Bate ou grita aos seus filhos? Pode estar a comprometer-lhes o desenvolvimento. “A criança não fica mais educada, mas sim com medo e mais ansiosa”

8 jul 2023, 08:00
Palmadas em crianças (Foto de Loic Venance/AFP via Getty Images)

A parentalidade positiva está a ganhar terreno e os pais estão cada vez mais conscientes da importância de afastar da educação dos seus filhos o grito, a violência e o castigo. Mas que efeitos pode o grito e a violência ter no desenvolvimento de uma criança? E que alternativas têm os pais para educarem crianças autoconfiantes e seguras?

“Levei muita palmada e não morri!”, “Fiquei de castigo muitas vezes e só fez de mim um homem”, “O meu pai gritava comigo e não me tornei psicopata”. São frases muito comuns entre as atuais gerações de avós e até de muitos pais, mas que começam a ser contrariadas. A chamada “educação positiva” não é só uma moda. Ganha cada vez mais terreno e tem vindo a provar que a educação baseada na violência física e verbal acarreta riscos que podem colocar em causa o desenvolvimento das crianças e a saúde mental (e não só) dos futuros adultos.

“A criança não fica mais educada, mas sim com medo e mais ansiosa. É importante que os pais tentem perceber o que está por trás da atitude desafiadora dos filhos (chamada de atenção, carência, dificuldade na autorregulação...) e tentem usar uma linguagem clara, positiva e firme”, aconselha a neuropediatra Mónica Vasconcellos.

A psicóloga Tânia Correia, especialista em parentalidade positiva, mãe de duas crianças (com sete anos e nove meses) e autora do blogue “3m’s – Menina, Mulher, Mãe”, acredita que estamos a assistir a uma mudança: “Temos uma geração de pais que cada vez procura mais informação, procura quebrar padrões. É uma geração muito corajosa, porque quebrar padrões muitas vezes implica mexer em feridas e implica, muitas vezes, dar à criança algo que não se teve. E isso é muito duro.”

Quando o grito diz mais dos pais do que do comportamento dos filhos

Berta Pinto Ferreira, médica especialista em Psiquiatria da Infância e Adolescência, sublinha que “gritar é um ato de desespero”. “É o que se faz quando tudo o resto falha. Não é uma forma positiva de educar. Mas todos os pais desesperam. E há sempre um grito”, admite.

“Os gritos também são uma forma de violência. Os pais já estarão no seu limite e pode não ser só por causa da criança. Muitas vezes nem sequer é por causa da criança. Foi porque nos correu mal o dia, porque nos aborrecemos no trabalho…”, exemplifica a psicóloga Raquel Raimundo.

Tânia Correia assina por baixo e lembra que “todos temos os nossos problemas e às vezes os filhos tocam nos nossos gatilhos". "Não é responsabilidade deles, mas tocam nos nossos gatilhos e afetam-nos.”

O problema do grito é que até pode resultar, mas “é uma estratégia que só resulta no imediato”. Exerce nas crianças o mesmo efeito que o radar de velocidade exerce nos condutores: moderam a velocidade quando sabem que estão sob o controlo do radar, mas aceleram mal sabem que já saíram da sua alçada. “Passa-se o mesmo com a criança. É um efeito imediato e que só resulta quando ela está diante de determinada figura”, acrescenta Tânia Correia.

Os riscos do grito e do castigo

Os especialistas são unânimes: qualquer forma de violência que se exerça na educação das crianças tem como efeito a diminuição da autoestima e um aumento da ansiedade, sobretudo quando vem acompanhada de mensagens negativas como “só fazes asneiras”, ou “és mau”, ou mesmo “menina feia”. Uma diminuição da autoestima que “tende a perpetuar-se no tempo e leva tempo a desaparecer”.

A psicóloga Raquel Raimundo considera que castigar uma criança ou gritar-lhe “é ensinar-lhe que a violência é uma forma de resolver os conflitos ou uma forma de obter algo das outras pessoas”. E as crianças tendem, assim, a repetir o comportamento com os colegas de escola ou até com os professores.

E estes são apenas os efeitos de curto prazo. Porque as consequências podem perpetuar-se no tempo. Além de se tornarem adultos com baixa autoestima, ansiosos e com incapacidade de gerir a frustração, estas crianças “tendem a perpetuar os comportamentos, mesmo mais tarde com os próprios filhos”.

“Acompanho muitos casos, mas muitos mesmo, de adultos que não conseguem ser assertivos e cujos comportamentos andam entre alguém que se torna passivo, sem voz, e alguém agressivo que repete os mesmos comportamentos”, indica Tânia Correia.

As psicólogas identificam ainda o perigo da escalada de violência. Porque a criança vai-se resignando, “o cérebro vai-se habituando” e o grito deixa de fazer efeito. E vem o castigo e a palmada e a bofetada e a sova…

A educação com base na violência faz ainda com que a criança deixe de ver no pai ou na mãe o seu porto seguro, alguém a quem pode recorrer quando estiver em apuros. E, numa situação de bullying, por exemplo, podem não se sentir confortáveis para pedir ajuda e acabarem a sofrer em silêncio.

“Eles vão fazer asneiras pela vida fora, de tipos diferentes. Nós, na infância, podemos estabelecer se eles vêm para nós pedir ajuda, partilhar ou se fogem quando fizerem asneiras porque se sentem humilhados ou amedrontados”, resume Tânia Correia.

Então como devemos educar os nossos filhos?

Uma criança não se educa sem regras e sem limites. São até importantes para que se sintam seguras e ganhem confiança. É importante definir limites e regras de forma clara e quando é que as exceções são aceitáveis.  Mas isso não significa que regras e limites tenham de ser impostos à custa de violência e de castigos. Até porque regras e limites negociados por todos têm uma adesão mais fácil de todos. “Em casa, há uma hierarquia que deve ser respeitada, mas não quer dizer que haja uma ditadura”, lembra Raquel Raimundo.

O diálogo é uma das chaves para uma educação positiva. E é importante também ajustar expectativas, “desde logo, expectativas daquilo que é a infância e as necessidades das crianças”. “Há comportamentos que assumimos como eles estando a desafiar-nos e são só comportamentos de resposta às necessidades das crianças e de descoberta do mundo que as rodeia. Depois, é também importante que percebamos as necessidades de cada etapa da infância”, lembra a psicóloga Tânia Correia.

Devemos, enquanto sociedade, investir em perceber a infância”, acrescenta a especialista.

Para a psicóloga, “há uma diferença entre o que eles sabem e o que eles são capazes de fazer”: “Uma criança até sabe que não deve fazer determinada coisa. E, se lhe perguntar, ela até é capaz de fazer com o dedinho que não se faz. Mas ainda não tem maturidade cerebral que lhe dê autocontrolo e ela vai fazer na mesma.”

Outra das chaves que podem abrir a porta da parentalidade positiva é a assertividade. E um pai tem de ser firme e assertivo. “Há crianças que mandam brinquedos fora da janela. Uma primeira vez é normal. Está a testar. Mas depois é ‘se voltares a fazer, ficas sem o brinquedo’”, exemplifica Berta Pinto Ferreira.

É também importante a valorização dos bons comportamentos. E nem precisa de haver uma recompensa material: “O facto de a criança ver que os pais estão satisfeitos com o que ela fez é suficiente para se sentir recompensada.”

A importância da reflexão e de aprendermos a perdoar-nos

Os especialistas lembram que há exceções e há alturas em que um grito até pode fazer sentido na educação de um filho. Exemplo disso é quando estão perante um perigo iminente e é preciso detê-los. “São gritos de salvaguarda e fazem sentido”, observa Berta Pinto Ferreira.

Além disso, os pais precisam de ter consciência de que educar um filho é uma tarefa árdua. E educar um filho em pleno século XXI é ainda mais difícil. “Ter um filho parece exigir cada vez mais competências e cada vez mais requisitos da parte dos pais. E ser filho no século XXI é também mais exigente. Busca-se cada vez mais a perfeição e esquece-se que o erro faz parte da aprendizagem. Costumo dizer que o Edison fez mais de mil tentativas até inventar a lâmpada elétrica”, conta a psicóloga Raquel Raimundo.

A especialista Berta Pinto Ferreira lembra ainda que somos pais numa altura em que nos falta tempo para tudo. “Os pais muitas vezes não têm disponibilidade de desfocar as crianças do que elas estão a fazer de mal para as focar noutra coisa. Não têm tempo para brincar com os filhos, para um jogo de tabuleiro, para um passeio no parque…”, aponta.

É importante também que tenhamos consciência que não é por perdermos as estribeiras uma vez e “termos um momento menos bom que a criança vai ficar traumatizada”. O importante é que sejamos capazes de reconhecer o erro, desculparmo-nos e pedir desculpa aos nossos filhos. Afinal de contas, quando lhes pedimos desculpa por um momento menos bom nosso, também lhes estamos a ensinar a importância de reconhecer o erro e de pedir perdão.

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