henriques)

Sara confessa que “o que mais queria” era ter uma casa para ela e para o filho e devolver ao pai a privacidade que sente que lhe roubou. “Não vivemos mal, mas não são condições. Damo-nos muito bem. Somos muito amigos um do outro. Mas claro que agora há sempre mais implicâncias. Começa a haver divergências, mas acaba sempre por se resolver”, diz.

“É um tiro no ego da pessoa ter de se sujeitar a isto de voltar para casa dos pais por não conseguir pagar a renda, apesar de trabalhar desde os 18 anos. Eu gostava de viver numa casa onde coubéssemos todos. Não me importava de continuar a viver com o meu pai, mas queria viver pelo menos num T2, para o meu pai não ter de dormir na sala”, lamenta.

A gestão do espaço e das relações

A falta de espaço é mesmo um dos aspetos abordados pela psicóloga clínica e educacional Ana Isabel Lage-Ferreira, membro da direção nacional da Ordem dos Psicólogos. Mesmo que a casa seja suficientemente grande para acolher os novos membros e não se viva o extremo que viveu José de ceder o quarto à filha, as questões do espaço são sempre delicadas.

“Traz sempre algumas entropias”, resume a especialista.

“Quando são pessoas de quem eu gosto, torna-se mais difícil. Quase não tenho direito de me chatear… E estamos a partir do pressuposto em que a relação já era positiva antes da mudança. Se já não era positiva ou só era positiva porque as pessoas só se viam pontualmente, em jantares ou festividades, é pior. Implica uma grande autoconsciência, uma grande capacidade para pensar em tudo o que nos está a acontecer”, acrescenta Ana Isabel Lage-Ferreira.

“Teresa”, chamemos-lhe assim, prefere manter o anonimato. Não tanto por vergonha da situação, mas mais para preservar os familiares envolvidos, incluindo a filha Maria, de 11 anos. Também há três anos e meio, “um mês antes de começar a pandemia”, separou-se. Tinha “uma vida boa” e uma vivenda espaçosa. Mas o divórcio trocou-lhe as voltas. Engenheira civil e um emprego estável, “ganhava 1200 euros limpos por mês”. Insuficiente para fazer face ao aluguer de uma casa para ela e para a filha, na região de Santa Maria da Feira, onde vive.

“Considero-me uma afortunada, porque os meus pais têm boas condições. Cada uma tem o seu quarto. Sempre tive uma boa relação com os meus pais e eles abriram-me a porta imediatamente. Mas eu gostava de receber os meus amigos, cozinhar para eles. Deixei de o fazer, porque não estou na minha casa. Mesmo a Maria não está completamente à vontade para receber as amiguinhas. Apesar de os meus pais dizerem ‘a casa é tua’, não é. Eu sinto que tenho de lhes pedir permissão”, relata.

Mas se os conflitos, que os há e “Teresa” não os nega, não têm origem no espaço e na falta dele, há outros aspetos da vida em que a interferência é inevitável: “A educação da Maria, por exemplo. Eles acabam por interferir sempre como avós. Eu própria sinto-me, por vezes, no meio dos conflitos entre eles, como casal. Vivo lá, não consigo alhear-me do que se passa. Não quero tomar partido entre eles, mas acabo sempre por estar envolvida.”

E, quando os ânimos azedam, há sempre palavras que uns não gostam de ouvir e outros se arrependem de dizer. “O meu pai, às vezes, no meio de uma discussão lá me diz ‘com 40 anos já tinha a minha independência’. Não o diz por mal e é no calor da discussão, mas magoa sempre…”, confessa “Teresa”.

"Reconstrução"

A psicóloga Ana Isabel Lage-Ferreira diz que “conviver com outra família, que por acaso são meus pais”, depois de anos de independência, nunca é fácil. “Se forem pais, às vezes ainda é pior, porque há sempre algumas implicações no que toca aos limites. Mesmo que seja uma relação positiva, significa sempre uma redefinição destes limites”, explica a especialista.

E os reflexos na saúde mental são quase inevitáveis. “Ansiedade aumentada, tensão psicológica, dificuldade em expressar-me e em assumir a minha autonomia”, enumera Ana Isabel Lage-Ferreira, adiantando que as implicações podem não ficar por aqui.

“A pessoa está sempre numa situação mais frágil, de reestruturação. É muito fácil ficar com as rotinas de quem nos acolhe e muito difícil adquirir novas rotinas. E o que no início pode ser muito securizante, pode tornar-se contraproducente”, acrescenta.

“Francisca”, 26 anos, pede anonimato. Não se sente “confortável”, para expor “com nome e rosto” o que viveu no último ano, embora sinta que o pior já passou. “Não deixa de ser uma situação real, mesmo não dando nome e a cara. Uma situação com a qual as pessoas se podem identificar e sentir que não estão sozinhas”, justifica.

Com menos de 20 anos, rumou do Porto a Lisboa para estudar dança. Cedo começou a trabalhar na área e acabou por abandonar os estudos. Habituou-se a trabalhar a dobrar para pagar as contas. Tenha o trabalho como bailarina, a recibos verdes. Passou mesmo pela revista do Parque Mayer. Mas o mundo do espetáculo é tão precário que fez sempre outras coisas: “Trabalhei em call center, em supermercados, em lojas… fiz tanta coisa. O objetivo era manter sempre as contas fixas asseguradas com este segundo emprego e, depois, os recibos verdes vinha o que viesse.”

“No ano passado, decidi arriscar e apostar só na dança. Tinha alguns contactos com artistas e arrisquei. Mas é um mundo extremamente incerto. Pode haver espetáculos ou não e não há espetáculos todos os dias. Depois, constatei que é maior a procura do que a oferta de trabalho e são poucos os que conseguem ter trabalho suficiente para pagar as contas e sobreviver”, recorda.

Com a escassez de trabalho e empresas a exigirem-lhe uma exclusividade que não lhe permitia procurar rendimentos extra, “Francisca” conseguiu aguentar a exclusividade do sonho apenas três meses: “Voltei para o Porto. O objetivo era reorganizar a minha vida e voltar para Lisboa. Juntar dinheiro para poder alugar de novo um quarto, pagar renda, caução, deslocações”.

“Os meus pais receberam-me bem. Entenderam a situação e tive apoio deles. Mas eu senti que tinha falhado, senti-me derrotada. Como se tivesse caído na vida. Ter de voltar à estaca zero, ter de arranjar um trabalho diferente daquilo que gosto…”, recorda.

Esteve seis meses num emprego que a consumia, a dividir a rotina com a família de quem se tinha separado seis anos antes para ser independente. “Recebi a proposta de vir para a Alemanha. Sou bailarina num parque que tem animação. Agora, vivo do que gosto de fazer e já consigo trabalhar sem viver na angústia permanente de saber como vou pagar as contas do próximo mês”, sublinha.

“Prefiro mil vezes isto do que estar a ter um trabalho que me afastava do meu sonho, só para poder pagar as contas”, admite.

A reconstrução é necessária do lado de quem chega, mas também do lado de quem recebe. A psicóloga Ana Isabel Lage-Ferreira dá um exemplo: “Eu mãe, que já não tinha umas rotinas tão rígidas, e, de repente, tenho outra vez refeições para fazer, até a tomar conta de crianças. Mesmo que não seja obrigada, sinto-me na obrigação de o fazer. Tinham uma rotina que fica interrompida, se não interrompida, fica com algum ruido.”

Assim, é necessário a ambas as partes fazerem o luto de uma vida que ficou para trás ou pelo menos interrompida: “Dar-nos tempo para ficarmos tristes, sem energia. Se não tiver outra utilidade, que o sofrimento nos faça parar para que a reflexão seja mais ponderada. As emoções negativas da frustração, da tristeza, do desamparo têm de ser vividas”.

A gestão das contas e da casa

“Teresa” tem 42 anos e passa pela angústia de não ver luz ao fundo do túnel. “Já me mentalizei que, enquanto não refizer a minha vida amorosa e encontrar uma pessoa com quem dividir contas, não vou sair de casa dos meus pais. Tenho dias em que penso que vou gerir a situação da melhor maneira e me sinto conformada. E tenho dias em que me apetece sair dali e educar a Maria à minha maneira, sem interferências”, revela.

A engenheira civil não quer ser um fardo para os pais. Eles fazem questão de pagar o grosso das despesas da casa, mas “Teresa” esforça-se para contribuir: “Pago coisas residuais. As minhas coisas e as da Maria. Vou ao supermercado e compro as coisas que especificamente são para nós. A Maria faz uma alimentação sem glúten e eu compro as coisas para elas. Pago a internet, a Netflix e os telemóveis de todos. De resto os meus pais assumem as despesas todas da casa. Em termos de tarefas, sou eu que limpo os nossos espaços, passo a ferro a minha roupa e a da maria e tento ajudar os meus pais naquilo que posso, quando é necessário.”

Em casa dos Henriques, Sara é uma rainha entre os homens e a gestão da rotina é simples, assegura. “O meu pai levanta-se às 06:00 e vai logo para o trabalho. Nem damos conta de ele sair. Eu e o Rafael levantamo-nos por volta das 08:30. Às 09:30, deixo o Rafael na escola e vou para o meu trabalho. Por volta das 18:00, está tudo em casa outra vez. Às vezes, há pequenas confusões, mas conseguimos gerir tudo. Damo-nos muito bem. Em termos de lides domésticas, todos ajudam, incluindo o Rafael”, relata.

Os conselhos para um regresso pacífico

Ana Isabel Lage-Ferreira sublinha que, “antes de mudar, é necessária uma clarificação das expectativas”. “Dar um limite temporal à situação, por exemplo, pode ser importante”, começa por aconselhar.

Além disso, é importante, sublinha, fazer “uma gestão das expectativas de limites, dividir orçamento, organizar as rotinas, ‘o que eu espero que tu faças ou não faças’ e também ‘o que não esperar de nós’”. Na realidade, reforça a psicóloga, a comunicação é a chave para resolver problemas que se instalam e evitar mesmo que surjam: “Quanto mais cedo falarmos dos nossos desconfortos e do nosso mal-estar, melhor. Não deixar acumular, porque a forma como vamos lidar vai ser desajustada”.

Para os pais que recebem os filhos, a especialista aconselha que “procurem manter as suas rotinas habituais, que não hipotequem toda a vida por causa desta situação”. “Se eu ia à hidroginástica ou tomar café com as amigas, é importante que o continue a fazer. Se íamos para fora aos fins de semana, é importante que continuemos a ir”, exemplifica.

Para os filhos que regressam ao ninho, Ana Isabel Lage-Ferreira lembra que “os lutos nunca serão fáceis em circunstância nenhuma”, mas podem ser mais fáceis quando temos a capacidade para identificar outros recursos: “Perceber que não perdi tudo… perdi aquela pessoa, perdi aquela casa, perdi aquele emprego e sinto que perdi tudo. Mas, se olhar à volta, percebo as competências que tenho, as relações que tenho, a vida que tenho.”

“Sejam recursos sociais, amigos com quem posso conversar e que me podem ajudar a ultrapassar a situação, sejam recursos financeiros, ou mesmo recursos emocionais. Olhar para mim e perceber que perdi alguma coisa, mas não perdi a minha capacidade de me reestruturar é muito importante”, sublinha.

À família que resulta da junção das duas famílias, a psicóloga lembra que é importante “haver tempo para ambas as famílias estarem sozinhas. Não precisam de fazer tudo juntos e é até muito bom que o não façam.”

 

 

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