Exclusivo: “Ainda temos uma dívida pública muito elevada e muito vulnerável”

15 fev 2022, 21:45

Nazaré da Costa Cabral, presidente do Conselho de Finanças Públicas em entrevista à CNN Portugal

A presidente do Conselho de Finanças Públicas (CFP) pede ambição na redução da dívida pública. Em entrevista à CNN Portugal, Nazaré da Costa Cabral diz que se tem de trazer a dívida pública para os níveis anteriores à pandemia e reafirma a independência da instituição que dirige. No momento em que o CFP comemora 10 anos, a líder do órgão que fiscaliza o cumprimento das regras orçamentais em Portugal e a sustentabilidade das finanças públicas, mostra-se indiferente ao facto de das últimas eleições legislativas ter resultado uma maioria absoluta.

Passada uma década desde que foi criado pode dizer que o Conselho de Finanças Públicas (CFP) tem garantida a sua independência?

O CFP tem desempenhado uma importante missão de serviço público ao longo deste tempo. É uma instituição independente e essa independência está, desde logo, garantida por lei. Embora sejamos uma entidade pública, não estamos sujeitos nem a ordens nem a instruções por parte de outros órgãos e, portanto, exercemos a nossa ação com toda a independência. Também no que diz respeito aos órgãos de governação da instituição, não temos nenhuma relação do ponto de vista político ou partidário e isso também é assegurado por lei. Os nossos estatutos são muito claros na afirmação dessa mesma independência que, aliás, está em linha com o desenho europeu destas instituições orçamentais independentes…

É um órgão essencialmente fiscalizador ou também tem uma função preventiva?

Temos uma função preventiva muito importante: identificar aquela que é, no fundo, a saúde financeira do país e os riscos que podem por em causa essa saúde. Ou seja, identificar precocemente esses riscos para que eles possam ser revertidos e para que a situação não se materialize.

Por outro lado, temos dado um contributo muito importante para que se perceba que as decisões e as medidas de política têm custos. Isto é, que não são gratuitas, que há efeitos que podem e vão recair sobre os cidadãos quando pagam os seus impostos, seja agora, seja mais tarde quando terão de financiar a dívida pública que seja necessário contrair. Temos um papel de afirmação de responsabilidade, de aumento de responsabilidade, de todos os responsáveis políticos.

Essa independência não fica beliscada quando as recomendações do CFP são ignoradas?

Não creio que sejam completamente ignoradas, antes pelo contrário. Creio que hoje o CFP é uma voz ouvida e muito respeitadas por todos os setores políticos. Toda a sociedade está muito atenta às mensagens do CFP porque percebe que elas provêm de uma entidade que é uma identidade independente, que faz o seu trabalho com isenção e que procura fazer o seu trabalho com maior rigor e qualidade técnica. Isto é, contribuindo para que todos possam também exercer um escrutínio daquela que é a ação dos vários responsáveis políticos. Creio que o CFP tem contribuído decisivamente para que possamos ter aqui uma cidadania mais esclarecida, mais exigente e uma democracia mais madura.

Maioria absoluta? “Nós vamos continuar a fazer o nosso trabalho”

Quando estamos prestes a ter um Governo suportado por uma maioria absoluta no Parlamento, que efeitos é que essa nova realidade pode ter no trabalho do CFP?

Nós vamos continuar a fazer o nosso trabalho. A minha preocupação é garantir que esse elevado padrão de qualidade e rigor se mantenha. Naturalmente que temos de ter todas as condições para o fazer e é isso que os cidadãos esperam, que possamos continuar a fazer esse trabalho de escrutínio, de avaliação. Mas independentemente da configuração política.

O que esperamos, tendo em conta a nova situação e tomada de posse do novo Governo, é poder contar com o papel do Governo na garantia do respeito por estes dois princípios fundamentais: por um lado, o princípio da independência, e por outro, o princípio da transparência. Ou seja, que aquilo para nós é crítico para podermos fazer o nosso trabalho, é que o acesso à informação seja cumprido, nomeadamente a informação que provem do Ministério das Finanças porque é com essa que trabalhamos. E para podermos fazer a nossa avaliação, a nossa análise, precisamos de ter essa informação, com qualidade e apresentada de forma tempestiva. No resto, tudo o que tenho procurado assegurar é que temos aqui uma cooperação leal com o Governo e é assim que vamos continuar a trabalhar.

Parece cada vez mais certo que estamos perante uma mudança de política monetária na Europa, com o Banco Central Europeu a preparar-se para subir taxas de juro. Como é que vê a economia nacional neste novo cenário?

Estamos numa fase em que os indicadores são de certa forma favoráveis porque estamos em recuperação económica depois da queda gravíssima que tivemos com a pandemia. E essa recuperação afirma-se sobretudo em duas componentes muito importantes, por um lado o consumo privado, por outro, o bom comportamento das exportações de bens em 2021.

Recentemente a estimativa de crescimento [para 2021] até foi revista em alta pelo Instituto Nacional de Estatística (INE), as projeções também têm vindo a ser revista em alta para 2022, nomeadamente esta última da Comissão Europeia [Portugal deverá crescer 5,5% em 2022] e, portanto, há alguns sinais favoráveis relativamente à capacidade de recuperação da economia.

Mas existem riscos.

Existem alguns riscos importantes. Começando pelo preço das importações, muito por força do aumento do preço da energia, que pode e já está a afetar os termos de troca e, portanto, em última análise, a posição da balança comercial portuguesa. Esse é um aspeto que me parece muito importante. E os sinais, por hora, não são inteiramente favoráveis. Um segundo aspeto tem que ver com a pandemia e com o facto de não estar totalmente ultrapassada, com tudo o que isso envolve em termos de disrupção ao nível das cadeias de abastecimento e da sua reparação. E no caso português temos ainda algumas incógnitas relativamente ao que vai ser a recuperação do turismo.

A evolução das exportações é uma preocupação?

E não apenas por causa destes fatores circunstancias que neste momento se colocam, mas por razões mais profundas e que estão muito relacionadas com a debilidade do crescimento potencial da economia portuguesa, com o peso da dívida externa que temos e que resulta da fraca capacidade exportadora do passado. Estou um pouco preocupada com o que vai ser o comportamento das nossas exportações, aquilo que vai ser a capacidade de resposta das nossas empresas aos desafios que enfrentamos neste novo contexto pós pandemia, quando enfrentamos um conjunto de novos fatores e novos desafios do ponto de vista da transição ambiental e da transição digital.

Passámos um longo período de taxas de juro muito baixas e até negativas. Perdemos oportunidade de mudar o país de forma a aumentar a sua capacidade?

Neste momento o que nos temos de perguntar é como é que as empresas portuguesas se vão posicionar. Creio que isto vai exigir do ponto de vista dos poderes públicos, da política económica, um novo pensamento. Como vamos definir a política de captação e de atração de investimento, como é que vamos redefinir a nossa política de inovação e como é que vamos redefinir a nossa política de desenvolvimento regional. É esta a questão, de saber se as nossas empresas, grandes, pequenas e médias, vão ser capazes, ou não, de não perder este comboio que está aí.

Temos uma situação que do ponto de vista geográfico é uma situação periférica e isso obriga-nos a ser mais criativos, mais ousados e é esse o grande desafio que vamos ter de enfrentar. Espero que com o Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), mas não só, sejamos capazes de aproveitar esta oportunidade. Se não, ficamos de fora, ficamos de fora do ciclo de progresso que se está a abrir no pós pandemia.

Não estamos muito manietados por ter uma dívida pública gigante…

Uma das chamadas de atenção que temos feito e reiterado é justamente para o peso da dívida pública. O problema mais grave das nossas finanças públicas é esse elevado peso da dívida pública.

Devia ter-se feito mais, aproveitando as taxas de juro baixas?

Foi feito um esforço de redução, agora, esse esforço, de certa forma, ficou comprometido com o que aconteceu com a pandemia. O nível da nossa dívida pública e o seu peso no produto voltou a aumentar de forma muito significativa. Em 2021 já se começou a retomar a trajetória de decréscimo, mas a verdade é que ainda é uma dívida muito elevada e é sobretudo uma dívida muito vulnerável. Muito vulnerável ao que podem ser as alterações das condições de financiamento do mercado de dívida. Estamos particularmente expostos a essas alterações de condições.

E temos pela frente uma mudança de política monetária.

E aquilo que podem ser as alterações às condições de financiamento é algo que nos diz respeito. Desde logo porque quando há uma alteração das taxas de juro as novas emissões são afetadas, há um efeito imediato, mas depois pode ter um efeito mais profundo na alteração da taxa de juro implícita, naquilo que são as condições da dinâmica da própria dívida pública, no fundo aquilo que é a trajetória de sustentabilidade da dívida pública. E aqui a posição de Portugal não é confortável.

O que se deve fazer?

A mensagem que tem de ser dada é uma mensagem de credibilidade da política orçamental. A mensagem de que o esforço de consolidação, de redução da dívida pública vai ser prosseguido de forma consistente. É muito importante que em 2024 estejamos com os valores de dívida similares aos que tínhamos antes da pandemia, ou seja, na ordem dos 116% do produto. Creio que do ponto de vista daquela que é a imagem externa do país não seria mau se fossemos ambiciosos no sentido de apontarmos para a redução para valores na ordem dos 100%, que é um valor simbólico, mas que é um valor que do ponto de vista da sustentabilidade tem significado, tem impacto. E para isso temos de passar uma mensagem de credibilidade da política de que a despesa pública vai estar alinhada com a receita pública em percentagem do produto, de que os esforços de consolidação vão prosseguir. O que me parece mais importante nesta fase é garantir que o perfil de risco do país seja satisfatório, que não haja sinais que possam perturbar aquilo que são as condições de financiamento. Sabemos que o mercado de dívida é volátil, tem fatores de volatilidade e temos de estar muito conscientes dessa responsabilidade que é uma responsabilidade nacional.

A proposta de Orçamento do Estado para 2022 responde a essa ambição?

Não queria estar a pronunciar-me sobre a proposta de Orçamento, aliás, o CFP terá oportunidade de o fazer e não queria nesta fase fazer nenhuma apreciação até porque não o conheço, temos alguns sinais, mas não temos ainda uma informação efetiva sobre aquela que vai a ser a proposta de Orçamento do Estado. Agora, do ponto de vista da imagem do país, a afirmação de que apresentamos sinais de credibilidade da nossa política orçamental para que isso não comprometa aquilo que é o perfil de risco do país e aquilo que são as condições de financiamento futuras do país, isso parece-me de facto uma mensagem muito importante.

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