“O medo de falhar”. Pediatra fala do maior desafio de ser mãe e pai: “A parentalidade perfeita não existe!”

30 set 2006, 00:00
Pediatra Hugo Rodrigues

Mais do que as birras ou a saúde dos pequenos, o grande problema que os pais e as mães enfrentam chama-se "pressão externa". O pediatra Hugo Rodrigues lembra, em entrevista à CNN Portugal, que "as vidas perfeitas do Instagram não existem!" e que não há problema em errar, no que toca à parentalidade, até porque "há sempre um amanhã"

Hugo Rodrigues entra em casa dos portugueses pela televisão, onde participa regularmente em programas de daytime e troca por miúdos as dúvidas que assolam muitos pais e mães. Natural de Viana do Castelo, é lá que exerce o que mais o apaixona: a medicina pediátrica. Trabalha na Unidade Local de Saúde do Alto Minho e é docente na Escola de Medicina da Universidade do Minho e formador European Ressuscitation Council na área de Emergências Pediátricas.

Autor de vários livros sobre pediatria (“Pediatra para todos”, “Primeiros Socorros – Bebés e Crianças”, “O Livro do seu Bebé” e, acabado de lançar, “Porque é que o Meu Filho se Comporta Assim?”), é também no blogue “Pediatria para Todos” e nas redes sociais que faz um verdadeiro serviço público, na abordagem de temas relevantes ligados à saúde das crianças e à parentalidade.

A propósito do lançamento do último livro, Hugo Rodrigues conversou com a CNN Portugal sobre os mais sérios desafios que enfrentam pais e mães da atualidade e de como as redes sociais vieram alterar essa nobre tarefa. Desmistifica essa grande companheira sobretudo das mães, a “culpa” e assegura que, também na parentalidade, errar é humano e não há mal nenhum nisso: “Salvo em raríssimas exceções, há sempre um dia de “amanhã” para poder fazer melhor e ajustar as nossas escolhas. Sempre!”.

Na mesma conversa, abordou ainda o drama que vivem muitos pais da falta de tempo para os filhos. Um problema que afeta a família inteira: “Os filhos precisam de passar tempo com a mãe e pai, sem dúvida alguma! Mas também a mãe e o pai precisam de passar tempo com os filhos e isso tem de ser sentido como uma necessidade recíproca. A atenção e o tempo são o melhor que todas as mães e pais podem dar aos filhos, portanto é fundamental que, mesmo quando o tempo é escasso, isso seja uma verdadeira prioridade na organização do dia-a-dia das famílias.”

Quais são as maiores angústias e as mais frequentes que os pais trazem às suas consultas?

Essa pergunta é difícil…

Acho que a maior e mais frequente de todas é o medo de falhar. Isso é perfeitamente normal quando falamos de filhos, porque, na verdade, não há maior vulnerabilidade do que ser-se mãe ou pai. No entanto, o que é importante é que, ao longo dessa aprendizagem contínua da maternidade, o medo de falhar dê lugar à felicidade e satisfação de se poder fazer verdadeiramente a diferença pela positiva na vida de alguém. E, melhor ainda, saber que esse “alguém” são as pessoas mais importantes da vida de todos os pais: os seus filhos!

Claro que essa angústia pode ser “desdobrada” em muitas outras, como a amamentação, o sono, a alimentação, o sucesso escolar ou as doenças, por exemplo. Mas em todas essas situações acaba sempre por existir o receio de não se ser suficientemente bom, o que não é justo para as mães e pais, porque ninguém acerta sempre, como também ninguém falha sempre.

Na sequência desta pergunta, gostava também que me falasse dos maiores desafios da parentalidade atualmente.

Penso que um dos maiores desafios é conseguir gerir as pressões constantes a que as mães e pais estão sujeitos. E, se há uns anos, elas vinham principalmente das mães (e sogras!), atualmente vêm de todo o lado, muito à custa do papel das redes sociais. É importantíssimo reforçar a ideia de que as vidas perfeitas do Instagram não existem! Na maior parte das vezes, são completamente construídas para ser atrativas, mas o problema é que criam uma pressão enorme às mães e pais numa busca pela parentalidade perfeita, que causa muito mais pressão e culpa (não gosto nada desta palavra, mas aqui não podia ser mais acertada). E essa parentalidade perfeita não existe também! Toda a gente falha e não há mal nenhum nisso… há sempre um dia de amanhã para corrigir e isso é algo que deve estar sempre presenta na cabeça das mães e pais, para os ajudar a gerir expectativas e poderem usufruir da maternidade de uma forma muito mais feliz.

Pediatra Hugo Rodrigues considera que as pressões externas são o maior desafio da parentalidade atualmente. 

É pediatra há muitos anos. E pai de dois filhos. Que diferenças nota nas preocupações e nos comportamentos dos pais da atualidade, em relação aos pais “de outros tempos”? É mais difícil ser pai e mãe hoje?

Não acho que haja assim tantas diferenças, nem que seja mais difícil ser mãe ou pai hoje. No entanto, não há dúvida de que há muito mais informação disponível e, como expliquei acima, isso gera mais ansiedade e medo de falhar aos pais. A informação é muitíssimo importante, mas só é útil quando se sabe o que fazer com ela, ou seja, quando se transforma em conhecimento e é esse trabalho de conseguir “filtrar” tudo aquilo a que se tem acesso que pode dificultar um pouco mais as escolhas. Por outro lado, conseguindo fazê-lo, a informação pode e deve ser uma fonte de ajuda, e consegue sê-lo muitas vezes.

Por detrás de cada comportamento de uma criança há sempre uma explicação? É possível atuar em todos os comportamentos das nossas crianças?

Essa pergunta também é difícil. Acho que sim, que há sempre uma explicação, mesmo que os adultos nem sempre a consigam entender. Mas faz sentido tentar conhecer bem as crianças, perceber o seu desenvolvimento e tentar adequar as exigências àquilo de que elas são verdadeiramente capazes de fazer. Mais uma vez, a questão de saber gerir expectativas, mais em função das crianças do que propriamente algum ideal teórico que se viu ou leu nalgum sítio. Apesar de se poder antecipar muitos dos comportamentos das crianças, cada uma é um ser único, com as suas caraterísticas individuais e as suas necessidades e isso tem de ser encarado dessa forma pelos pais e verdadeiramente respeitado assim.

E preveni-los?

Tirando comportamentos que coloquem em risco a criança ou que sejam muito desajustados em relação à realidade e contexto onde se está, não acho que essa deva ser uma preocupação dos pais. É mais útil deixar uma criança experimentar vários caminhos do que lhe indicar apenas um.

Vemos muitas vezes especialistas que nos apresentam “receitas milagrosas” para resolver os problemas de muitas crianças. Estou a pensar, por exemplo, da questão do sono, que atormenta tantas famílias. Há “receitas milagrosas” e transversais para lidar com questões da infância ou cada criança é uma criança e cada família é uma família?

Não existem receitas milagrosas, de todo! Cada criança é um ser único, inserido numa família também ela única e que, em conjunto, possuem uma dinâmica familiar única e irrepetível, que vai mudando com o tempo e se vai ajustando todos os dias. Desta forma, percebe-se facilmente que não podem existir regras universais, que funcionem de igual modo para todas as crianças. Pode haver princípios orientadores de acordo com o desenvolvimento e competências das crianças, mas apenas isso.

Enquanto pediatra, como vê os famosos grupos de mães do Facebook? Como é que encara o facto de muitas mães irem primeiro às redes sociais fazer perguntas, em vez de recorrerem aos médicos? Que perigos temos neste hábito e de que forma é que isto veio mudar a Pediatria?

Confesso que não pertenço nem acompanho nenhum desses grupos. Não tenho nada contra haver fóruns de partilha e entreajuda, desde que se respeitem dois princípios que, na minha ótica, são importantes de cumprir. O primeiro tem a ver com o reconhecimento das limitações de cada pessoa, uma vez que, não sendo profissionais da área, não devem (nem podem!) generalizar a sua experiência pessoal para tentar resolver os problemas de outras famílias – já vimos acima que não existem receitas milagrosas. O segundo prende-se com o respeito pelos outros, sejam membros do grupo, sejam profissionais das mais diferentes áreas. Utilizar redes sociais para tentar denegrir alguém ou espalhar ódio é um ato de cobardia, que deve ser reprovado por todas as pessoas.

Costuma dizer-se que “quando nasce um bebé, nasce também um pai e uma mãe”. De que forma é que o seu novo livro ajuda estes pais a crescerem também?

Claro que sim, essa é a mais pura das verdades. Da mesma forma que uma criança cresce e se desenvolve nos seus mais variados papéis, também os pais necessitam de o fazer exatamente nesse papel de mãe ou pai. Com este livro, o que eu pretendo é dar a conhecer o desenvolvimento infantil de uma forma diferente, muito abrangente e facilmente compreensível pelos pais, de modo que lhes seja mais fácil aprender a conhecer também os seus filhos. E, em seguida, expor uma série de situações que causam ansiedade aos pais e que são, muitas vezes, fonte de conflitos familiares, numa ótica de entender o porquê de surgirem assim e, acima de tudo, deixando várias opções para poder encarar esses desafios. Depois, caberá aos pais interiorizar essas opções e escolher, se assim o entenderem, qual o caminho que lhes faz mais sentido. Porque não existe nunca uma única opção, há sempre várias escolhas e é importante que todas as mães e pais sintam isso.

"Porque é que o meu filho se comporta assim?" é o novo livro do pediatra Hugo Rodrigues.

 

A parentalidade vem, quase sempre, se não sempre, acompanhada da culpa. Porque é que os pais se sentem tão culpados em relação à parentalidade e o que fazer para diminuir essa culpa?

Penso que já respondi acima um pouco a esta questão. Não gosto da palavra culpa, mas não tenho dúvidas de que, na maior parte das vezes é assim sentida pelas mães e pais. Por esse motivo, o primeiro aspeto que gostaria de reforçar é que não se deve sentir culpa quando estamos a tentar dar o nosso melhor. Podemos, isso sim, ter opções menos certas e errar algumas vezes, é lícito que isso aconteça. Todas as pessoas erram, mães, pais, filhos, profissionais,… Mas devemos sempre aproveitar as oportunidades seguintes para corrigir quando nos apercebemos de que não agimos de forma adequada, porque, salvo em raríssimas exceções, há sempre um dia de “amanhã” para poder fazer melhor e ajustar as nossas escolhas. Sempre! E essa é a melhor forma de tranquilizar as mães e pais…

Essa culpa dá, muitas vezes, origem a um certo excesso de proteção. Quais são as consequências da proteção excessiva no desenvolvimento das crianças? Seja a nível físico, seja a nível emocional e intelectual?

O excesso de proteção é um verdadeiro problema de saúde pública atualmente. Apesar de ser quase sempre bem-intencionado, a verdade é que é uma consequência e causa ao mesmo tempo da “cultura do medo” que vivemos. E isso vai-se refletir, como é lógico, no desenvolvimento infantil.

Todas as crianças precisam de correr riscos, precisam de experimentar, precisam de solucionar problemas, precisam de arriscar, precisam de falhar e perceber que falharam. Estes pressupostos são os que vão permitir adquirir competências cada vez mais complexas de resolução de resolução de problemas e permitir que a criança se autonomize de forma progressiva.

Por exemplo, se uma criança não trepa a um muro baixo quando é pequena, ou aprende a subir os degraus de um escorrega, se algum dia estiver numa situação de perigo em que necessita de utilizar a agilidade, equilíbrio e coordenação para se proteger, não vai ser capaz de o fazer. Isto é apenas um pequeno exemplo, que pode ser replicado em todas as áreas de desenvolvimento e que pode, muitas vezes, condicionar o resultado do desenvolvimento de cada criança.

Levamos uma vida cada vez mais corrida. Que reflexos é que isso tem nos nossos filhos?

Infelizmente é verdade.

A maior consequência é a falta de tempo para os filhos, que é dramática é muitas situações. Os filhos precisam de passar tempo com a mãe e pai, sem dúvida alguma! Mas também a mãe e o pai precisam de passar tempo com os filhos e isso tem de ser sentido como uma necessidade recíproca. A atenção e o tempo são o melhor que todas as mães e pais podem dar aos filhos, portanto é fundamental que, mesmo quando o tempo é escasso, isso seja uma verdadeira prioridade na organização do dia-a-dia das famílias. Não chega dizer. É preciso fazer desse tempo de partilha em família o momento central do dia para todos!

Outra das consequências está relacionada com o facto de todos os pais serem os principais modelos dos filhos. Assim, aquilo que se verifica é que os filhos vão aprender a gerir o dia quase como se fosse uma checklist de tarefas, em que é mais importante a sequência e cumprir todas do que propriamente a sua essência. E isso pode ser muito perverso como aprendizagem…

Este seu novo livro centra-se em crianças até aos 10 anos. Porquê esse limite de idade?

Na realidade não existe propriamente uma idade limite para este livro, mas a verdade é que, a partir dos 10 anos de idade, deixamos de ter crianças para ter adolescentes. Essa é a definição da Organização Mundial de Saúde e a que utilizamos na prática clínica.

Por esse motivo, dado que a adolescência é uma etapa muito particular em termos de desenvolvimento, este livro centra-se mais nos desafios da infância. Quem sabe, num futuro próximo, possa também sair um livro sobre a adolescência…

Vamos falar de birras. As birras são transversais a esta primeira década de vida? As birras são normais? Porque é que os nossos filhos fazem birras?

Sim, o primeiro aspeto a esclarecer é que as birras são perfeitamente normais. Habitualmente surgem por volta dos 15 meses (em média), numa fase em que as crianças já conseguem entender muito do que se passa com elas, inclusivamente conseguem entender grande parte da linguagem verbal, mas ainda possuem uma capacidade de expressão verbal muito limitada (habitualmente verbalizam apenas 3-4 palavras). Assim, para se poderem manifestar vão ter de recorrer a outras estratégias e é neste contexto que surgem as birras.

Claro que, à medida que as crianças percebem que podem ser mais eficazes nessa comunicação, vão “escalando” as suas manifestações para poderem ser atendidas de acordo com aquilo de que necessitam ou valorizam na altura. Isto não tem nada de perverso ou maquiavélico, é até uma prova de inteligência tentar adequar o comportamento aos objetivos que pretendem alcançar.

"As birras são perfeitamente normais", garante o pediatra Hugo Rodrigues. 

A questão está (ou pode estar) relacionada com o facto de haver crianças que percebem que isso pode ser um caminho “fácil” para obter tudo e para enfrentar qualquer adversidade. Isso já pode não ser adequado, uma vez que é importante que elas adquiram outras competências de comunicação que façam com que as birras passem a ser “dispensáveis” e desnecessárias, mas só se consegue se os pais conseguirem fazer uma gestão adequada das birras. Como sempre, não existe apenas uma forma de lidar com as birras, mas sim diversas opções, que podem e devem ser testadas à medida que se vai passando pelas diferentes situações.

Em jeito de conclusão, diria que as birras são perfeitamente normais, mas aos pais compete ensinar aos filhos (sem os desrespeitar e tentando, sempre que possível, compreendê-los) que elas não são a solução para todos os problemas.

Então, quando é que as birras dos nossos filhos nos devem preocupar?

Não existe uma fronteira muito rígida, mas eu dira que, sempre que as birras se tornam disruptivas da relação da criança com outras pessoas faz sentido procurar ajuda. Essa ajuda até pode ser mais para os adultos do que para a criança, mas o importante é sempre garantir a harmonia familiar e é esse que deve ser o nosso grande objetivo enquanto pediatras.

Muito bem. Falemos agora das tecnologias. As nossas crianças começam a ter contacto com ecrãs cada vez mais cedo e estão cada vez mais tempo com ecrãs. Isso reflete-se já nos problemas que lhe chegam ao consultório? Que perigos é que residem nestes hábitos e para os quais nunca é demais alertar?

Este tema é muito complexo e vasto, mas vou tentar ser objetivo. Acho que faz sentido tentar dividir o problema dos ecrãs em dois grandes grupos: 1) utilização em idades precoces e interferência no desenvolvimento; 2) utilização abusiva.

Em relação ao primeiro, temos de perceber que, aos 2 anos de idade, o cérebro de uma criança tem cerca de 70-80% do tamanho que vai ter na idade adulta, portanto é fácil perceber a vulnerabilidade e oportunidades que se têm nesta fase. Assim, é fundamental que se proporcione uma diversidade de estímulos que garantam um bom desenvolvimento global, em termos motores, de linguagem, coordenação mão-olho e socialização, entre outros. Como se pode depreender, os ecrãs são muito limitados em termos de estimulação e não permitem um adequado desenvolvimento de grande parte destas áreas. Isto é válido nos primeiros dois anos, mas também posteriormente. Para além disso, pelo facto de produzirem estímulos muito intensos, fazem com que todas as outras atividades possam ser encardas como “menos interessantes”, o que pode também ser bastante nocivo em termos de desenvolvimento.

Relativamente ao segundo aspeto, está claramente relacionado com o primeiro e com o chamado efeito de “tolerância” que existe em todas as relações de dependência. Basicamente, diz respeito à necessidade de utilização cada vez maior para satisfazer as necessidades, o que leva, em muitos casos, a uma relação abusiva com os ecrãs, com todas as consequências que daí podem advir.

A gestão dos ecrãs, sobretudo numa idade precoce, é fundamental, alerta o pediatra. 

Como fazer a gestão de ecrãs e dos conteúdos consoante as idades?

Essa pergunta não é fácil de responder, mas eu dividiria em três grandes grupos:

1 – Tempo de utilização

Existem diversas recomendações nesse sentido e, claramente, deve haver cuidado na gestão dos tempos de utilização de ecrãs, de acordo com a idade. Para além disso, é fundamental que essa utilização não interfira com momentos-chave do dia (alimentação, sono e tempo em família) e não comprometa a atividade física ou as brincadeiras motoras.

2 – Qualidade dos conteúdos

Este aspeto é mais difícil de aferir, mas deve também ser uma preocupação por parte dos pais. Não chega ter cuidado com o tempo de utilização, é crucial também perceber o que é que as crianças fazem com eles.

3 – Participação dos adultos

Por fim, e não menos importante, nunca é demais reforçar que os ecrãs, quando utilizados, devem envolver os adultos, não apenas para gerir a qualidade dosa conteúdos, mas também para poder haver uma interação que ajude as crianças a descodificar o que estão a ver/fazer.

Como conclusão, diria que, se forem cumpridos estes três pressupostos, a introdução dos ecrãs em crianças com mais de 2 anos é inevitável e pode ser gerida de forma mais adequada e com bom senso.

 

 

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