Nuno Lemos ajudou a resolver um problema com 60 anos. E garante que a fusão nuclear "será sempre a energia do futuro"

15 set 2023, 07:00
Laboratório Nacional Lawrence Livermore (AP)

ENTREVISTA || Nuno Lemos formou-se no Instituto Superior Técnico, em Lisboa, e tem mais de 15 anos de experiência em investigação na área da Física. É um dos investigadores do projeto que pretende vir a tornar possível a comercialização de energia através de fusão nuclear, imitando aquilo que acontece no sol

Há quem diga que é daqui a 10, outros pensam que nem em 20 anos vamos consumir energia através da fusão nuclear. Para lá chegar é preciso fazer o que já foi feito, mas com 100 vezes maior potência. O objetivo é produzir um gigawatt, que pode ser suficiente para abastecer cerca de 800 mil casas. Nuno Lemos, em entrevista por escrito, prefere não arriscar uma data, mas lembra que as empresas estão a prometer: 10 a 20 anos. 

Primeiro a guerra e a necessidade de independência energética. Depois o filme Oppenheimer a voltar a trazer o nuclear como um dos temas da atualidade. Nunca houve tanta atenção mediática dada à energia nuclear? 

O resultado que foi obtido pelo National Ignition Facility (NIF), no Lawrence Livermore National Laboratory em agosto de 2021 e, mais recentemente em dezembro de 2022, voltou a trazer cobertura mediática principalmente para a produção de energia por fusão nuclear. Uma das métricas que pode ser usada para substanciar este fenómeno é a quantidade de startups em fusão nuclear que surgiram no último ano a nível mundial – cerca de 13, o que representa um aumento de 40% no total de companhias que estudam a produção de energia ou outras aplicações por fusão nuclear. Potenciado por este resultado e pelas alterações climáticas a discussão da produção de energia por Fissão também voltou a ser foco de discussão.

Que efeitos pode ter este novo foco? Será positivo para a investigação? 

Sem dúvida que a exposição mediática é positiva para este campo de investigação. É importante formar mais pessoas nesta área para manter e desenvolver o conhecimento. A cobertura mediática e o alcance são extremamente importantes para motivar e encorajar mais pessoas a estudar estes problemas. 

Existe uma maior abertura da sociedade em relação a um novo investimento no nuclear? Qual a diferença de perspetiva que nota entre a Europa e os Estados Unidos (EUA)? 

Como referi antes, o número de startups que estudam fusão nuclear para produzir energia e outras aplicações aumentou 40% no último ano (para fissão nuclear não tenho informação). Isto mostra grande interesse dos investidores que vêm o potencial desta tecnologia, principalmente depois do resultado obtido em dezembro.  Tanto a Europa como os EUA estão envolvidos em vários projetos de investigação para produzir energia através da fusão nuclear usando várias abordagens.

Como se explica o processo de fusão nuclear?

A Fusão é o processo através do qual as estrelas produzem energia. As reações de fusão acontecem por confinamento gravitacional, onde a massa da estrela é tão elevada que comprime o plasma no centro da estrela a densidades de centenas de gramas por centímetro cúbico e onde são atingidas temperaturas de 15 milhões de graus Celsius. Estas são as condições necessárias para a ocorrência das reações de fusão que mantêm o sol a produzir a radiação da qual todos tiramos partido nas nossas vidas quotidianas. O que estamos a tentar fazer é reproduzir este processo aqui na terra e criar uma miniestrela para produzir energia. 

Os projetos são diferentes na Europa e nos EUA?

Na Europa o projeto principal é o International Thermonuclear Experimental Reactor (ITER) que tem a colaboração de vários países incluindo os EUA. A ideia é produzir fusão por confinamento magnético usando um tokamak [máquina onde ocorre a fusão]. Neste caso o confinamento do plasma é feito por campos magnéticos que mantêm as altas temperaturas durante um certo período necessário para iniciar as reações de fusão.  

Nos EUA entre vários projetos temos o NIF (onde trabalho) onde se estuda a produção de energia por fusão nuclear através de confinamento inercial. A fusão por confinamento inercial pode ser obtida usando lasers de alta potência para conduzir uma implosão esférica usando Raios-X produzidos pelo laser que aquecem rapidamente a superfície de uma cápsula contendo combustível deutério-trítio. A explosão da parte de fora da cápsula acelera o combustível para o centro da cápsula. Chega a um certo ponto que não é possível comprimir mais o combustível e este estagna criando um núcleo central quente, rodeado por uma densa camada confinante. O núcleo entra em ignição e inicia uma onda de reações de fusão que se propaga de dentro para fora até chegar à parte densa do combustível produzindo muitas vezes a energia de entrada. 

Uma diferença bastante notória entre a Europa e os EUA é o investimento privado no sector de fusão nuclear. Temos 25 empresas no EUA e 9 na Europa.

Nuno Lemos trabalha no Livermore National Laboratory desde 2016

E a nível de investimento, também encontramos esta diferença? O mundo parece conhecer melhor o projeto do Lawrence Livermore do que o que vem sendo desenvolvido no ITER. Será só uma sensação, ou é mesmo assim? 

Não tenho números para o investimento na Europa e nos EUA, mas como referi existem 2,7 mais empresas que se baseiam na tecnologia de fusão nuclear nos EUA do que na Europa. 

Não tenho uma métrica para comentar qual o projeto mais conhecido, mas no último ano devido aos resultados obtidos pelo LLNL, este laboratório teve bastante cobertura mediática. Se foi mais ou menos que o ITER não tenho informação para comentar. 

Isto justifica-se porque os Estados Unidos conseguem uma melhor campanha de marketing para as suas investigações? 

Depende muito das áreas e dos resultados, não creio que se possa generalizar. 

Mas no fim também significa maior capacidade de investimento, não? 

Na generalidade a indústria e a investigação têm uma ligação mais forte nos EUA do que na Europa, o que leva a um maior investimento na investigação. 

Indo um pouco àquilo que faz em concreto. Qual a sua contribuição para os projetos do Lawrence Livermore? 

Sou físico e estudo a interação de lasers e plasmas que tem uma aplicação direta no que fazemos no NIF. Aqui utilizamos lasers que de uma maneira indireta produzem reações de fusão.

Ilustração demonstra o funcionamento da energia nuclear (Laboratório Nacional Lawrence Livermore)

Em relação à experiência de dezembro de 2022, que foi um marco na ciência, qual foi a sua contribuição? 

Trabalho como staff scientist para o programa de fusão por confinamento inercial no Lawrence Livermore National, que é a equipa responsável pelo programa experimental nesta área.  

Devemos olhar para esses resultados como um pequeno passo de um processo muito longo, ou o mais difícil já foi feito? 

A resposta depende de qual é o objetivo. Se o objetivo é produzir uma fonte de energia a partir da fusão nuclear, este foi um passo muito importante, mas ainda existem muito desafios de igual ou maior magnitude para resolver. 

Há quem fale em décadas até que possamos começar a consumir energia produzida por fusão nuclear. Esta forma de energia alguma vez será viável? Conseguimos apontar um período para que isso aconteça? 

Essa é a million-dollar question. Energia por fusão nuclear tem uma reputação de querer ser a energia do futuro e será sempre a energia do futuro. Mas o resultado que foi obtido no NIF foi muito importante e demonstrou que é possível obter ignição em fusão nuclear, um problema que demorou cerca de 60 anos a ser resolvido. No entanto, ainda estamos longe de ter uma fonte de energia como o que acontece com a fissão nuclear. Se utilizarmos a mesma abordagem que foi usada no NIF, isto é, usando a fusão por confinamento inercial, necessitaríamos de um ganho de perto de 100 vezes (o obtido no NIF foi mais ou menos 1,5 vezes) e com uma taxa de repetição de 900 vezes por minuto para obter um gigawatt, que seria o suficiente para abastecer cerca de 800 mil casas. Não quero arriscar numa previsão de quando vamos ter uma fonte de energia por fusão nuclear, mas como métrica podemos ver o que as companhias estão a prometer – 10 a 20 anos. Se isto está correto ou não, não posso comentar porque não tenho mais informação. 

Existe alguma forma de conseguirmos acelerar o processo, nomeadamente através de mais investimento? 

Com mais investimento podemos ter mais pessoas a tentar resolver o problema e construir mais máquinas para testar diferentes abordagens, mas isto tudo leva tempo, porque mesmo sem restrições económicas necessitaríamos de 10 a 20 anos para construir máquinas novas. O investimento privado está a aumentar, e de 2021 para 2022 aumentou mais de 1,6 mil milhões de dólares para um total de 6 mil milhões de dólares. 

Os Estados Unidos estão um passo à frente? 

Os EUA têm investimentos em várias frentes para estudar fusão nuclear e como referi antes têm 25 empresas que representam cerca de 60% de todas as empresas a nível mundial que estudam fusão nuclear. 

O que o levou a ir para os Estados Unidos? 

Vim para os EUA para fazer parte do meu doutoramento em física de plasmas na Universidade da Califórnia (UCLA) onde está um dos grupos de referência nesta área. 

Sente que em Portugal nunca teria possibilidades de trabalhar nesta área? 

Em Portugal existe um grupo no Instituto Superior Técnico que estuda estes problemas (IPFN-GoLP) e foi aí onde comecei a minha carreira de investigação. É um grupo de excelência e renome mundial na parte de teoria e computação, na área de interação laser-plasma, mas eu queria fazer algo mais experimental. Por isso decidi ir para os EUA onde existem laboratórios com as escalas necessárias para realizar este tipo de experiências. 

Academicamente estamos ao nível dos melhores? O que falta para dar o passo em frente? 

Durante a minha carreira trabalhei em vários sítios e com pessoas que tiveram formação em todas as partes de mundo e nunca senti que a minha formação base fosse inferior à dos meus pares, antes pelo contrário.  

Um maior investimento do Governo na área seria decisivo para reter este talento, ou não há espaço para que esta área se desenvolva em Portugal? 

O investimento para liderar o desenvolvimento da fusão nuclear é enorme e é por isso que a Europa está a apostar no investimento coletivo como é o exemplo do ITER, onde Portugal também colabora. 

Vemos muitos países reticentes em falar sobre a energia nuclear. A Alemanha quase que parece estar perante um tabu. E cá, faz sentido abrir essa discussão? 

A minha visão é de que a energia nuclear (fissão e fusão) tem de fazer parte das fontes de energia do mundo onde vivemos. Se faz sentido termos agora uma central nuclear em Portugal não posso comentar, mas no futuro, quando a tecnologia das centrais de fusão nuclear estiver desenvolvida acho que fará sentido implementarmos esta tecnologia em Portugal. 

Em todo o caso, consumimos energia nuclear importada de Espanha, ainda que muitas vezes utilizemos a narrativa de que não utilizamos esta energia. Sente que ainda existe um estigma em relação ao nuclear? 

A energia nuclear por fissão tem sempre o problema dos resíduos radioativos que gera e da instabilidade que pode ocorrer para controlar a reação (infelizmente existem vários exemplos que ocorreram no passado). A vantagem da energia nuclear por fusão é que numa maneira simplista não gera resíduos radioativos (diretamente), apenas hélio e neutrões, e pode ser parada a qualquer momento, bastando para isso controlar a quantidade de combustível utilizado por cada ciclo. 

É possível pensar num futuro sustentável apenas com base nas energias renováveis, ou o nuclear terá definitivamente de entrar em cena para que avancemos com a descarbonização? 

A energia nuclear por fusão tem de fazer parte do nosso futuro e virá para auxiliar a descarbonização.

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