“Filipe Sá”, o falso notário que a justiça não encontrou

21 jul 2023, 07:00
Trabalhadores

Primeiros casos de burlas remontam a 2019, mas a Justiça não conseguiu encontrar o autor ou autores. Oferecem empréstimos ou falsas doações. Sempre que as denúncias chegam à Ordem dos Notários, seguem para o Ministério Público. Mas são arquivadas. Bastonário falou sobre estes casos à CNN Portugal

Um dos primeiros alertas chegou por email à Ordem dos Notários, em dezembro de 2019. Tratava-se do pedido de ajuda de uma pessoa que suspeitava que algo não estava bem no processo de empréstimo de 70 mil euros que fizera através de alguém que dizia ser notário e queria saber se havia registo do profissional em causa. Mas não havia.

Emails com a mesma dúvida e com o mesmo "notário" começam a chegar à Ordem uns atrás dos outros e depressa os responsáveis da Ordem perceberem que Filipe Sá era um falso notário que andava a burlar quem conseguia: prometia ajudar quem precisava de empréstimos e para fazer o contrato exigia um valor antecipado pelo serviço administrativo. Quem o pagava nunca mais lhe apanhava o rasto. E nem empréstimo, nem contrato. Nada.    

As queixas foram enviadas pela Ordem dos Notários ao Ministério Público, mas acabaram arquivadas. Jorge Batista da Silva, bastonário dos notários, garante à CNN Portugal, que o caso que envolveu Filipe Sá não é único e explica que a maioria das burlas envolvem serviços relacionados com “empréstimos” e doações”. 

"Estas burlas são mais ao menos cíclicas. Chegam às pessoas por email, Whatsapp, Facebook”. E a Ordem dos Notários só pode atuar quando lhes chega a denúncia.

A tentativa de burla mais recente “é de 2023 e o esquema é mais ou menos o mesmo”. O objetivo é sempre igual, levar as vítimas a fazer “uma transferência em dinheiro para pagar antecipadamente despesas administrativas”, explica Jorge Batista da Silva.

Durante algum tempo, muitas das burlas eram feitas em nome de um ‘Filipe Sá’. Mas os burlões mudaram, entretanto, os nomes dos protagonistas. Usam as mesmas fórmulas, mas mudam os conteúdos. 

Quem é “Filipe Sá”?

Seduzia as pessoas que andavam à procura de empréstimos e oferecia os seus serviços. Apresentava-se como "Filipe Sá" e até usava o logotipo da Ordem dos Notários para dar credibilidade ao documento. Dizia estar em França, e garantia que os seus documentos eram válidos em vários países da Europa. Pela emissão do contrato de empréstimo pedia que lhe pagassem uma quantia pelos serviços administrativos. Ia dos 150 aos 299 euros. Quem o fazia, nunca mais sabia dele, nem do dinheiro. 

Foi ainda em dezembro de 2019, que um segundo email com a mesma fórmula e o mesmo nome: “Filipe Sá”. Desta feita para um empréstimo de 1500 euros. Nos primeiros dias de janeiro, novo email aterra na Ordem dos Notários. Mais uma vítima a perguntar se era verdadeiro ou falso o documento. “Filipe Sá” prometia tratar do contrato para um empréstimo de dez mil euros.

A meio de janeiro as queixas continuavam a chegar. Os documentos eram todos iguais, apenas mudava o nome da vítima e o valor do empréstimo. “Filipe Sá” era sempre o notário. 

Pouco tempo depois, a Ordem enviava a primeira denúncia da burla ao Departamento de Investigação e Ação Penal de Lisboa com toda a informação que tinha e lhe chegava das vítimas. Na mesma altura lançam um alerta na página da Ordem dos Notários e nas redes sociais da instituição. 

Alerta lançado pela Ordem dos Notários

Em setembro a Ordem dos Notários é notificada do despacho de arquivamento da denúncia. A CNN Portugal teve acesso ao despacho. Mesmo reconhecendo que “os factos são suscetíveis de integrar, em abstrato, o crime de burla” e “muito remotamente o crime de usurpação de funções”, e tendo aberto um inquérito, o MP justifica que a investigação chegou a “um impasse inultrapassável” que permita chegar à verdadeira identidade do autor. Além disso, sendo a burla de natureza “semi-pública” necessita de queixa por parte dos ofendidos, o que não aconteceu.

O DIAP explica ainda que fez algumas diligências, mas que após questionar a Google apurou que a língua usada para criar a conta de email usada era francesa, mas o número de telefone era do Benin, tal como o IP de acesso a essa conta. Admite o MP que se trata de uma organização criminosa dedicada a este tipo de crimes e que as atuais funcionalidades tecnológicas - que usam - impedem quase sempre a descoberta dos autores. Além disso, acrescentava, o Benin não era um país cooperante em termos de partilha de informação entre autoridades e uma resposta “podia demorar anos”.

Em novembro de 2020, chega outro email à Ordem dos Notários, enviado por uma solicitadora a pedido de uma cliente. Ambas tinham dúvidas sobre a legalidade do contrato. O documento era exatamente igual aos anteriores. No entanto, “Filipe Sá” chamava-se agora “António”. 

As burlas foram-se espalhando pelo país, Por isso, além da queixa da Ordem dos Notários ao MP, há outra feita por uma pessoa particular, no caso ao DIAP de Évora. Denuncia os mesmos factos, mas o inquérito também acabou arquivado. Segundo este processo, a que a CNN Portugal teve acesso, e quanto à usurpação de funções, o procurador  de Évora considerou que ao “arrogar-se” de notário apenas queria “ganhar credibilidade” para “ludibriar” terceiros o que consistia um crime de burla e não “usurpação de funções”. Porque na verdade não praticou atos ou funções próprias de notário. Acrescenta ainda o MP, neste despacho, que era necessária “a apresentação de queixa” para que fosse possível prosseguir “a ação penal”, o que não aconteceu.

“Muitas pessoas não conseguem distinguir o que é verdadeiro ou o que é falso”

Todavia, já este ano, a Ordem recebeu uma nova queixa. Mas agora relativa a uma suposta doação. Ou seja, alguém é avisado que recebeu uma doação e os burlões cobram um valor para avançarem com o processo administrativo. Neste último caso, apesar dos burlões recorrerem a um notário verdadeiro, uma entidade francesa, o documento é falso. O notário citado não tinha emitido aquele documento. A Ordem alertou os colegas franceses, mas não sabem se as autoridades tomaram, ou não, alguma medida.

No caso que envolve o nome “Filipe Sá”, o bastonário Jorge Batista da Silva explica que “é um caso típico em que eles prometem fazer um empréstimo. O segundo, já é diferente no formato, porque induzem a pessoa que vai receber uma doação”. Muitos dos casos de burla serão feitos por WhatsApp.

O Bastonário da Ordem dos Notários considera que a primeira situação foi muito usada por ser “mais credível, porque envolve um empréstimo”. Já o que garante às pessoas que receberem uma doação, contam muitas vezes com a ingenuidade das vítimas - no caso - “uma senhora idosa, que recebeu uma mensagem por Whatsapp” e que acreditou inicialmente que podia ser verdade. 

“A senhora da doação foi a um cartório e foi informada que o documento não era verdadeiro. O cartório contactou o colega francês, no sentido de verificar se aquilo era verdadeiro ou falso. E depois informou a senhora que aquilo era tudo falso e que a senhora não devia fazer qualquer tipo de transferência”, conta.

“Isto é parecido com a burla ‘Olá pai, olá mãe'” que circula no WhatsApp em que se pede dinheiro em nome dos filhos, entre outros, acrescenta a mesma fonte.

“Muitas pessoas não conseguem distinguir o que é verdadeiro ou o que é falso na internet”. E o facto das pessoas não apresentarem queixa não surpreende Jorge Batista da Silva: “As pessoas desaparecem depois porque têm vergonha”.

“Há quem se aproveite do cinzento da lei”

Esta quarta-feira,dia 19 junho, a Assembleia da República aprovou, na generalidade, o novo estatuto das Ordens Profissionais e o documento não tem o total acordo dos Notários. “Nós temos um problema grave que não vem só deste estatuto, mas do anterior. Nós defendemos que apenas podem utilizar a expressão ‘prestação de serviços notariais’, as pessoas que sejam efetivamente notários”, justifica o bastonário.

“O que tem vindo a acontecer é que uma série de entidades, de diversas naturezas, usam a expressão ‘serviços notariais’ para confundir as pessoas. Uma coisa que defendíamos para este estatuto era que ficasse expressamente consignado que apenas os notários podem prestar estes serviços”.

“O que acontece é que muitas vezes tentam induzir em erro os cidadãos usando a expressão e aproveitando um cinzento da lei. Isto é fundamental neste tipo de burla, porque isto vai se tornar cada vez mais comum”, defende.

E é por isso que a Ordem dos Notários considera fundamental que na presente alteração de estatutos se consagre na Lei que apenas notários podem anunciar praticarem serviços notariais pois só assim será possível a Ordem fiscalizar as tentativas de usurpação de funções e os cidadãos saberem a que entidade se podem queixar ou junto da qual podem obter informações para evitarem serem burlados.

Jorge Batista da Silva lembra que “os cidadãos podem confirmar em www.notarios.pt a autenticidade de um notário português ou confirmar junto da Ordem dos Notários a autenticidade de um notário de qualquer outro país da União Europeia”.

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