Quem é o Mago Branco que deixou a Argentina em choque

23 nov 2022, 09:19
Hervé Renard (Foto AP)

Hervé Renard fez história em África antes de conduzir a Arábia Saudita a uma das maiores surpresas de sempre em Mundiais. O percurso do treinador que começou por fazer limpezas e recolher lixo, antes de correr mundo

«Adoramos quando se esquecem de nós. Gostamos disso, que nos considerem a equipa mais pequena. Não acredito que passemos à segunda fase, mas estamos aí para lutar contra os prognósticos. Nos Mundiais há surpresas.»

E que surpresa. No dia seguinte a estas palavras, Hervé Renard foi para o banco e liderou a Arábia Saudita na reviravolta frente à Argentina. O antigo jogador anónimo, que trabalhou em limpezas e recolha de lixo antes de se tornar treinador e fazer magia em África, é o cérebro por trás de uma vitória que entra direta para os maiores escândalos de sempre no Campeonato do Mundo.

Junto à linha, no Estádio Lusail, Hervé Renard viu a sua equipa frustrar a Argentina com uma linha defensiva alta e uma segunda parte de motivação e enorme disciplina tática, viu Saleh Al Sheri marcar o golo do empate e depois Al Dawsari disparar para o golaço que consumou o escândalo. Após o jogo, manteve os pés no chão. «Às vezes podem acontecer coisas loucas. Hoje todas as estrelas no céu se alinharam para nós», disse no final: «Quando vimos para um Mundial temos de acreditar em nós próprios. Tudo pode acontecer em futebol. Às vezes o adversário não está no seu melhor nível de motivação. É normal. Já nos aconteceu a jogar com equipas piores que nós. É isto que as pessoas não percebem.»

«Fizemos história no futebol, isso vai ficar para sempre e é o mais importante», disse ainda na sala de imprensa. Mas acrescentando desde logo que o tempo de celebrar já passou: «Fizemos uma bela celebração durante 20 minutos, mas é tudo. Temos de pensar em olhar para a frente. Ainda temos dois jogos muito difíceis para nós no Mundial.»

Crescer a aprender e cruzar-se com  Wenger, Zidane e Deschamps

Aos 54 anos, Renard acumula muita experiência. O treinador francês que tem a camisa branca como imagem de marca e pinta de ator de cinema - as comparações com o ator que encarna a personagem Jaime Lannister na saga Guerra dos Tronos são recorrentes - está no seu segundo Mundial, depois de ter conduzido a seleção de Marrocos em 2018, fez história em África e vem de muito longe.

Renard foi defesa e passou discreto pelo futebol francês. Fez apenas um jogo pelo Cannes na Ligue 1 e, conta, depressa percebeu que o seu nível não era de topo. Mas interessou-se desde cedo pelo papel de treinador, além de se ter cruzado com grandes nomes. Começou na formação do Cannes, onde dava também os primeiros passos como treinador Arséne Wenger. E onde chegou mais tarde um tal de Zinedine Zidane. Em vésperas de começar o Mundial, ele lembrava isso mesmo numa entrevista ao Le Figaro, para dizer que não andava a ter pesadelos com Messi antes da estreia frente à Argentina: «Na minha vida terei jogado contra o Cristiano Ronaldo e Portugal em 2018 e contra o Lionel Messi em 2022. Na formação conheci o Zinedine Zidane e joguei com o Didier Deschamps nas seleções de cadetes francesas. São personagens que fazem sonhar. Não sou muito pelo vedetismo, mas tenho muito respeito pela carreira imensa e pelo que representa Lionel Messi, um jogador fantástico.»

Da recolha de lixo aos bancos

Deixou de jogar em 1998 e no seu horizonte não estava um futuro no futebol. Trabalhava a limpar escritórios e a recolher contentores de lixo. «Levantava-me às 2h30 da manhã, acabava ao meio-dia, partia às 17h para Draguignan para o treino e voltava a casa às 21h30. Foi o meu ritmo de vida durante oito anos», contou à BBC África. Jogava no Draguignan, o pequeno clube no sul de França que passou depois a treinar. Conseguiu bons resultados e em 2002 a sua vida mudou. Claude Le Roy, outro de vários treinadores franceses que fizeram carreira no futebol africano, ia para a China e convidou-o para seu adjunto. «Ele procurava um adjunto e escolheu-me. Não sei porquê eu, mas agarrei a oportunidade», contou Renard ao Libération.

A passagem pela China foi curta, mas Renard seguiu com Leroy para outra aventura, agora no futebol inglês. Depois de Le Roy sair assumiu o comando do Cambridge United, no quarto escalão do futebol inglês, e também não ficou muito tempo: saiu em dezembro, numa época em que o clube foi despromovido. Mas os conhecimentos e o trabalho metódico de Renard deixaram marcas. «Em 2004 o Hervé fazia coisas que eu só fiz com outros treinadores cinco ou seis anos mais tarde. Estava noutro nível em termos de fitness e nutrição», contou ao Guardian o antigo avançado Jermaine Easter.

O futebol inglês antes da «magia» de África

Depois do Cambridge, Renard voltou a França para treinar o Cherbourg, mas em 2008, após nova chamada de Claude Le Roy, encontrou o seu destino. Agora, o convite era para trabalhar com a seleção do Gana. Foi aí que se apaixonou pelo futebol africano. «Havia qualquer coisa de mágico. Era preciso chegar com respeito. Se chegássemos como se estivéssemos em território conquistado, como se soubéssemos tudo, não dava», disse ao Libération.

A partir daí começou uma carreira a solo. Depois de uma primeira passagem pela seleção da Zâmbia, sucedeu a Manuel José como selecionador de Angola em maio de 2010, mas saiu ao fim de seis meses, por várias divergências relacionadas com o visto e com o contrato. Ainda treinou na Argélia, para regressar depois à Zâmbia e conseguir em 2012 a incrível proeza de levar a equipa à primeira e única conquista da CAN.

Três anos mais tarde repetiu a proeza. Pegou na Costa do Marfim e levou-a a vencer a maior competição africana de seleções, em 2015. Era o primeiro treinador a conquistar a prova por duas seleções diferentes. Estava garantido o estatuto de lenda em África daquele a quem chamaram Mago Branco. Ou também «Raposa», num trocadilho com o seu nome.

Sem sucesso em França

Mas não foi feliz no seu país. Renard tentou por duas vezes voltar ao futebol de clubes em França. Sem sucesso. Em 2013/14 orientou o Sochaux, não evitando a descida à Ligue 2. E em 2015/16, já depois de ter levado a Costa do Marfim à conquista da CAN de 2015, começou a época no Lille, mas saiu ao fim de 13 jornadas.

Voltou a África, desta vez para treinar Marrocos. E chegou ao Mundial 2018, onde foi um dos adversários de Portugal no Grupo B. A seleção nacional venceu o confronto, com um golo de Cristiano Ronaldo, e Marrocos terminou no último lugar no grupo, mas tanto no jogo frente a Portugal como no empate frente a Espanha deixou a sensação de que tinha qualidade para mais.

Três anos «a felicitar os jogadores» na Arábia Saudita

Em 2019, depois de levar Marrocos aos oitavos de final da CAN, Renard voltou a deixar África. Assumiu a Arábia Saudita, sucedendo a Juan Antonio Pizzi, e liderou a equipa numa campanha muito sólida na qualificação para o Mundial. Venceu o seu grupo na segunda fase, sem derrotas, e terminou em primeiro lugar na última fase, num grupo que tinha Japão e Austrália.

Foram três anos de preparação num país pelo qual se apaixonou também, diz. Antes do Mundial, renovou contrato até 2027. Depois da vitória sobre a Argentina, felicitou os seus jogadores - «Há três anos que os felicito» - e dedicou a vitória ao povo saudita, enquanto avisava que esperava ter mais adeptos nas bancadas nos próximos jogos.

Renard trabalha num país sob um regime ainda mais repressivo no que diz respeito a direitos humanos que o Qatar. Mas diz que a Arábia Saudita está a fazer um esforço para melhorar. «Desde a chegada do príncipe Mohammed bin Salman em 2017 o país está a abrir-se mais, sem ser como na Europa», afirmou ao Le Fígaro: «Não vamos mentir, ainda há muito progresso a fazer. Mas é preciso ver a história de cada país, as evoluções, compreender as coisas. Não entro em considerações políticas.» Na mesma entrevista, disse acreditar que em relação ao Qatar as polémicas e as pressões quanto aos direitos humanos «vão fazer as coisas evoluir de forma positiva».

O «especial» possível encontro com a França

No Qatar, a Arábia Saudita está num ambiente familiar, perto de casa. Renard, mesmo que diga que não é plausível, alimenta a esperança de passar a primeira fase. Se conseguir, pode defrontar a França nos oitavos de final do Mundial. O treinador não esconde como isso seria especial. «Seria um belo piscar de olhos à minha vida, à minha carreira e ao país que tanto amo», disse ao Fígaro.

É para momentos como esse, e como este que está a viver, que anda no futebol, como diz na mesma entrevista. «Para mim é um orgulho estar na foto com todos os treinadores do Mundial, algo que nunca teria imaginado. Ainda tenho esses sonhos de criança. O meu primeiro Mundial na televisão foi em 1978, quando vi a França com uma camisola branca e verde (ndr: frente à Hungria, com o equipamento do clube argentino Kimberley). Era irreal para mim e ainda tenho esses olhos que brilham. Vou disputar o meu segundo Mundial no banco. No dia em que já não tiver os olhos assim brilhantes, páro. Faço este trabalho por causa destas emoções. Esta adrenalina. É uma loucura. É bonito.»

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