O SOM E A FÚRIA

A que horas choras hoje, coração?

Sex, 23 fev 2024

A campanha eleitoral jorra lágrimas. Um dia perguntaremos: “Quando foi a última vez que não choraste?”

Os políticos sofrem. Os políticos erram. Os políticos choram pela primeira vez. Os políticos carregam na solidão íntima todo o peso do mundo. E têm um filho com a alegria das manhãs, uma avó que recebe cartas da angústia, uma mãe que telefona no dia da renda, um marido que é o sol e uma mulher que é o mar. Os políticos choram outra vez pela primeira vez. Eles não desistem mas desabam e desabam mas não desistem. Eles são Atlas de responsabilidades e Hércules de trabalhos, sacrificam-se, vêm de baixo e andam para a frente, eles sentem as injustiças do país, sentem até a injustiça do seu privilégio, eles autodescobrem-se e autoajudam-se e autorevelam-se na força da fragilidade humana. Os políticos são como “as pessoas lá de casa”. E os políticos choram mais, choram muito, choram como se pela última vez. E esta pessegada toda agora entra-nos campanha adentro e ecrãs afora, no horário entre o colégio privado da manhã e o comício de insultos da noite.

Não faço disto uma irritação particular, mas uma constatação do processo desenfreado de emocionalização em curso, para consumo eleitoral e potencialmente eletivo. Toda a gente faz o que quer da vida, incluindo stripteases mais ou menos narcísicos, catarses mais ou menos autocomplacentes e derramamentos míticos de lágrimas como nem Alcoa verteu por Baça. Não ponho em causa a franqueza da fraqueza, mas a denunciada e deliberada intencionalidade: isto de chorar com hora marcada é todo um programa não-político. Em cima das eleições, com media training e metalinguagem de exibicionismo sentimental. Sim, sentimental - emocional era Jorge Sampaio, pelo que se entrevia e não pelo que se atrevia.

Já tínhamos o arroz de atum e o bacalhau com natas, mas a choradeira é novidade desta campanha. Os políticos abrem em simultâneo o coração e a porta de casa, como se desconhecessem que, uma vez aberta, ela nunca mais se fecha. Que o diga Mariana Mortágua, perseguida agora pela culatra do seu próprio tiro com a sobressaltada avó de quem agora já se sabe (e usa) tudo, pobre senhora. Que o diga Rui Tavares, esmagado pelo furacão sem escrúpulo depois do zéfiro que ele mesmo soprou quando citou o filho, pobre rapaz. Que nunca o diga Pedro Nuno Santos, que senta o filho ao colo à frente de mil câmaras e mostra as suas fotografias atrás de mil ecrãs, rico menino de quem já entregaram o anonimato. Que não o diga Luís Montenegro, que se autofilma para a rede social a lacrimejar saudades de quando era ladino. Que um dia o possa dizer André Ventura, supõe-se, que não tem filhos por custo pessoal e proteção de ameaças à segurança que a vida política (lhe) trouxe.

Este drive-in nos jardins das casas familiares era mais comum na direita, na esquerda é coisa nova. Talvez tenha começado com António Costa, e apenas no final do seu mandato, quanto inventou a empatia enquanto discurso: perceber bem os professores porque a mulher é professora ou contar a história da senhora que encontrou na farmácia foram exemplos recentes, ainda assim a léguas de um exibicionismo conjugal. Mesmo se haverá um objetivo comum: o da falha, o do erro, o da dificuldade humana. Quando Pedro Nuno Santos diz que em toda a Europa há problemas de habitação está no fundo a solicitar condescendência.

O problema do campeonato da choradeira não está na choradeira em si, está na intenção, na consequência e na possível sequência. A intenção é ganhar votos. A consequência é o ricochete. A sequência é sabe-se lá o quê, depois disto terão de descer a novos infernos para impressionar. Um dia perguntaremos “quando foi a última vez que não choraste?”

A emoção é arma dos populismos primários, que usam o medo, a ameaça, a dúvida e o ódio como formas de convocatória. O contrário do grito não é o choro, é o silêncio. Mesmo se por antónimos, a linguagem é na mesma a emocional. E nessa linguagem há muitos charlatães competentes, dispostos a chorar mais, a gritar mais, a sangrar mais, a tudo o mais. No fundo, manipula-se. E infantiliza-se o público. “Sinta quem lê!”, escreveu Pessoa.

O campeonato da choradeira é o inverso do da idolatria, que esculpe líderes e heróis, e usa o mesmo instinto e recursos mas para “humanizar”, criar identificação, aproximar pela compaixão, pela comiseração e pelo consolo. É uma dramaturgia que consegue pôr o público a ter simpatia até por vilões dissimulados como Iago ou assassinos demenciais como Macbeth.

Isto não é política, são políticos. Humanos, sim, e ambiciosos são: bom mesmo é ganhar, não é verdade? Quem quer vende sentimentalismo, quem quiser compra o produto. No fundo, tudo é espetáculo e o espetacular vazio consumar-se-á não no dia em que políticos já não se perguntarem se o seu choro é verosímil, mas quando o público já não se comover com a possibilidade de ele ser verdadeiro. Como, já enlouquecido, pergunta o Rei Lear a Cordélia ao vê-la chorar: “Be your tears wet?, as tuas lágrimas são molhadas?

 

 

O SOM E A FÚRIA

Newsletter diária de Pedro Santos Guerreiro sobre a campanha eleitoral das legislativas de 2024

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