Câmara de Alcobaça viabiliza construção de 32 apartamentos junto a arriba instável

24 out 2023, 07:00
Imagem Google da Pedro do Ouro (DR)

Construção está prevista na Pedra do Ouro, a muitos poucos metros da praia. Moradores falam em crimes contra a natureza e que projeto coloca em risco quem vive na zona. Recorreram à Justiça, fizeram denúncias e já há entidades responsáveis no terreno em ações de fiscalização

Pedra do Ouro, Pataias, Alcobaça. Quatro blocos, com dezenas de apartamentos, junto a uma arriba instável, em cima de uma linha de água, numa zona de Proteção Costeira de nível II? Sim, é possível e foi autorizado pela Câmara Municipal de Alcobaça. Moradores entregaram uma providência cautelar na Justiça, para impedir que projeto avance. Falam num atentado à natureza e garantem que todos os que vivem na zona, incluindo quem comprar aqueles apartamentos, vão ficar em risco.

O empreendimento é antigo. O alvará de obra data de 2004, mas recentemente a autarquia prorrogou o prazo de construção. Já tinha sido realizada uma parte da obra dos mesmos construtores, com outra licença de construção: três blocos de apartamentos perpendiculares ao mar. Mas estavam pensados mais quatro blocos paralelos ao mar, com 32 apartamentos. Incluem um piso abaixo da cota (cave) e dois acima (rés do chão e primeiro piso). E são estes os que estão incluídos neste alvará de 2004.

Depois de mais de uma década com tudo parado, as obras regressaram e os moradores da área resolveram agir. Helena Jorge foi uma delas. Quem ali vive é o pai, mas isso não a impede de zelar pelo bem dele e de todos. “Fiz denúncias porque dos dados de que já dispunha e das informações que, entretanto, recolhi on-line, seja da página da própria Câmara Municipal, como da página da Agência Portuguesa do Ambiente (APA) e páginas associadas, bem como de legislação que consultei, estou convicta de estarmos a assistir a vários crimes”, afirma à CNN Portugal.

E Helena não está sozinha. Um vizinho deu entrada com uma providência cautelar para parar os trabalhos no estaleiro, mas a Justiça ainda não se pronunciou. Helena fez várias denúncias, a diferentes entidades, entre elas, a Inspeção-geral da Agricultura, do Mar, do Ambiente e do Ordenamento do Território (IGAMAOT) e estas queixas parecem ter tido frutos.

O IGAMAOT terá considerado as informações relevantes e enviou um ofício para APA e para a Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional de Lisboa e Vale do Tejo, solicitando “averiguação e atuação em conformidade”, por considerar serem as entidades que melhor podiam aferir a legalidade, ou não, da construção naquela zona. 

APA e CCDR LVT já realizaram ações de fiscalização

Questionada pela CNN Portugal, a Agência Portuguesa do Ambiente (APA) confirmou que recebeu “várias participações relacionadas com a operação urbanística” em causa e que “levaram à realização de ações de fiscalização no âmbito das suas atribuições enquanto autoridade nacional da água”.

Após as ações de fiscalização a APA tem agora “em curso a análise pericial e a recolha de mais informação, entre os quais, a clarificação da Câmara Municipal de Alcobaça que é a entidade responsável pelo licenciamento e competente para aplicar e fazer cumprir localmente o Plano Diretor Municipal (PDM) de Alcobaça, sendo este o instrumento de gestão territorial que articula os vários regimes, nomeadamente, os decorrentes do Programa da Orla Costeira Alcobaça – Cabo Espichel (POC-ACE), que revogou o Plano de Ordenamento da Orla Costeira (POOC) antecedente, e da Reserva Ecológica Nacional”.

Ou seja, após receber os esclarecimentos solicitados a APA explica que “pugnará pela proteção dos recursos hídricos e demais recursos naturais, bem como pela prevenção de novas vulnerabilidades suscetíveis de colocar pessoas e bens em situação de risco, atentos à instabilidade na face da arriba e à extensão das faixas de salvaguarda que se prolongam até ao local em contenda”.

Por fim, a APA garante que “não foi consultada previamente, quer por particular, quer por entidade pública”.

Também a Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional de Lisboa e Vale do Tejo (CCDR LVT) confirmou à CNN Portugal “a denúncia encaminhada” pela IGAMAOT.

A CCDR LVT explica que “a mesma está em análise pelos serviços, em sede da servidão e restrição de utilidade pública Reserva Ecológica Nacional, nos termos do respetivo regime jurídico, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 166/2008, de 22 de agosto na redação atual, aplicável ao local conforme Aviso n.º 10426/2013, publicado a 21 de agosto”.

Acrescentando ainda que “no âmbito das diligências do respetivo processo de fiscalização foi feita a articulação com a APA e oficiada a Câmara Municipal de Alcobaça para informar sobre a natureza e enquadramento dos trabalhos denunciados, pelo que aguardamos resposta para avaliação da sequência aplicável”. Ou seja, o processo de fiscalização foi aberto e estão a ser aguardadas informações adicionais, pedidas à autarquia, para ser tomada uma posição final sobre a questão.

Outra obra já tinha sido embargada

Os moradores não sabem o que esperar no futuro. Até porque na mesma área já estão construídos três blocos de apartamentos. Um processo que não foi imune a problemas, já que a obra chegou a ser embargada por Ordem da Direção Regional do Ambiente e do Ordenamento do Território de Lisboa e Vale do Tejo, no início da década de 2000, por considerar que se encontrava numa área de domínio público marítimo. Mas tudo acabou construído.

Quem conhece bem a zona considera que a localização dos novos apartamentos é mais problemática, não só porque ocorre em cima de uma linha de água, identificada pelo próprio PDM da Câmara Municipal de Alcobaça, mas também porque está numa área de potencial instabilidade, junto a uma arriba.

A licença em 2004 foi emitida em nome de Domicilium Limited, atualmente uma empresa com sede nas Ilhas Caimão, mas também no nome de Mª Teresa Cout. Rap. de Mag. Ort. de Oliveira, cujo nome está identificado no cartaz junto ao local da obra. À época, tanto a empresa como Maria Teresa tinham a mesma morada na Marinha Grande.

Mas em 2023, foi feito um averbamento no alvará passado pela autarquia, substituindo a Domicilium Limited como cotitular da licença pela Sociedade lmobiliaria do Cais, Lda, com morada em Cascais. O termo da obra ficou estabelecido para 11/10/2024, num segundo averbamento.

No Alvará de construção emitido pela autarquia a que a CNN Portugal teve acesso, a morada da obra não corresponde ao seu local efetivo. O Alvará refere um “prédio sito em Alva da Vitória, da freguesia de Pataias”, mas os blocos de apartamentos são na Pedra do Ouro.

“O poder dos dinheiros, as injustiças e as impunidades”

Todo o processo que envolve a obra sempre levantou suspeitas entre os moradores da Pedra do Ouro. “Falo de crimes do foro ambiental, do ordenamento do território, da urbanização e edificação; falo da existência de indícios de documentos manipulados, de irregularidades de processo/ irregularidades administrativas. Falo de estudos geotécnicos desadequados e de negligência técnica. Falo de evidências de irresponsabilidade civil dos promotores da construção”, admite Helena Jorge.

Confessa que “ainda acredita nas instituições da administração pública, apesar de todos os constrangimentos de recursos humanos e de meios técnicos. Acredita que há gente íntegra. E que, no fim disto tudo, ainda possamos assistir a um momento de justiça”.

O que fez vai além de ser filha de uma pessoa que mora na Pedra do Ouro: “Enquanto cidadã e contribuinte, custa-me ficar parada e impotente a assistir àquilo que infelizmente nos vamos habituando: o poder dos dinheiros, as injustiças e as impunidades”. 

“Às vezes, imagino que quem comprar um apartamento daquela construção, daqui a 50 anos, quando acabar o empréstimo, será o feliz proprietário de uma ruína. Parece que se perdeu a noção do tempo e das gerações, fala-se tanto das alterações climáticas, sustentabilidade. Tanto se escreve e fala. Mas o que se faz? O que vamos deixar aos nossos filhos, é um Portugal que perdeu a beleza da sua paisagem natural, desfigurado por um edificado em risco iminente de ruína à beira-mar plantado”, conclui.

No terreno onde será feita a construção existem ainda edificações anteriores a 1844, hoje parcialmente em ruínas – quatro fornos de cal, um moinho e edificado de apoio. Ruínas que os moradores gostavam de ver mantidas e devidamente estudadas.

A CNN Portugal enviou um email à Câmara Municipal de Alcobaça colocando algumas questões sobre esta obra, mas até à publicação deste artigo não obteve resposta.

Além disso, a CNN Portugal não conseguiu contactar a Sociedade lmobiliaria do Cais, Lda. O único contacto existente é um telefone que pertenceria a um antigo contabilista da empresa, já falecido. 

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