Ela pintou sobre as pernas abertas, as dores no corpo e na alma que nós mulheres apenas nos permitimos ter quando ninguém está a ver: um pós-obituário

9 jun 2022, 12:40

Paula Rego (1935-2022) foi a artista que melhor pintou a condição da mulher naquilo que ela tem de proibido e invisível, mas não menos poderoso e operativo

DE ESPADA JUSTICEIRA NUMA MÃO E DE ESPONJA DE BANHO NA OUTRA
por Cláudia Marques Santos

Paula Rego era a mão imaginada que as mulheres dos seus quadros usaram para se tornar visíveis. Há uma passagem no documentário de 2016 que o filho, Nick Willing, fez para conhecer a figura misteriosa que era a sua mãe, que descreve como ela se fechava no seu atelier de pintura quando viviam na Ericeira e nada nem ninguém – inclusive os filhos – existiam nessa bolha de espaço e de tempo reservada para ela pintar. Era como se Paula Rego não se fechasse mas fosse antes fechada pelas suas personagens, como uma serviçal, para as dotar de carne, de ossos, de vísceras, de bíceps da largura de cavacos para o lume, de feições esculpidas a canivete.

E agora, anunciada a morte da artista plástica em Londres rodeada dos três filhos, uma das imagens mais partilhadas nas redes sociais cimenta isso mesmo: uma fotografia de Paula Rego sentada em frente a um dos seus quadros mais poderosos e seminais, O Anjo (1998). Em contrapicado, uma mulher – de espada justiceira numa mão e de esponja de banho na outra, cara de criada, grande, imponente, saia rodada até aos pés – ascende à condição de divindade, com Paula Rego sentada a seus pés, como sua humilde serva. São, no fundo, o alter-ego uma da outra, servem-se uma à outra.

O Anjo (pastel sobre papel montado em alumínio - 1998)

Advém em parte daí – da figura da criadora que se materializa através da mão da sua alter-ego – o grito do trabalho de Paula Rego, que permite que da extrema simplicidade escorram camadas e camadas de complexidade, da ingenuidade escorra sageza, da inocência escorra traquinice. Sobre a carga gutural das suas personagens e das suas histórias Paula Rego sempre referiu advirem do medo – concreto, atrás do pano. Trata-se de um medo tão íntimo que confere às diversas pessoas desenhadas uma capa fina de solenidade. A essa capa fina podemos chamar solidão – condição primeira e última da nossa existência – e que torna o medo, com o qual aprendemos a viver, intocável.

É o medo e solidão de que fala Ingmar Bergman em A Hora do Lobo, dos demónios que visitam um pintor depois da meia-noite e antes do amanhecer. Em declarações ao jornal The Guardian, a propósito da retrospectiva que a Tate fez da sua obra no penúltimo trimestre do ano passado, Paula Rego assumia igualmente a existência dos seus demónios, essas figuras vivas que a visitavam: “pintar um quadro pode revelar-nos coisas que mantemos escondidas de nós próprios”.

Agonia no Horto (pastel sobre papel montado em alumínio - 2002)

“Uma pintura de Paula Rego vai a lugares em termos de experiência emocional e psíquica para lá dos limites permitidos”, começa por dizer uma voz de mulher no documentário de Nick Willing, Paula Rego, Histórias & Segredos (Midas). “Ela ter-se permitido entrar por tais domínios abriu trincheiras.” O documentário começa por introduzir-nos aos diversos atores do atelier de Paula Rego em Camden, ela que se mudou de vez para Londres em 1976 depois de nos anos 50 ter ido estudar para a Slade School of Fine Art com uma bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian e onde conheceu o marido, Victor Willing, também pintor: caixas e caixas de lápis grossos, bonecas que servem de modelos, muitas cabeças, alguns quadros já pintados encostados à parede, um estilete, um esqueleto.

“Penso que, quando fazemos quadros, eles são tanto sobre o que temos dentro de nós como sobre o que nos é exterior. Temos segredos e histórias a que queremos dar vida nos quadros”, diz Paula Rego a certa altura no documentário.

As tais trincheiras abertas pelas personagens e as histórias de Paula Rego vieram dar vida ao indizível, ao tabu, ao que era e é da ordem da vergonha. Paula Rego pintou sobre a menstruação, o aborto, a violação, o erotismo, a pornografia, o fascismo, a censura. Pintou sobre as pernas abertas, as dores no corpo e na alma que nós mulheres apenas nos permitimos ter quando ninguém está a ver.

“Encorajavam as mulheres a fazer nada. Quanto menos fizessem, mais as admiravam”, contesta a filha, Cass, no documentário, acerca da condição da mulher na sociedade em que a mãe nasceu e cresceu, em plena ditadura. “Refiro-me às mulheres de uma certa classe social. As pobres tinham de fazer absolutamente tudo.” Todas eram criadas.

Salazar a Vomitar a Pátria (óleo sobre tela - 1960)

Nas obras de Paula Rego, a condição da mulher tem sempre esse quê de criada, num questionamento complexo do papel da mulher na sociedade - que se quer muda mas que acaba por ser retratada por Paula Rego precisamente porque está de cuecas na mão, metaforica e literalmente (no quadro Branca de Neve e a Madrasta, 1995), na sua extrema dignidade. Isso mesmo foi-nos dado a ver na exposição que a Casa de Serralves montou em Outubro de 2019 com a sua obra, intitulada O Grito da Imaginação.

Elevada a Grã-Cruz da Ordem Militar de Sant’Iago da Espada de Portugal pelo então Presidente da República Jorge Sampaio, em 2004, e nomeada Dame Commander of The Order of the British Empire pela Coroa Britânica em 2010, a franqueza com que Paula Rego fala da primeira vez que teve sexo com o futuro marido, a insegurança da portuguesa que se vê a viver no meio artístico londrino, as expectativas de sucesso que se afiguravam ao marido, as infidelidades por parte dele, as dificuldades financeiras, o seu arregaçar de mangas para sustentar a família, tudo isso está espelhado no documentário. Toda essa crueza está refletida na sua obra.

A meio do documentário há uma das imagens mais poderosas filmadas por Nick Willing. Num mesmo plano vemos Paula Rego sentada, de perfil, camisola verde, com a mão direita esticada a desenhar numa tela que tem à sua frente. Na cara dá para perceber que tem colocada uma máscara. De frente para nós, espectadores, e à esquerda de Paula Rego está um espelho que nos permite perceber que tem na cara uma máscara que é uma cara de macaca. Como o Las Meninas de Velázquez, vemos uma artista que se retrata a si própria mas, aqui, ela é personagem única da sua própria história – em nome de todas as mulheres.

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