"Carlos" guarda mais de 7 toneladas de água em casa. Paulo promove formações em técnicas de sobrevivência e criou uma comunidade online com mais de 5.000 seguidores. O que têm em comum? Fazem da preparação um estilo de vida - tudo para o caso de um dia alguma coisa correr inesperadamente mal
Esperam o melhor, mas preparam-se para o pior. Este é o lema de quem vive com a consciência de que o pior pode mesmo acontecer - mas tem ferramentas para conseguir lidar com isso. Não, não nos referimos necessariamente a uma catástrofe. Nem ao estereótipo apocalíptico. “É tudo o que de mau possa acontecer, situações que fogem ao nosso controlo”, explica "Carlos", que desvenda à CNN Portugal o que é um prepper.
“O prepping não é uma fantasia, é uma preparação contínua que envolve tudo: recolher, preparar, discutir, definir estratégia, estar em contacto”, indica.
Portanto, se está a pensar num prepper apenas como alguém que armazena mantimentos numa cave à espera do fim do mundo, desengane-se. (Menos a parte dos mantimentos, mas já lá vamos).
"Carlos" - nome fictício nesta entrevista - recusa dar a cara publicamente, sobretudo para garantir a sua segurança. É que “um prepper que não é anónimo, é um alvo”, justifica, questionando: “Numa situação de crise, se não estiver preparado, qual é o primeiro sítio a que vai recorrer?."
Estar-se preparado é um trabalho contínuo, “um estilo de vida”, prossegue. Com experiência em ajuda humanitária em locais de risco, o que viu no terreno serviu como um alerta para o que pode correr mal, estejamos ou não num cenário de catástrofe. “A vida real mostra-nos uma necessidade implícita de nos mantermos bem, dar suporte à nossa família e ao nosso núcleo”, refere.
E para isso, conta, vai aprendendo várias competências que o permitam "depender o menos possível de outras pessoas": "Se for atacado por um javali, tenho de saber prestar cuidados mínimos para salvaguardar o bem estar de alguém - seja suporte básico de vida, saber usar torniquete...".
LEIA TAMBÉM
Prepping: cinco coisas que deve saber em caso de emergência
Por outro lado, como "preparador", o investimento que Carlos decide fazer é em alimentação. "Desloco-me a produtores de arroz e compro 300 kg para o meu grupo – como se fosse uma pequena aldeia de entreajuda", revela o prepper, indicando que o arroz pode ser guardado 10 anos em sacos mylar. "Tal como o feijão, grão e lentilhas", acrescenta.
"Se há pessoas que sabem que eu tenho 300 kg de arroz, sou um alvo.”
Além do arroz, Carlos armazena cerca de 80 kg de grão e tem sempre sete toneladas de água em casa, em rotação trimestral. Isto porque, refere, duas pessoas tipicamente gastam 5 a 7 mil litros de água por mês. E se está a questionar-se sobre o que acontece à comida quando está perto da data de validade, fique descansado: "Tipicamente quem pratica prepping a sério, é o grupo de pessoas que mais ajuda os necessitados. Até porque tudo o que pode perder validade, é doado a instituições", garante o prepper.
Aliás, Carlos considera que a primeira competência fundamental para a sobrevivência é precisamente aprender a cozinhar. "É a base de tudo: alguém que aprenda a cozinhar, aprende a fazer conservas, a conhecer os alimentos autóctones, que misturas pode fazer, quais as fontes animais e vegetais. No fundo, as pessoas hoje esqueceram-se do que os nossos avós faziam."
E o stock que armazena não serve apenas para a sua família, mas também para um núcleo de amigos. "Estamos a prepararmo-nos para qualquer ocorrência. Se acontecer alguma coisa mais séria, tenho a casa X, Y , Z com que contar. Há uma rede de segurança."
"Falamos em terramotos, guerras, catástrofes… Mas hoje em dia com a inflação, ou até o desemprego, se tivermos alguma preparação não temos de nos preocupar com comida durante X tempo”, observa Paulo Guerreiro, fundador da Portugal Preppers. Pode ser uma coisa mínima, mas garante que faz a diferença. “Se tiver armazenamento, com a inflação ultimamente se calhar agora ainda estamos a consumir arroz ao preço de quatro ou cinco meses atrás.”
"No início da guerra na Ucrânia, o meu grupo fez uma grande compra de cereais - quer para alimentação, como para armazenar", relembra Carlos.
A comunidade prepper em Portugal
Em Portugal, a comunidade prepper move-se sobretudo nas redes sociais, salvo alguns encontros presenciais ocasionais. "Criei o grupo em 2012 quando surgiu a premonição do Calendário Maia e se falava do fim do mundo”, conta Paulo, “Na altura, fiz uma pesquisa para ver o que existia em Portugal e, apesar de haver gente que praticava esta área da preparação, a designação ‘prepper’ não existia.” Reúnem-se nas redes sociais, discutem técnicas e partilham informações.
Dentro da comunidade, há grupos (como células) de pessoas que se juntam consoante os interesses com que se identificam mais - "seja de facas e armas ou de pessoas que reavivam aquilo que se aprendia anteriormente", refere ainda Carlos, que é também membro ativo na comunidade online.
Já no canal de YouTube da Portugal Preppers, que conta também com muito público brasileiro, são publicados vários vídeos sobre equipamentos, entrevistas em direto e tutoriais.
Apesar do conceito original do prepping ser norte-americano, o fundador da Portugal Preppers assegura que, no nosso país, as práticas associadas ao movimento “não são tão levadas ao extremo como acontece nos EUA”, mas sim para autossuficiência. É por isso que existem "mochilas de emergência para 72 horas", entre outros kits, cuja informação está disponibilizada no site, ou a prática comum de acumular mantimentos em casa.
Só que a preparação também traz reveses: tipicamente as comunidades preparacionistas estão associadas à visão extrema de indivíduos à margem da sociedade - a ideia do lobo solitário, paranoico e com armas, tanques e abrigos nucleares, que os preppers portugueses rejeitam.
Há, sim, o sentimento de alerta constante: “Por vezes a ignorância é uma bênção. Às vezes basta ir a um café para pensar e sentar-me no sítio mais seguro”, observa Carlos.