Passos Coelho apresentou o livro "Identidade e Família – Entre a Consciência da Tradição e As Exigências da Modernidade" numa livraria totalmente lotada em Lisboa e que contou com a presença dos líderes do Chega, André Ventura, e do CDS-PP, Nuno Melo, também ministro da Defesa Nacional. A obra reúne textos de personalidades como Jaime Nogueira Pinto, Manuel Clemente, Manuela Ramalho Eanes, João César das Neves, Isabel Galriça Neto, Guilherme D’Oliveira Martins ou José Ribeiro e Castro, entre outros. Passos foi convidado para contribuir para o livro mas acabou por não conseguir fazê-lo. Esta é a transcrição na íntegra do que disse - ele que não se "incomoda" que lhe chamem "fascista" porque "as pessoas, quando estão razoavelmente seguras do que pensam, do que são, não se incomodam muito" com essas adjetivações
Conheço aqui muitas pessoas amigas, muito conhecimento, de uma forma também muito calorosa. É um gozo poder encontrá-las. E, sobretudo, queria fazer um agradecimento inicial. Foi o de terem entendido que podiam arriscar convidando-me para fazer a apresentação desta obra. Eu devo dizer, para ser absolutamente transparente, que tinha sido convidado para contribuir, como autor, para esta obra. Mas, na verdade, não consegui fazê-lo. Não é vulgar faltar aos meus compromissos, mas não consegui mesmo. Portanto, pedi muita desculpa aos autores. Não gosto de faltar aos meus compromissos e custou-me muito não ter conseguido realmente contribuir com o texto. Mas eis que se transformou o convite para poder contribuir com o texto, para poder apresentar o conjunto dos contributos que a obra reúne. Eu confesso, não tive coragem para dizer que não, apesar de toda a gente saber que tenho estado numa posição bastante discreta quanto à ocupação do espaço público. Mas as razões que me levaram a aceitar são as mesmas que me tinham conduzido a responder afirmativamente com a contribuição de um texto: trata-se de uma matéria que eu acho que é fundamental na discussão do espaço público em Portugal, e não só, mas em Portugal, que é o nosso país, e a discussão em torno das questões da família, da identidade e da íntima conexão que existe entre estes dois conceitos, que é a família e a identidade, a identidade individual, a identidade coletiva, a identidade que nos define como portugueses, como cada cidadão, como pessoas, merece uma discussão séria. E, portanto, só posso elogiar quem, com estas preocupações, desenvolveu um esforço de seriedade para poder dar um contributo relevante para esta discussão.
Claro que, muitas vezes, as nossas intenções são umas e aquilo que acaba por ser assimilado pelos outros é uma coisa diferente. Hoje, uma pessoa amiga, que está distante, mandou-me uma mensagem a dizer “Oh, Pedro Passos Coelho, fico muito satisfeito de perceber que vai estar a apresentar esta obra e tal”, e mandou-me um link para uma das notícias, a única que vi, sobre esta matéria. E a notícia começa logo assim: 'Ex-primeiro-ministro apresenta 'Identidade e Família', um livro que reúne 22 contributos da direita mais conservadora contra a destruição da família tradicional'. Começava assim. Eu, o resto é para assinantes, e eu não pude continuar. Mas não é difícil imaginar a forma, portanto, como a questão, em certos setores, pode ser vista. Mais uma razão para que este tipo de debate se possa fazer.
Quer dizer, nós sabemos que há, no espaço público, não é só em Portugal, uma preocupação de, excessivamente, de uma forma até exacerbada, procurar criar rótulos que não são meros rótulos de simplificação da nossa linguagem, que nos permite conversar uns com os outros sem termos de estar a explicar todos os conceitos que utilizamos, porque há um certo preconceito que nos conduz a uma certa economia de palavras, também. Sabemos de que é que estamos a falar. Mas há outros que são utilizados de uma forma diferente. Quer dizer, há rótulos que são colocados com uma intenção clara de desqualificar aqueles que lançam as discussões, de os diminuir e de os condicionar. E, desse ponto de vista, Portugal, apesar de algum atraso nesta abordagem, também vem conhecendo este vício que diminui o espaço público e procura, de certa maneira, reconduzir certas discussões, que são discussões que interessam a toda a sociedade, a uma espécie de gente que é ultramontana, ultraconservadora, e outras coisas que normalmente se seguem a estas, dependendo daquilo que estamos a falar. Quando estamos a falar de economia, ultraliberais, pelo menos ultraliberais, neoliberais e por aí fora. Quando estamos a falar de aspetos mais politizados, é fácil descambar a linguagem para rótulos de extrema-direita, radical, fascista - eu fui fascista imensas vezes olhando às classificações que me foram atribuídas.
Evidentemente que as pessoas, quando estão razoavelmente seguras do que pensam, do que são, não se incomodam muito com essas coisas. E eu nunca me incomodei muito com isso. Para ser sincero, nunca me incomodou. Mas incomoda-me um bocadinho, como cidadão, como português, que estas caricaturas excessivas sejam utilizadas no espaço público por quem tem proeminência no espaço público. Porque isso, evidentemente, torna o nosso debate muito mais estreito, muito mais pobre e eventualmente um debate radicalizado, que não deixa espaço nem para a propalada tolerância que nós precisamos de ter, não deixa espaço para compromissos, não deixa espaço para um desígnio comum, coletivo, que possa representar, pelo menos de acordo com o método democrático, uma escolha que seja feita pelo conjunto das pessoas. E isso a mim preocupa-me que esteja a acontecer na sociedade portuguesa.
Ora, indo agora um bocadinho mais diretamente à apresentação do livro, eu gostaria em primeiro lugar de dizer que, para quem o leia, e eu espero que o possam ler, verificarão que ele oferece uma visão muito diversificada dos problemas que estão relacionados, quer com a temática da família, quer com os problemas relacionados com a identidade. Os textos, não sei se foram pensados e pedidos com essa preocupação ou não, mas na verdade acabam por cobrir aspetos muito variados daquilo que é hoje esta temática. E, portanto, seria difícil que todos eles subscrevessem exatamente as mesmas visões sobre os problemas que estão tratados. Cada autor, em particular, conduz a sua análise para aspetos mais parcelares, ou sectoriais, se quiserem. Mas, de um modo geral, eu acho que posso dizer que no livro há uma preocupação conjunta, digamos assim, de tratar a família com um certo nível de idealização.
O que é que eu quero dizer com isto? Que nós sabemos que não há um único conceito de família e, historicamente falando, a família não teve sempre a mesma configuração ao longo do tempo. Essa configuração foi evoluindo com a sociedade. Mas se a família, de certa maneira, representa o primeiro espaço de socialização, julgo que hoje haverá um amplo consenso em torno desta minha afirmação. Julgo. A família é primeiro espaço de socialização. E, nessa medida, portanto, de transmissão de valores, de exemplos, que numa geração para outra geração vai dando continuidade a um destino coletivo. Nessa medida, portanto, podemos dizer que a família antecede o Estado, evidentemente, e dificilmente se pode entender de uma forma separada da sociedade em si mesma.
Não é que não tivessem existido autores que discutiram esta questão e que acharam que a individualidade, o indivíduo, antecedeu a família e a sociedade. Mas é pouco credível que tivesse sido assim. Não vou perder aqui tempo, nem o vosso tempo, à volta destas discussões. Remato apenas dizendo que não me parece que haja evidência disso. Pode haver quem esteja convencido disso. A mim parece-me muito claro, posso estar enganado, evidentemente, mas é a minha opinião, que nós não existimos sem os outros. E mais existimos com os outros e para os outros. É a forma como eu vejo a humanidade. As pessoas.
Não conheço ninguém, pelo menos, que possa corresponder serenamente àquilo que nós consideramos ser uma pessoa que não tenha como objetivo poder ser útil, prestável, nesse sentido, reconhecido pelos outros e ver reconhecida a sua dignidade pelos outros. Nós vivemos grandemente para os outros. Mesmo quando somos seres menos sociais, digamos assim. Quero dizer, quando temos menos paciência para o espaço com os outros. Mas, na verdade, nenhum ser humano se realiza de uma forma completa, parece-me, se se abstiver do que está à sua volta e dos outros. Nessa medida, a estrutura social nasce de perto com a própria humanidade. Há estruturas sociais fora da humanidade e até de, enfim, sociedades que, do ponto de vista estritamente animal, não andaram assim tão longe na evolução como isso do que foi a evolução humana. Essas estruturas existem. Portanto, porque é que os homens e as mulheres não haveriam de as conhecer quando existiram? É muito improvável que isso não tivesse acontecido. Portanto, nós somos realmente seres sociais. Não há dúvida quanto a isso.
E, sendo seres sociais, é natural que a família represente esse primeiro elo de socialização dos indivíduos. Claro que as famílias, como eu disse no início, podem corresponder a realidades muito diferentes ao longo das épocas e nós podemos, em cada época, ter uma idealização de família que não é exatamente aquela que todos os outros têm. Mas dizia há pouco à entrada aos jornalistas que me colocavam essa questão que, apesar de a família hoje ter formas bastante diversificadas, eu julgo que, não ofendo ninguém, se disser que a grande maioria das pessoas tem um ideal de família muito mais próximo do que aquilo que parece. Eu hoje, por exemplo, sou, involuntariamente, o que se chama um pai solteiro. Mas esse não era o meu ideal de família. Eu posso conceber que haja alguém que tenha como ideal de família esse, mas não creio que seja a grande maioria das pessoas. E se fosse, digamos assim, nós teríamos uma sociedade muito diferente nos valores, na forma como nos comportamos solidariamente com os outros, muito diferente daquela que conhecemos.
Agora, a sociedade não é perfeita. Longe disso - e a família também não. A família tem muitos problemas. Há famílias que são disfuncionais. Há famílias no seio das quais atrocidades e crimes foram cometidos. Alguns deles animaram bastante o nosso debate público ainda não há muito tempo. Nós sabemos, basta ler a imprensa especializada, que não há dia, praticamente, em que comportamentos desviantes, graves, que nós consideraríamos graves, não ocorram também no seio das famílias. Bem, mas isso não é razão para acabar com a família. Julgo eu. Apesar de haver, por vezes, uma certa tentação de confundir as coisas. Eu recordo, ainda não há muito tempo, houve uma discussão pública sobre circunstâncias que, não creio, motivem regozijo por parte de ninguém, que se passaram ao nível do SEF, que em vez de conduzirem a uma reforma de procedimentos e do SEF acabou-se com o SEF. Como se isso tivesse resolvido os problemas que ocorreram no contexto daquela instituição precisa.
A fuga em frente, a fuga de dar uma ideia meramente simbólica e frequentemente demagógica e, portanto, populista, de que se está a resolver os problemas, cortando o mal pela raiz, acabando com as instituições, se levássemos isso para o plano da humanidade teríamos de acabar com a humanidade. Isso não faz sentido. O que faz sentido, do meu ponto de vista, é que os problemas que se vão manifestando e que mostram um desvio, claro, relativamente a uma certa idealização da instituição que nós temos deve remeter-nos para uma atitude reparadora, para uma atitude construtiva de tentar ultrapassar esses problemas, confrontando as instituições com as suas insuficiências. Não é acabando com as instituições. E, neste caso, com uma instituição que, de resto, é insubstituível. Não há ninguém, nenhuma outra instituição, que possa substituir a família. Os substitutos são imperfeitos.
Não quer dizer que as famílias não precisem de ajuda. E isso está aqui muito bem tratado nos livros. As famílias precisam de ajuda em muitos planos. No plano da conciliação, que é preciso fazer com o trabalho e com as obrigações profissionais, sabemos que, tradicionalmente, é mais difícil às mulheres fazerem essa conciliação, embora isso também já se possa colocar relativamente a muitos homens. É sabido que nós temos problemas muito sérios, que dizem respeito a problemas de sustentabilidade demográfica que não podem ser resolvidos fora do espaço da família, a não ser uma conceção muito orwelliana da vida, que não parece que seja aquela que nós desejamos, evidentemente. Não vamos arranjar umas fábricas para produzir pessoas. Isso corresponde, no fundo, a uma ideia absolutamente despersonalizada daquilo que é a própria pessoa e do que é a sociedade. Não creio que isso pudesse ser em parte nenhuma do mundo uma substituição da família.
Nós precisamos de ajudar as famílias a resolver os problemas da educação e do ensino. Não há dúvida disso. A sociedade moderna traz cada vez mais dificuldades aos pais para poderem dar o apoio que é necessário aos filhos. Mas isso não significa que devemos ter a preocupação de impedir mesmo que isso possa acontecer para proteger um bem maior que é uma ideologia que se pretende transmitir às crianças a partir das escolas. Aconteceu e tem vindo a acontecer cada vez mais. Não me parece que seja uma questão de radicalismo de análise da minha parte constatá-lo. Eu direi que radicalismo é atentar contra o consenso existente e que reúne a larga maioria dos cidadãos, procurando incutir nos jovens ideias e valores que são muitas vezes opostos àqueles que os seus pais querem transmitir aos seus filhos na certeza de que eles têm sempre o poder de escolher porque são entes morais. Os pais evidentemente não pretendem aprisionar os seus filhos com as suas ideias mas têm a obrigação de lhes transmitir os valores em que acreditam dando-lhes exemplos e que cada um fará a sua escolha, evidentemente. Mas é uma escolha: para escolhermos temos de ter um termo de comparação e nada como podermos comparar quando o exemplo vem de alguém que amamos, que estimamos, que respeitamos, e isso é o que idealmente se passará nas famílias - e não o oposto, que também pode acontecer, mas não é o ideal, evidentemente. Portanto: as famílias precisam de ser ajudadas na educação dos filhos e no ensino mas dificilmente o conseguiremos com uma espécie de sovietização do ensino em que queremos dirigir o ensino em favor de uma determinada perspetiva que nem sequer é dominante na sociedade, quanto mais nas famílias.
É evidente que nós precisamos de deixar as famílias nas sociedades modernas a lidar com o problema da idade avançada - daquilo a que o meu pai chamava a velhice. O meu pai dizia 'a velhice é uma chatice' - era assim que ele dizia, 'é uma chatice', e coitado, no fim da sua vida já estava um pouco deprimido por causa disso. Mas é importante que a família que está no ensino todo participe desse processo - é o processo de todos nós porque todos vamos ter de passar por ele. Não é fazendo de conta que esse processo não existe ou colocando de uma forma distante que nos preparamos para ele quando chegar a nossa vez: nós temos de participar desse processo da mesma maneira - as crianças, os jovens, os adultos, precisamos de estar envolvidos nesse processo. Não é fácil. Ele envolve desafios muito complicados e cada vez mais em particular a incidência de doenças degenerativas vem crescendo com a longevidade - pode ser que a tecnologia e a inovação nos possa ajudar a solucionar esse tipo de problemas - mas são problemas com que lidamos cada vez mais - demências - que correspondem a uma certa despersonalização das pessoas. E se há uma despersonalização, que haja um tratamento digno que as pessoas reclamariam para si próprias se tivessem essa consciência. Quem melhor do que a família para o poder fazer.
Nós precisamos, para tratar de problemas mais no limite - como são estes os da idade muito avançada, os de pessoas que têm doenças crónicas por vezes muito incapacitantes e muito graves problemas de saúde, que estão em caminhos irreversíveis - não quer dizer terminais mas irreversíveis - e que precisam de ter um tratamento muito especial. Eu já o disse e já o escrevi: por que razão as políticas públicas pretendem ajudar as pessoas a morrer em vez de lhes dar condições para que elas possam viver com dignidade humana?
Nós temos, realmente, na família um centro importante para lidar com problemas, que são problemas da sociedade e da humanidade. Ter uma preocupação de a desqualificar, de a poder desintegrar, de a substituir por outras realidades - que não podem ser mais transpersonalistas do que aquelas que estão à vista de certas políticas públicas - não é o caminho adequado. E faz muito sentido que aqueles que olham para a família como uma centralidade de todo o processo de humanização, de personalização, de criação de elos de identidade pessoal e coletivo se preocupem com estas matérias e reclamem das políticas públicas alguma atenção para isto. Faz muito sentido que este trabalho possa existir e que muitas das políticas públicas possam ser redesenhadas empoderando a família, ajudando a família a superar algumas das insuficiências e dos problemas que têm e a lidar com problemas que tendem a ser mais intensos com a modernidade que vivemos e como os quais as famílias têm mais dificuldades em lidar sozinhas.
Agora não levem a mal que diga que quando, no debate público, estas matérias sobre as quais me tenho vindo aqui a debruçar - podia ter acrescentado também aquela que tem que ver com as questões da segurança e da imigração.... Eu sei que há pessoas muito sensíveis e que acham que um ex-primeiro-ministro não pode misturar na mesma frase imigração e segurança, apesar de uma parte significativa das políticas públicas que trata das questões da imigração estejam no sistema de segurança interno. Não sei se já ocorreu a essas pessoas particularmente atentas a estas matérias que não é por acaso que essas coisas estão ligadas. É que a imigração não se reduz a problemas de segurança, mas há problemas de segurança que têm de ser acautelados quando nós temos processos mais intensos de imigração. E é natural que as sociedades queiram preocupar-se com essas matérias.
Parece que a Europa tardiamente se está a preocupar com essas coisas. Parece que Portugal está atrasado relativamente a problemas, por exemplo, do espaço Schengen - vai haver necessidade da parte do novo Governo de recorrer eventualmente a mecanismos excecionais, no âmbito do Ministério das Finanças, para poder fazer... já não haverá tempo para concursos públicos, provavelmente adjudicações diretas, para ver se no âmbito do espaço Schengen não furamos demasiado os nossos compromissos de garantir que à entrada do país certos procedimentos, que são tidos noutros países, também possam ter lugar em Portugal e que certas preocupações existam. Não confundir isto com qualquer noção de que os imigrantes não são bem-vindos e de que nós não precisamos de imigração e de que a sociedade não precisa de se revivificar. E olhem: Portugal, que deu tantos emigrantes a tantas comunidades e que é ela própria uma sociedade em resultado de uma miscigenação muito forte e que é secular. Portanto, às vezes há a impressão de que as pessoas andam à procura de sarna para se coçarem e que querem criar falsos problemas onde eles não existem e isso às vezes é utilizado para não resolver os que existem e não a discutir os que existem.
Ora bem, não levem portanto a mal que no meio destas questões eu diga o seguinte: há uma preocupação, creio eu, em que as pessoas preservem alguma capacidade para se entenderem coletivamente quando nós dizemos que respeitamos as pessoas mas não respeitamos as suas opções, as suas decisões - isso é um bocadinho um insulto às pessoas. Nós não podemos dizer 'olhem, eu estou muito preocupado com os seus anseios, com as suas preocupações, e nesse sentido eu tenho muito respeito por si mas não tenho grande respeito pelas escolhas que faz, se fizer aquela escolha comigo não fala'. Isto não é uma maneira urbana e civilizada de construirmos um destino coletivo. Ainda bem que somos todos diferentes, ainda bem que no plano político há organizações que são muito diferentes e que não se confundem às vezes. Se se confundissem, podiam ter medo de trocar impressões, de se diluírem entre si, mas quando há identidades que estão firmadas, a base do respeito é justamente essa: é saber que nós somos diferentes, o que é que podemos fazer em conjunto, o que é que podemos fazer em conjunto se tivermos preocupações que são parecidas - mas podemos não ter e aí é mais difícil. Temos de manter uma certa urbanidade na mesma, não podemos deixar de nos saber comportar. Temos de salvaguardar esta capacidade para nos podermos entender.
Eu sei que, por vezes, no plano - sobretudo da política - há uma intenção, que é grandemente simbólica, de usar uma certa linguagem deliberadamente para nos desentendermos ou nos fazermos desentendidos. Eu acho, sinceramente, percebendo que isso aconteça, eu acho que era preferível que oferecêssemos às pessoas uma imagem diferente. Há muitas pessoas que se começam a cansar desse teatro porque se trata de uma teatralização, porque não é genuína, não é autêntica, é posicional, é tática. Fazem-se discursos para a bancada, para agradar, para mobilizar certos apoiantes, para condicionar os outros. Ninguém que faz este exercício está preocupado substantivamente em resolver o que quer que seja. O que não quer é perder algum do apoio que angariou e, se puder ir conquistar mais algum, excelente. No fim do dia, as pessoas que percebem o que se pretende não gostam do exercício, não gostam de ser tratados nem como invisíveis, nem como figurantes, nem como meros pretextos para outros realinhamentos de natureza política.
A política só ganha - creio eu, é a minha modesta opinião, peço desculpa de estar a dizer isto de uma forma tão enfática, não tenho microfone, preciso dar mais ênfase àquilo que estou a dizer mas é aquilo em que acredito... Acho que nós devemos tratar as pessoas com inteligência e deixá-las decidir - e, quando elas decidem, devemos respeitar as suas escolhas e as suas decisões. Sabendo que cada um tem a sua fatia, a sua parte, o seu argumento... Se for genuíno e se for afrontado pelos outros, a melhor forma de o fazer numa sociedade democrática é através das instituições, desde logo das instituições mais políticas, que é o caso do Parlamento, o Governo, as outras instituições. Mas há muitas instituições sociais onde esse debate precisa de ser feito.
Dada vez que se procura radicalizar um argumento - e nessa medida criar um impedimento a qualquer diálogo construtivo -, há um conjunto de cidadãos que se desligam desse processo e que não gostam de ser usados para isso. Eu acho portanto que estamos numa altura em que, sobretudo agora... Eu não estou aqui a falar em nome dos autores, cada um dos autores falará por si... Uns concordarão com isto que eu digo, outros se calhar não concordarão. Somos aqui todos pessoas livres, cada um pensa pela sua cabeça, evidentemente. Não levem a mal que eu diga uma coisa que provavelmente não estará seguramente na vossa motivação e com a qual podem não concordar. Mas, do meu ponto de vista, é fundamental que nós possamos olhar para as pessoas que ficaram desiludidas neste tempo, desiludidas com expressões radicais do ponto de vista social, do ponto de vista ideológico - que se tentou fazer valer a partir de uma posição de força parlamentar -, pessoas que deram um sinal muito claro nas últimas eleições de que estão cansadas disso. E é bom que todos aqueles que receberam um voto de confiança muito forte para pôr um fim a isso que ponham realmente um fim a isso e que ofereçam às pessoas razões para acreditarem que vale a pena fazer um jogo diferente
Há coisas que se impõem pela sua natureza - e com isto termino, peço desculpa - e não visam criar nenhum radicalismo, visam simplesmente repor um consenso e uma dignidade que existia antes de um radicalismo ter tido lugar. O Governo, o novo Governo, começou bem do meu ponto de vista, com uma medida que é extremamente simbólica, é muito simbólica mas que é importante. Nós não podemos fazer de conta que se pode brincar com os símbolos porque os símbolos não pertencem a cada um de nós, pertencem a todos. Ninguém pode arrogantemente achar que pode dispor dos símbolos como entende, portanto eu acho muito bem que o Governo vê como noção clara de que não confunde o que são os símbolos da República e da comunidade portuguesa com os símbolos que possa querer utilizar no seu estacionário para comunicar com outros - e que o faça em nome do Governo e não em nome da República. Quando se usa símbolos que são nacionais que se não mexa neles.
O Governo esteve bem, apesar de isso ter sido muito criticado, como quem diz 'nós podemos radicalmente meter os símbolos todos onde quisermos e tratá-los como quiserem'. Os outros que querem repor os símbolos [são acusados] de radicalismo, ultraconservadorismo ou outra coisa qualquer - e lá vem aquele comboio todo de acusações. Fez bem o Governo em fazer assim, eu acho que é assim que se faz. Exorto a que não se fique por aqui. No fundo era esta a mensagem que eu gostaria de dar, não apenas ao Governo, repondo alguns equilíbrios que já existiram que não eram equilíbrios perfeitos, eram equilíbrios que precisavam de muita intervenção e de muito cuidado, mas havia vários equilíbrios que foram sendo seriamente atingidos.
Se queremos realmente evitar chegar ao estado de outras sociedades em que o exacerbamento de multiplicação de identidades - no final do dia são tantas que não há espaço para a comunidade, não há espaço para a sociedade no seu todo, não há um desígnio, não há nada que possa funcionar como um destino comum porque ninguém se entende, está tudo fracionado, cada um no seu grupo, cada um motivado, com os seus problemas do passado que não conseguem resolver em vez de criar um futuro diferente que seja mais inclusivo, mais pluralista, mais tolerante... Dá a impressão que o que se procura fazer é dividir e estigmatizar aqueles que pensam de outra maneira, mais uma vez desqualificando-os. Essa atitude não é uma atitude que seja construtiva. E, nessa medida, nós devemos rejeitá-la e isso não tem nada de radical. É assim. Nós não podemos, sob acusação de radicalismo, ceder a valores que não são os nossos na sociedade que achamos que é a nossa. Agora: sociedades abertas, tolerantes, com certeza, nós sabemos que há muitas religiões... Tem de haver espaço para todos. Agora, para haver espaço para todos não se pode impedir 70% ou 80% das pessoas que comungam uma religião de terem vergonha de a poderem praticar e de poderem reconhecer a importância central que ela tem. Ninguém pode ficar ofendido por isso.
E com isto termino mesmo, porque não me queria alongar. Muito obrigado pela paciência com que me ouviram, muitas felicitações aos autores, que, olhando para certos tratamentos jornalísticos, tiveram a coragem de defender a família e a identidade que ela gera com a comunidade em que vivemos. E na medida em que a associação possa continuar, digamos, um trabalho que é cívico, que é de certa maneira também moral e ético, seja bem-sucedido porque nós precisamos dessas referências. Elas não são constrangedoras. Nós podemos escolher como quisermos, mas, mais uma vez, só é livre verdadeiramente de escolher quem pode ter opções. Quem pode comparar, quem pode ouvir racionalmente, ou mais emocionalmente, se quiserem, mas que não seja só emocionalmente. Que seja também racionalmente, de modo a poder escolher aquilo que acha que é melhor - não aquilo que é só melhor para si próprio, porque, como nós sabemos - e os economistas sabem isso bem -, as expressões de altruísmo são muito significativas. E sem um equilíbrio entre o interesse individual e aquela que é a forma como nós projetamos o interesse coletivo, que é expressado pelos outros, é nesse equilíbrio que as sociedades conseguem aprofundar-se, tornar-se mais justas. E sem uma noção de justiça não há uma noção de dignidade e sem uma noção de dignidade não existe humanização.
Portanto, os motivos que reúnem esta associação são muito nobres, eu neles me revejo nesse sentido, mesmo que possa não subscrever todas as opiniões que são expressas - e ainda bem. Julgo que ninguém se revê em todos os pensamentos que existem. Mas devemos respeitá-los de uma forma íntegra e é isso que eu espero que os próximos anos possam devolver ao espaço público português.