"Um modelo único de reforma é uma coisa absurda". Antónia e José Manuel continuam a trabalhar no Estado depois dos 70

27 jan, 08:00

Muitos sonham com o dia da reforma, com o que vão fazer sem ter o trabalho a cortar o dia. E depois há quem faça o oposto. Antónia Metelo e José Manuel Costa ficaram a trabalhar na Função Pública depois dos 70 anos. Tiveram de pedir uma autorização especial. Não são muitos os que têm aderido a este regime: em todo o país, quase 350. Como vai ser o primeiro dia sem trabalhar? Nisso é que não querem pensar. Mesmo que a data esteja marcada

Há vidas que desafiam as probabilidades. A de Antónia Metelo é uma delas. Entre os três e os 18 anos foi emigrante na África do Sul. A língua portuguesa, apesar de falada em casa, não fazia parte da escola.

Hoje, aos 70 anos, é professora de Português. Sim, aos 70 anos, Antónia continua a trabalhar. Está na direção do Agrupamento de Escolas Mães d'Água, na Amadora, onde lida com os processos dos alunos mais problemáticos e decide sobre as necessidades do bar e do refeitório.

Mas são as aulas a sua verdadeira paixão. No último ano de trabalho, Antónia dá aulas de Português a alunos estrangeiros. “Para mim, ser professor é ter turmas, alunos. Sinto falta porque não tenho uma turma. É verdade que fico mais aliviada porque não tenho trabalhos para corrigir, nem testes para preparar.”

Ainda assim, trabalho não falta. Sendo responsável pela área dos alunos numa escola que tem dois bairros sociais como vizinhos, há constantemente contactos com várias entidades para tratar, como a PSP ou a CPCJ. Muito relatório para despachar. É sobretudo trabalho burocrático, mas Antónia continua a olhar para ele como desafio.

“Fiquei a trabalhar depois dos 70 porque me sinto com energia, porque faço o que gosto. E porque fui convidada a ficar até ao início do próximo ano letivo”, porque nessa altura acaba o mandato da atual direção.

“Nunca tive a meta de me reformar aos 66 ou 67 anos, porque não era difícil trabalhar. Pelo contrário, trabalhar com jovens é muito gratificante, sentimo-nos sempre mais jovens. Estamos a contribuir para a sociedade com futuros homens e mulheres. Isso é uma motivação. É verdade que já não temos a agilidade física de há 20, 30 anos, mas a agilidade mental permanece.”

Estado exige autorização: 345 mantêm lugar depois dos 70

Antónia Metelo é uma exceção. Para ficar a trabalhar na Função Pública depois dos 70 anos é necessária uma autorização especial. Fruto de uma alteração à Lei Geral do Trabalho feita em 2019, que prevê essa continuidade “em caso de interesse público excecional”.

Os dados mais recentes, cedidos pelo Ministério da Presidência, mostram que no final de junho de 2023 existiam 345 pessoas a trabalhar no Estado depois dos 70 anos. É um número que se tem mantido relativamente estável, visto que seis meses antes se encontrava nos 298.

A maioria fica na Administração Central (224), seguindo-se a Administração Local (95). Os restantes dizem respeito às regiões autónomas.

A autorização para trabalhar no Estado depois dos 70 anos tem de ser publicada, caso a caso, em Diário da República. Uma análise da CNN Portugal a essas publicações mostra que aqueles que aderem a este regime estão sobretudo em funções de responsabilidade, com destaque para técnicos superiores, responsáveis por determinado departamento. E também professores.

Contudo, neste último caso, este regime está longe de ser um contributo para atenuar a falta de docentes nas escolas nacionais. Basta ver que em 2023 se reformaram 3.500 professores, o número mais alto da última década.

As autorizações para continuar a trabalhar têm a duração de seis meses. Podem ser renovadas até ao limite de cinco anos. Ou seja, o funcionário público pode manter-se em funções até aos 75 anos. Depois disso, é mesmo obrigado a sair.

 

"Estiquei a corda"

José Manuel Costa, atual diretor da Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema, é um destes casos. Em fevereiro passará de atual para ex-diretor. Ficou depois dos 70 para finalizar o mandato.

“Eu estiquei a corda. Fui até ao limite possível. De há uns anos para cá, sabia que me podia reformar, mas nem sequer pensava nisso. Não porque não me queria reformar. Era mais porque tinha coisas para fazer. Mais coisas, mais coisas, mais coisas. Sentia que queria desenvolver mais projetos. E fui ficando.”

E é nisso que José Manuel Costa se concentra nas semanas de trabalho que lhe restam, após quase 50 anos de casa. “Quando percebi o dia em que ia sair, a única obsessão que tenho é o que consigo fazer até lá. Tenho tanta coisa para fechar, que gostava de deixar arrumada.”

E, por isso, não se pensa no vazio que poderá ficar no primeiro dia da reforma. José Manuel Costa tem outros projetos em mente, como voltar a dar aulas de cinema. “Não faço a mínima ideia de como será o primeiro dia em que não vier para a Cinemateca. Não consigo conceber. Será o que for.”

Porque esta paixão começou de uma forma inesperada. Pelo cinema deixou a engenharia para trás. “Surgiu esse milagre.” Na Cinemateca Portuguesa, as colaborações esporádicas foram-se tornando mais constantes. Passo a passo, até à direção. “O sonho de poder continuar era tão grande que fui ficando. Teria ganho mais dinheiro como engenheiro. Mas recebi sempre um segundo ordenado, que é o prazer de estar aqui. Tive a grande sorte de trabalhar num sítio que correspondia a uma área da minha paixão absoluta.”

Em cinco décadas de filmes, não consegue escolher o preferido. “É impossível.” Contudo, tem sempre uma resposta na ponta da língua quando lhe fazem essa pergunta: “Rio Sagrado de Jean Renoir, de 1951.”

A chamada de "parabéns"

No dia em que fez 70 anos, a 23 de fevereiro de 2023, uma dúvida tomou conta de Antónia Metelo. “Nesse dia nem sequer fiz o sumário, porque não sabia se podia fazê-lo. Fui dar aulas e recebi uma chamada. A dar-me os parabéns.”

Não identificando a voz, esta professora ficou na dúvida sobre quem estaria a congratulá-la. Era da Direção-Geral da Administração Escolar, a confirmar que podia continuar a trabalhar. Antónia adotou um tom mais formal. E perguntou se podia continuar a assinar os relatórios que tinha pendentes. Era essa a maior preocupação.

“Depois de fazer o pedido, durante meses não me tinham dito nada. Estranhei. Nem sequer tinha dito aos alunos que havia a possibilidade de sair. Estava preocupada por deixá-los em fevereiro sem professor, quando tinham um exame para fazer em junho.”

Antónia Metelo assegura que não fica por uma questão económica. “Recebo o equivalente à minha reforma. Uma metade é paga pela Caixa Geral de Aposentações, a outra pela escola. Pagam-me também o subsídio de alimentação. E uma pequena gratificação por estar na direção. Mas não é por isso que eu fiquei. Fiquei porque faço o que gosto.”

“Quando me for embora, vou sentir que cumpri o meu dever. Foi uma experiência gratificante. Nunca tive outro sonho senão ser professora.”

E o último dia, como vai ser? “Muito difícil. Vai ser o fecho de um ciclo.” Contudo, Antónia Metelo não perde muito tempo a pensar como será o futuro. Não há planos para o primeiro dia da reforma. “Não defini, nem quero.” Há que “encontrar outros projetos onde possa ser útil também”. A casa de campo, no Alentejo, está à espera para meter as mãos na terra.

Um novo modelo de reforma?

Quando se estica o tempo do trabalho, aprende-se a olhar para o tempo da reforma de outra maneira. Muitos passam a vida a sonhar com o dia em que, finalmente, terão todo o tempo para as coisas que gostam. “Isso diz muito sobre a forma como a nossa sociedade vê e concebe o trabalho”, aponta José Manuel Costa.

“Percebo que haja trabalhos tão violentos, desgastantes ou desinteressantes que as pessoas anseiam pela reforma. Acho muito bem que tenham direito à reforma. Mas esta ideia de um modelo único de reforma para toda a gente, com uma fronteira de idade, é uma coisa absurda.”

Olhamos para a reforma como uma meta, um dia de corte com as rotinas estabelecidas. Talvez, diz José Manuel Costa, pudesse ser de outra forma. Mais gradual.

“Provavelmente seria mais interessante que as pessoas se pudessem ir reformando. Por exemplo, trabalhando menos horas, menos dias, mas continuando a trabalhar nas áreas em que tiveram grande experiência ao longo dos anos.”

Seria também, defende, uma forma de assegurar a passagem de testemunho a quem chega. Porque, entre saídas e entradas, há sempre conhecimento que se perde. Conhecimento que é fundamental sobretudo quando se lida com a memória coletiva, como na Cinemateca Portuguesa. “Em vez de desaparecerem de um dia para o outro, podiam continuar a vir cá, passar o seu testemunho para outros. Isso nem sempre tem acontecido.”

“Portanto, acho que não devia haver um modelo de reforma. Devia haver uma flexibilidade muito grande em função do tipo de trabalho, da relação com o trabalho, do seu gosto. E, a partir de certa idade, se calhar, muita gente podia ser útil no seu trabalho, de outra maneira, menos pesada, trabalhando menos dias, ir combinando isso com outras atividades que possa querer ter, mas não fazer essa fronteira radical”, resume.

“Dentro de poucas semanas, vou estar reformado. O que é que isso quer dizer? Não sei muito bem.”

Queixas do 'patrão'

Mesmo quando se tem décadas de trabalho, mesmo quando se decide adiar a reforma, há queixas sobre o patrão. Neste caso, o patrão é o Estado. Com o aproximar das eleições, regressam as promessas e evidenciam-se áreas que nunca serão uma prioridade.

Antónia Metelo lamenta que os professores, enquanto classe, tenham perdido “um percurso delineado”. “Não estamos a ser muito bem tratados pelas entidades responsáveis. Os professores preocupam-se sobretudo com a escola e com os seus alunos. Colocam isso sempre em primeiro lugar. A luta deve continuar.”

Já José Manuel Costa destaca a pouca atenção que a cultura e as artes têm no discurso político, mesmo em época de confronto eleitoral. “A política era muito melhor se desse mais prioridade à cultura. É um reflexo da sociedade, que olha para a cultura como uma espécie de coisa acessória. Primeiro, temos de resolver o resto da vida. E, por isso, fala-se praticamente só de economia nos debates políticos. E a cultura também é uma necessidade vital. É algo que estamos todos a perder quando não está no centro.”

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