Alice Neto de Sousa tem poemas para dizer (e talvez um dia também para publicar): "As pessoas têm necessidade de pôr rótulos em tudo, mas isso é muito redutor"

9 abr 2022, 22:00
Poeta Alice Neto de Sousa (Foto: André Ferreiro)

Tornou-se conhecida em janeiro, sobretudo por causa das redes sociais. Desde então, teve convites de editoras e já disse um poema em frente de Marcelo Rebelo de Sousa. Apesar de tudo, Alice, de 28 anos, mantém os pés na terra e pede tempo para crescer: "Ainda estou muito verde"

"Eu era pequena, escola primária, inocente. Mas curiosa nas palavras. Peguei nos lápis, aqueles, com todas as paletas de cores."

É assim que começa a história de Alice, com um desenho para pintar com lápis de todas as cores.

"- Professora.

- Sim.

- Que raio é um lápis cor de pele?

Levei uma reprimenda, uma criança de tão tenra idade, a questionar a autoridade. E olhava para o lápis, olhava para a minha pele, olhava fixamente para aquele lápis cor… de pele."

O poema continua. É um poema longo, mas que se ouve com prazer. Que se ouve, sim. Na verdade, o poema não está publicado em nenhum livro. Para o conhecer é preciso ir ao youtube e procurar aquele dia em que Alice Neto de Sousa o disse no programa "Bem-Vindos", na RTP África. E depois é só ficar a ouvi-la. E não saber se gostamos mais das palavras que ela escreveu, se da maneira como as diz. Quase como se nos contasse uma história. A sua história. "A minha língua é o lápis, onde escrevo a cor dos meus sentimentos. Quem vai perder tempo a escrever versos de amor, com estes tempos, estas tempestades, estes sismos, ismos."

Foi com este poema, intitulado "Poeta", que Alice Neto de Sousa ficou conhecida, em janeiro passado, um ano depois de se tornar presença regular naquele programa de televisão. O vídeo espalhou-se pelas redes sociais. Partilhado infinitas vezes por todos os que tinham acabado de descobrir as palavras desta poeta de 28 anos e sorriso doce. De então para cá, Alice recebeu inúmeras mensagens, convites, desafios, elogios. E ela, apesar de feliz, começou a sentir-se assoberbada por ter tantos olhos postos nela.

Alice Neto de Sousa não quer falar da sua vida, da sua família, dos seus sonhos, das suas angústias. "Só falo sobre poesia", avisa, logo no início da conversa. "Só falo sobre poesia", relembra, quando as perguntas deslizam para outros temas. "Percebo que as pessoas tenham curiosidade e ao início até fui bastante cooperante, mas agora estou a gerir melhor", diz. "Dar entrevistas ocupa muito tempo. Não tenho tido tempo para escrever", justifica. Passou a dar menos entrevistas e quando aceita falar já não aceita falar sobre tudo. 

Basta-nos saber isto: Alice Neto de Sousa, liboeta de 28 anos, fez um mestrado em psicomotricidade, está a tirar um curso de língua gestual portuguesa, trabalha numa instituição e "é poeta entre outros ofícios". Não poetisa, poeta. Não escritora, poeta. "Inquieta por natureza nas palavras e nas escolhas, gosta de liberdade de pensar e de sentir" - é assim que se define.

"Eu acho que penso mais do que escrevo, seja lá o que for. Esse é o ponto de partida", diz. "Pensando no meu percurso, eu sempre escrevi, isso é um facto. Sempre tive essa necessidade de escrever." Escrevia poemas mas também escrevia outros textos, durante um breve período até chegou a ter um blogue onde escrevia sobre filmes e séries, também fez crítica cultural para uma revista universitária e depois escreveu sobre eventos culturais para uma publicação online. "Fiz coisas muito interessantes", recorda. Pelo meio disto tudo, a poesia.

Alice não se lembra exatamente quando e como é que começou a escrever poesia. E garante: "Sempre pensei a poesia sem saber que estava a pensar a poesia, tem muito a ver com a forma como se vê o mundo e se sente. Por exemplo, quando era pequena e tinha uma grande fantasia, ouvia o barulho das folhas e pensava que aquilo eram as folhas a falar". A necessidade de escrever surgiu mais tarde, mas não assim tão tarde: "Algures entre ser criança e ser adolescente comecei a tentar passar para o papel".

Apesar de já escrever há muito tempo, só recentemente passou a considerar-se poeta. "Foi já na vida adulta. É difícil dizer uma altura no tempo sem estar a mentir, mas acho que o ponto-chave para começar a assumir-me como poeta foi aquele momento em que já não estamos com a pressão de ter que estudar. Fiz a licenciatura, fiz um mestrado e a partir daí eu pensei que talvez houvesse outras partes da Alice que ainda não tinha explorado. Então, sim, nessa altura em que já não tenho pressões externas, é quando começo a querer investir mais na poesia."

Não tem uma fórmula para escrever: "É muito como uma conversa, a poesia vem como um diálogo entre o que o que tenho dentro de mim e o que eu quero passar para fora quando estou a escrever". E esse diálogo pode ser sobre vários assuntos. "Acho que volto a sempre às minhas inquietações, porque se eu estiver feliz e se estiver num momento bom, não estou a pensar em escrever sobre isso, estou é a viver esse momento maravilhoso", explica. "A poesia vem de outras inquietações, quando não está a ser assim tão fácil gerir alguma situação existencial. E pode ser algo simples como uma pedra na calçada em que eu esbarro e de repente tem aquele sentimento de vergonha. Mas também pode ir para assuntos mais profundos como olhar para as prostitutas do metro do Martim Moniz. Desde que me inquiete. Varia mesmo muito o espectro do que eu posso escrever".

Apesar de tudo, Alice Neto de Sousa não se considera uma escritora. "Ah, não, eu nunca disse que sou escritora", faz questão de precisar. "É preciso muito para ser escritor, é preciso ler muito, escrever muito, um grande conhecimento que eu ainda não tenho. Eu sou poeta. Aspiro a escrever, mas tenho muito que aprender. Sinto-me bem no meu papel de poeta, gosto de ser poeta e assumo-me humildemente como poeta, porque é um lugar mais livre para mim. Admiro muito todos escritores. Espero algum dia poder ser escritora também. Agora estou mais na poesia mas vou vou passando por outros lugares, por agora fico-me pela poesia, até ver."

Quando olha hoje para o primeiro poema que publicou, numa antologia poética, em 2016, intitulado "Só mais um pouco", Alice faz uma careta: "É terrível", ri-se. "Na altura estava muito convicta de que era um bom poema e fiquei muito orgulhosa, mas hoje já não escreveria aquilo daquela maneira", diz. "De qualquer forma, faz parte de uma fase da minha vida. Eu trabalhava num call-center e lembro-me de levar para o trabalho o volume da antologia, que é enorme, e eu andava com aquilo de um lado para o outro, só para poder mostrar o meu poema de uma página.  E houve um evento de lançamento onde estavam todos os outros poetas e eu estava mesmo feliz, vesti a minha melhor roupa, levei as minhas irmãs", recorda. "Foi um momento muito importante, que contribuiu para que eu estivesse aqui hoje."

Além de escrever, cada vez mais ler/dizer poesia em voz alta tem-se tornado importante para Alice Neto de Sousa. Tudo começou ainda nos tempos de estudante, quando Alice lia tudo (mas mesmo tudo) em voz alta para conseguir aprender as matérias. "Quando comecei a ir ao programa da RTP África, percebi que não estava a dizer bem os poemas e comecei a exigir um maior rigor a mim mesma. Nem sempre vou dizer bem, engano-me muitas vezes, mas não tem a ver com falta de preparação, tem a ver com questões da emoção, do que estamos a sentir quando dizemos um poema. Dizer poesia dos outros é sempre mais difícil. Quando são os meus poemas, para além de ler, eu gosto também de dizê-los de cor. Gosto bastante porque dá outra camada. Quando dizes algo que está mesmo dentro de ti, vais dizê-lo de uma outra maneira." Então, Alice começou a frequentar encontros de spoken word e slam poetry e dá cada vez mais importância a esse lado da oralidade dos seus poemas. Dizer um poema em voz alta é dar-lhe "um corpo, uma presença", diz.

No mês passado, foi uma das convidadas para a sessão de abertura das celebrações dos 50 anos do 25 de abril. Perante o Presidente da República, o primeiro-ministro e tantas outras personalidades, Alice Neto de Sousa disse o poema "Março", confessando que lhe treme a voz quando pensa em liberdade mas que, ainda assim, não se cala: "Percebo que mais vale falar do que silêncios entornados, porque o silêncio é como este entardecer, é como o início da dor quando começa a doer, é uma liberdade tísica a querer gritar e tudo quanto se ouve é oco."

As palavras de Alice são contundentes, mas ela recusa rótulos. Não quer ser definida como ativista e explica: "Acho que de certo modo eu sou uma pessoa ativa na minha vida, mas não é isso que me define. Vou dizer isso de uma forma muito franca e potencialmente ligeiramente polémica: como eu tenho um certo tipo de características, quase tudo o que eu diga é como se fosse uma espécie de ativismo. Estes rótulos são escorregadios. Não percebo muito bem esta necessidade excessiva de colocar as pessoas em caixas. Eu sou poeta, é o mais importante. Eu sou poeta e vou falar de várias inquietações. Se Carlos Drummond de Andrade fala da pedra é só uma pedra no caminho. Mas se eu a dizer então a pedra tem outro significado. É um caminho muito redutor. As pessoas estão com muita pressa em começar a dar-me alguns rótulos mas é para elas, não é por mim, é para ajudá las, porque nós temos esta parte da nossa mente que gosta de catalogar tudo. Mas a parte boa da poesia é que nós podemos expandir essas caixas. Então, o meu posicionamento é ser poeta mas ativa nos temas que eu quiser, desde uma pedra na calçada até os temas sociais mais contundentes".

Nos últimos meses, Alice Neto de Sousa recebeu vários convites para publicar a sua poesia, vindos de editoras pequenas e de outras já bastante conhecidas. "Alguns são muito aliciantes. Não sei se os convites vão estar abertos eternamente mas eu tenho procurado perceber o que é que me faz sentido neste momento e ainda não estou completamente certa de qual o caminho que devo tomar. Acho que o mais importante é continuar a ler, a escrever, a aprender e depois, quando me sentir mais confortável, comunicar. Por isso, à partida, a notícia é que se calhar não vou publicar para já." Alice não tem pressa para ter esse "carimbo da popularidade".

"Aquilo que me faz mais sentido, agora, é a poesia para ser dita. Enquanto não escrevo, vou dizendo como se fosse uma conversa, um diálogo de mim para o mundo e o mundo tem respondido por isso enquanto fizer sentido eu vou por aí". diz. Sente-se "ainda muito verde". E promete: "Espero evoluir e ser cada vez melhor. Se as pessoas gostam de mim agora, espero que gostem mais no futuro." 

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