Alteração aos estatutos dos veterinários põe "em causa a saúde pública”, “o bem-estar animal” e até “a alimentação das pessoas”

23 jun 2023, 17:15
Jorge Cid

A proposta de lei final chegou já de noite e a Ordem dos Veterinários foi, de novo, surpreendida pelo conteúdo. “Continuam a aparecer situações às quais nos vamos opor determinantemente”, garante o bastonário à CNN Portugal

O bastonário da Ordem dos Médicos Veterinários considera, em entrevista à CNN Portugal, que a proposta final do Governo de alteração aos estatutos das ordens profissionais coloca “em causa a saúde pública”, tal como “o bem-estar animal, a sua saúde” e, até, “a alimentação das pessoas”, sublinhando que os produtos de origem animal que consumimos são inspecionados por estes médicos. Apesar de assumir que “houve alguns avanços”, Jorge Cid garante que continuam “a aparecer situações” às quais se vai “opor determinantemente”.

Jorge Cid reconhece que a maioria das pessoas olha para o médico veterinário “como o profissional para tratar os animais de companhia”, mas lembra que “é muito mais que isso” e que “tem um papel extremamente importante na saúde pública”. Como, por exemplo, “na prevenção e erradicação de zoonoses”, doenças e infeções transmitidas ao homem através dos animais (são os casos da brucelose, dengue, raiva ou toxoplasmose, entre outras). Por essa razão, “qualquer produto que é destinado à alimentação e que é consumido em Portugal, de origem animal, é previamente inspecionado pelo médico veterinário”.

“Estas áreas nunca podem ser postas em causa, nem nunca poderão ser exercidas por um veterinário que não tenha as habilitações necessárias para o fazer. Neste caso, um curso Superior de Medicina Veterinária”. Jorge Cid lembra ainda que cada vez se fala mais “numa só saúde”, que juntaria “a medicina humana e a veterinária”, até porque os estudos mostram que “75% das doenças emergentes são de origem animal”.

Ou seja, o trabalho conjunto é essencial: “Deve haver cada vez mais essa preocupação e essa especialização” e, aqui, “as Ordens têm de ter um papel importantíssimo, seja na formação dos seus membros, mas também na supervisão”. 

Com a aprovação dos novos estatutos, “quem vai sofrer são os destinatários dos nossos serviços, que é o público em geral, os detentores de animais, os consumidores”. Ou seja, “as pessoas de mais baixos recursos podem vir a recorrer a pessoas ‘não profissionais’ que, eventualmente, poderão praticar preços mais baixos, mas que não são nem auditadas, nem controladas. Quem vai responsabilizar-se?”. 

A Ordem dos Veterinários já pediu audiências com todos os partidos com assento na Assembleia da República: “Vamos sentar-nos e, com todos os meios que tivermos ao nosso alcance, vamos demonstrar que isto não tem pés nem cabeça. É um perigo, nem consigo vislumbrar qualquer tipo de vantagem. Antes pelo contrário”. 

Argumentos "falaciosos”

Perante o maior argumento do Governo, de que é “preciso facilitar ou tirar barreiras ao exercício da profissão”, e que fala em “trabalho digno” devido aos estágios, Jorge Cid responde: “No nosso caso, nunca houve estágio. Qualquer aluno que acabe o seu curso e apresente o seu certificado de habilitações recebe imediatamente a carteira profissional e começa a trabalhar. Não há aqui qualquer entrave”. 

“Quando se argumenta com estas situações, ficamos estupefactos. Como é que é possível estar a arranjar argumentos que são falaciosos?”, questiona. E este é “um erro”, na sua opinião, “de conceção”. Trataram “as Ordens de maneira transversal e elas são todas diferentes”.

A Ordem dos Veterinários (OMV) é “relativamente pequena". "Devemos ter cerca de sete mil membros”, explica. “O nosso orçamento não tem qualquer contribuição dos cidadãos ou do Governo. As únicas receitas que temos são, única e exclusivamente, das quotas que os membros inscritos na ordem pagam”.

Mas há órgãos “impostos” com este novo estatuto: um provedor e um conselho de supervisão, ambos remunerados. No caso da OMV, “qualquer órgão social da nossa ordem não tem nenhuma remuneração, nem direta nem indireta. Fazemos isto ‘pro bono’ em defesa da classe e por um sentido de, enfim, dever público”. Nem o bastonário recebe qualquer vencimento. 

A obrigação de pagar aos novos órgãos “pode pôr em causa a viabilidade financeira da Ordem e até acabar com ela a curto ou longo prazo”, lamenta. “Isso parece-me extremamente perigoso, parece-me o princípio da desregulação completa da profissão”, afirma. 

Apesar de haver um Governo sustentado por uma maioria na Assembleia da República, Jorge Cid tem “esperança” de conseguir “alterar aqui alguns pressupostos”.

Órgãos novos "para controlar as Ordens”

“O Conselho de Supervisão é um conselho que vai ter todos os poderes e mais alguns. No nosso caso, são cinco elementos e apenas dois terão de estar inscritos na Ordem”. Para provedor, fala-se em “pessoas de reconhecido mérito". "Quem é que define o reconhecido mérito?”, questiona.

A medicina veterinária “tem feito uma evolução tecnológica e científica brutal". "Precisamos de pessoas - que estejam no conselho e que estejam dentro da ordem - que saibam exatamente quais são as necessidades da ordem, que façam formações conducentes a isso e que possam avaliar com conhecimento de causa.  Não podem ser pessoas que estão completamente fora da profissão ou que, eventualmente, só têm uma atividade académica e não dominam todas as áreas”, justifica.

E, por isso mesmo, afirma: “Não percebemos qual é o objetivo final de impor estes órgãos. Portanto, eu só posso concluir que são órgãos para controlar as ordens. Quando as ordens prestam um serviço fundamental ao Estado, substituem o Estado em muitos aspetos”.

As propostas finais dos respetivos Estatutos das Ordens Profissionais, nas quais se inclui a OMV, foram recebidas, dia 19 de junho (segunda-feira), cerca das 22h00. “Lamento todo este desenrolar. A maneira como foi feito. Os prazos que nos deram para nos pronunciarmos de dois, três, quatro dias úteis. Foi muito pouco, eu diria, democrático, transparente”. Até porque “as ordens não deviam ser tratadas assim, porque são fundamentais para a nossa sociedade, são a defesa dos destinatários dos serviços, da qualidade dos serviços prestados. Deviam ser acarinhadas e não atacadas”.

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