Esta consulta é também parte integrante do Núcleo de Planeamento e Intervenção Sem-Abrigo (NPISA), de Lisboa, desde 2019, sendo elo de ligação com outras estruturas deste núcleo ou dentro do Serviço Nacional de Saúde, para que os casos aqui identificados possam ser encaminhados para a resposta mais adequada.
Entre os vários balneários públicos de Lisboa, há um que tem uma consulta de enfermagem “um pouco ‘sui generis’”, muitas vezes fora do gabinete, em que as pessoas sem-abrigo podem contar a sua história e ser ouvidas.
A consulta de enfermagem é um projeto de extensão universitária da Universidade Católica Portuguesa, existe desde 2015 no Balneário Público de Alcântara e junta o ensino, a investigação e a prestação de cuidados.
Foi criada dois anos depois de um projeto para tentar perceber quem eram os utilizadores destes equipamentos municipais.
A responsável por este projeto, que inclui seis profissionais, entre quatro especialistas em enfermagem comunitária e dois em saúde mental e psiquiátrica, contou à Lusa que por esta consulta passaram já cerca de 700 pessoas, apesar de o número de atendimentos ascender a mais de 3.000.
Na opinião de Amélia Simões Figueiredo, trata-se de uma consulta “um pouco ‘sui generis’”, tendo em conta que “muitos dos atendimentos não são [feitos] em consulta, são feitos no banco do balneário” e muitas das conversas acontecem fora das portas do gabinete clínico e sem serem registadas, “porque as pessoas não querem”.
Carlos Marques tem 48 anos e, nos quase dois anos de utilização diária do balneário, nunca quis ser visto na consulta, contou Amélia Simões Figueiredo.
No entanto, no dia da reportagem da Lusa, quis que fosse diferente e entusiasmou-se com saber o seu peso e poder medir a tensão arterial.
À Lusa, admitiu que seria bom poder ir à consulta de enfermagem para ter a doença mais controlada.
“Eu agora estou bem, mas de repente dá-me uma coisinha má e eu quero ser acompanhado”, explicou à Lusa, referindo ter uma doença autoimune, além de doença do foro psiquiátrico.
Além de Carlos, a professora e enfermeira Amélia Simões Figueiredo viu uma mulher, que apenas aceitou ser filmada enquanto media a tensão.
É alemã, chegou a Portugal com o namorado, que entretanto a deixou, e agora dorme numa fábrica abandonada, não tendo recursos para regressar ao país de origem.
“Estive a falar com ela ali no banco e basicamente ela só chorou, chorou”, relatou a professora.
A responsável explicou que o propósito da consulta é sobretudo ouvir quem está numa situação vulnerável, valorizar a história, deixar a pessoa verbalizar os sentimentos, mas também tratar de questões mais objetivas, como, por exemplo, ver uma ferida num pé.
“As pessoas em situação de sem-abrigo vestem a roupa dos outros, calçam os sapatos dos outros. Os sapatos dos outros têm a forma anatómica dos outros, têm também ADN dos outros e, portanto, há muitas feridas nos pés”, explicou a responsável, apontando que esta avaliação, como o pesar ou medir a tensão, acaba por ser um chamariz para a consulta.
Esta consulta é também parte integrante do Núcleo de Planeamento e Intervenção Sem-Abrigo (NPISA), de Lisboa, desde 2019, sendo elo de ligação com outras estruturas deste núcleo ou dentro do Serviço Nacional de Saúde, para que os casos aqui identificados possam ser encaminhados para a resposta mais adequada.
Quem utiliza o balneário público são sobretudo homens, solteiros, que vivem sem qualquer fonte de rendimento, normalmente com doença mental associada e em condição de sem-abrigo. Já à consulta vão sobretudo mulheres. No entanto, o perfil tem vindo a alterar-se na ultima década.
O funcionário da Junta de Freguesia de Alcântara responsável pelo balneário explicou que há pessoas muito diferentes a utilizar o equipamento, desde quem tem avarias de eletrodomésticos e não tem dinheiro para a reparação, a quem não consegue pagar o gás, até às pessoas “com casa e com empregos de todos os dias”.
Desde a pandemia de covid-19, em 2020, e com a crise da habitação, Vitor Peito diz que há cada vez mais trabalhadores das plataformas de transportes coletivos (TVDE) a tomarem banho no balneário, apontando que quando “abrem as bagageiras [dos carros], a bem dizer aquilo é o guarda-vestidos deles”.
Na opinião da professora Amélia Simões Figueiredo, os balneários são uma espécie de “sentinela” e podem funcionar como observatórios de fenómenos emergentes, como a imigração, por exemplo, além de serem “estruturas muito importantes” para apoiar pessoas que, na maioria das vezes, não têm capacidade para gerir a sua saúde.
Quanto a fenómenos emergentes, Vitor Peito não tem dúvidas de que cada vez mais gente vai aparecer para tomar banho no balneário e dá como prova, não só o facto de naquele dia terem aparecido quatro pessoas pela primeira vez, como a média de utilizadores andar entre as 85 e 90 pessoas por dia, sendo que o balneário funciona apenas na parte da manhã, entre as 07:30 e as 12:00.
“É muito. Ao início quando vinha para aqui, há quase 14 anos, não enchia as cabines. Agora, às 07:30 estão aqui pessoas que me enchem 10 cabines que eu tenho para usar. E fazem fila à porta. Não é brincadeira”, relatou o responsável.