"Quando temos um filho com deficiência, queremos fazer tudo." Mas as mães atípicas não são supermulheres: têm de aprender a parar e a cuidar-se

24 jun 2023, 08:00
Criança com Trissomia 21 (GettyImages)

"Se as mães não estiverem bem não vão conseguir ajudar os filhos." Esta é a mensagem de Patrícia, Ana Rita e Margarida para todas as mães atípicas. É para elas que existe o projeto "Be kind 2 you"

Quando o Vasco nasceu, Patrícia tinha 30 anos, era farmacêutica e já era mãe do Diogo, com oito anos. Seis meses depois, percebeu-se que o bebé tinha alguns problemas de desenvolvimento. "A primeira sensação que tive foi de solidão total. Como se fosse a única pessoa no mundo que tem um filho diferente. Não conhecia ninguém com deficiência, não conhecia nenhuma mãe atípica, tinha zero conhecimento. E agora?" Seguiu-se a habitual bateria de exames, as consultas com vários médicos especialistas, a necessidade de ouvir diferentes opiniões. "Como sou das ciências, reagi em modo profissional: vamos lá perceber o que se passa e o que é que temos de fazer", recorda. Ela era a mãe e competia-lhe controlar tudo e arranjar todas as soluções, era o que pensava.

Treze anos depois, Patrícia Quitans aprendeu a viver com a paralisia cerebral do Vasco e teve mais uma filha, Francisca, atualmente com três anos, que tem Trissomia 21, que trouxe consigo uma nova rodada de dúvidas e de adaptações. E durante todo este processo cresceu muito - sim, as mães também crescem à medida que os filhos o fazem - e entendeu o que é ser uma "mãe atípica". "Já sabia o que era ser mãe, todas as dificuldades e desafios que isso nos traz. Ser mãe atípica é igual porque o amor que temos pelos filhos é igual. Mas também é diferente. É muito mais intenso e muito mais duro", diz. 

Se a maternidade já é uma revolução na vida de uma mulher, a maternidade atípica traz consigo uma maior quantidade de problemas e uma responsabilidade maior. Seja qual for a deficiência da criança, seja qual for a história desta família, as mães atípicas têm geralmente em comum esta dedicação total aos filhos, numa tentativa de encontrar respostas médicas e terapêuticas, de encontrar soluções logísticas para os entraves do dia a dia, de procurar resolver todos os problemas presentes e evitar problemas futuros, sentindo-se completamente responsáveis pela felicidade dos filhos. "Quando temos um filho com deficiência, queremos fazer tudo", reconhece Patrícia. "Mas depois percebemos que não conseguimos."

Não é a única. Patrícia, Ana Rita e Margarida conheceram-se num grupo de mães e foram percebendo, através de conversas, que, com histórias e contextos diferentes, todas elas estavam a fazer um caminho de aceitação da sua maternidade atípica que passava, entre outras coisas, por uma coisa tão simples e tantas vezes esquecida: as mães atípicas não são supermulheres e precisam de se cuidar, até porque se não o fizerem não vão poder cuidar dos seus filhos. Esta é a mensagem que querem espalhar e foi para isso que criaram o projeto "Be Kind 2 You" (qualquer coisa como "sê gentil contigo própria"), que junta mães atípicas que têm um olhar positivo sobre a maternidade.

Patrícia admite que levou algum tempo até chegar a esta conclusão: "Eu própria tive de fazer esse trabalho, de saber quem sou eu, o que é que eu quero - tive de fazer um trabalho de autorreestruturação. Agora, já tenho muito mais informação. Continuo a ser eu a gerir tudo, a fazer tudo, mas já sem aqueles medos que tinha, sem aquela pressão". "As mães estão em dor. Temos todas de nos ajudarmos nesta mudança, que é dura, é longa, é complicada", diz. Se se ajudarem umas às outras é mais fácil, garante.

Aceitar e ter uma rede: estes são os primeiros mandamentos

Ana Rita sentiu na pele essa pressão. Engenheira agrónoma com uma especialização em economia, Ana Rita Azevedo, de 43 anos, passou por quatro abortos até ser mãe do Francisco, atualmente com nove anos. Da gravidez seguinte nasceram gémeos - o João e o José, de sete anos e muitos problemas de saúde que, para abreviar, vamos dizer assim: o José tem paralisia cerebral e o João está no espectro do autismo. Estava ela ainda a aprender a lidar com esta situação quando descobriu que estava novamente grávida, do Tomás, que tem agora quase seis anos.

"Não me lembro de sentir a solidão porque eles eram muitos, e continuam a ser", ri-se. "O que me lembro é da impotência, a impotência de não lhes poder retirar aquela condição. E depois, quando temos os diagnósticos, é aquela corrida, o querer fazer alguma coisa, o achar que podemos mudar a situação", conta. Perdida entre as necessidades de quatro filhos, fraldas, comidas, consultas e fisioterapias, Ana Rita correu para a frente sem tempo para pensar, muito menos para descansar, "porque havia sempre coisas para fazer". "No meio disto tudo, esquecemo-nos de nós", admite. "Até que cedi. Fui-me abaixo. Pensei em acabar com tudo, em acabar com a vida."

Às vezes é preciso bater no fundo para conseguir voltar à tona. "Comecei a curar-me e, mais importante, comecei a aceitar", explica Ana Rita. "Aceito os meus filhos tal e qual como eles são e com o que eles têm para dar. Aceito também que vou tentar fazer tudo aquilo que está ao meu alcance para que eles tenham a melhor vida possível, mas sabendo que este é o caminho deles. Posso preocupar-me, mas tenho de aceitar isto." 

Fazer o luto do filho desejado e idealizado é, talvez, o primeiro passo para aceitar a maternidade atípica e que não se pode resolver tudo: "Fazemos o que é possível". 

Aceitar as limitações passa também por saber pedir ajuda e delegar - porque a mãe não pode fazer tudo. "A rede é muito importante", explica Patrícia. "A inclusão começa em casa" e a família e os amigos são um suporte indispensável. Ana Rita concorda: "Nós não estamos sozinhos, há um conjunto de pessoas que estão à nossa volta e com quem podemos contar."

Lutar pela mudança: um trabalho diário

Inclusão é a palavra-chave. A vida das mães atípicas implica uma luta permanente: por respostas médicas e terapêuticas que nem sempre estão disponíveis ou não são acessíveis, por uma escola que aceite os seus filhos e os integre (e depois por uma formação e por um emprego), por uma sociedade que não coloque entraves e onde as pessoas diferentes não sejam discriminadas.

"É muito cansativo", admite Margarida. Às vezes apetece desistir. Por exemplo, quando pensa em todas as dificuldades que tem de ultrapassar só para levar a sua filha na cadeira de rodas um bocadinho à praia, Margarida tem mesmo de ir buscar toda a sua força de vontade para não ceder à tentação de ficar em casa. "E isto acontece com tudo, todos os dias, nas mais variadas situações."

Ser mãe atípica é cansativo e caro, acrescente-se. Entre consultas e terapias, medicamentos, cadeiras-de-rodas e todas as outras adaptações, muitas famílias acabam por passar por dificuldades. "Cada um deles equivale a um Ferrari, com tudo o que já gastámos", diz Ana Rita sobre os gémeos. É também por isso que muitas mães acabam por ter de ter mais do que um trabalho, para ganhar mais dinheiro, ou por optarem por fazer tudo sozinhas, para não terem tantas despesas. 

Mas não tem de ser assim. "Aceitar os nossos filhos é entender que não temos de os mudar para que sejam aceites. O que temos de mudar é a sociedade, para que seja mais inclusiva." Neste caminho da maternidade atípica, Patrícia descobriu o seu lado ativista. Não se resigna. Em vez de estar sempre a tentar resolver tudo sozinha, prefere perguntar: "O que é que posso fazer para ajudar a sociedade a mudar?"

"Em dez anos já vimos muitas mudanças, mas ainda é pouco. As pessoas com deficiência têm de andar na rua, que ir aos restaurantes, que ir ao ginásio. Temos de ter acessibilidades, temos de ter condições para os nossos filhos irem à escola e fazerem a sua vida normal sem termos de pagar mais por isso. E nós todos temos de aprender a aceitar, somos nós todos que temos de aprender a lidar com as várias situações." Patrícia não tem dúvidas: "A melhor terapia é ser aceite na família e na sociedade, poder ir à praia, estar com outras crianças..." 

Autocuidado: as mães também têm necessidades

Para Margarida Leite, de 42 anos, engenheira informática licenciada em engenharia da linguagem e do conhecimento e mãe do Sebastião, com 10 anos, e da Alice, com 8, a culpa foi inevitável. Mas, depois da culpa, veio a força. A Alice tem doença de Leigh, uma doença metabólica - herdada da mãe - que lhe afeta 98% das células. "O dna mitocondrial faz com que os alimentos sejam processados transformados em ATP e essa energia é então enviada para os nossos órgãos. Quando existe um defeito nessa cadeia, a energia não é produzida corretamente e os órgãos começam a entrar em falência", explica Margarida. Os médicos pensaram que Alice não sobreviveria, a mãe nunca desistiu. Para ajudar a filha, foi explorando as terapias holísticas - reiki, terapia multidimensional, cristais, alinhamento estelar, apometria, entre outras.

"Descobrir como é que poderia dar energia à minha filha fez-me descobrir toda a parte espiritual e foi isso que a manteve viva até hoje. Aprendi como é que podemos ter mais consciência do nosso corpo e equilibrá-lo para viver de uma forma mais saudável", conta Margarida. Alice precisa de cuidados permanentes, até porque tem graves alergias alimentares e necessidades especiais, e continua a ser seguida por médicos. Mas anda na escola e superou em muito as expectativas iniciais. Entre o trabalho e a maternidade - típica e atípica - Margarida não tem tempo para nada, mas tem de ter tempo para si, isso é fundamental: "Para curar a minha filha tenho que estar bem, porque é a minha energia que passa para ela".

No caso de Margarida, esta transferência de energia é real. Mas este é um lema que se aplica a todos os cuidadores. No meio do turbilhão que é a vida, as mães atípicas têm de saber parar, ouvir o seu corpo, perceber quais as suas necessidades para se sentirem bem. "Por muito grande que seja a nossa responsabilidade, as mães não se podem esquecer de cuidar delas mesmas", avisa Patrícia. "Se as mães não estiverem bem não vão conseguir ajudar os filhos."

"Temos muita a ideia de que é preciso muito dinheiro, mas a maior parte do autocuidado não custa dinheiro. Havendo vontade e havendo uma rede, há muita coisa que se pode fazer", esclarece Patrícia. "Por exemplo, ir dançar ou fazer uma caminhada ou estar com amigos. Na maior parte das vezes, as mães não fazem estas coisas porque se sentem culpadas, como se por serem mães atípicas não se pudessem divertir." 

Foi a pensar nisso que estas mães organizaram, no início deste mês, o primeiro evento "Be kind 2 you" - um encontro de mães atípicas que, durante uma tarde, se juntaram numa casa em Sintra, no meio da natureza, para cuidarem de si mesmas. Havia espaços para relaxar, para conversar, para cuidar do corpo. "O que é que eu preciso?" Cada mãe precisa de coisas diferentes, responde Patrícia. "Há mães que precisam de contacto social, de estar com outras; outras precisam de um tempo de silêncio e de meditar. Há mães que precisam de se sentirem bonitas, de arranjar o cabelo e pôr maquilhagem, isso ajuda a sua autoestima. Há mães que precisam de fazer ginástica, outras precisam de uma massagem, outras só precisam de falar. Depende muito do estado em que cada pessoa está e, mesmo depois disso, há fases na vida, há dias em que precisamos de coisas diferentes."

"Ainda considerámos a hipótese de as mães poderem trazer os filhos, mas depois concluímos que era melhor não", conta Ana Rita. "Esse é o primeiro passo para que o autocuidado possa acontecer: conseguir entregar o filho para, durante algumas horas, fazerem o que lhes apetecesse."

"Foi incrível", conclui Patrícia. "Muitas vezes as pessoas só precisam de ser vistas como são, sem serem as mães deste ou daquele." Para algumas mães, esta foi mesmo a primeira vez que estiveram algumas horas sem os filhos. Para outras, foi a oportunidade de encontrar outras mães que sabem exatamente como é que elas se estão a sentir. Ou simplesmente de dar umas gargalhadas sem culpa.

No final do encontro, ficou a certeza de que ainda há muito por fazer e que, portanto, o projeto tem mesmo de continuar e chegar a mais mães: "Juntámos um grupo de pessoas muito diferentes e estamos a tentar perceber como é que cada uma, com as suas competências, pode ajudar. Se todas contribuirmos ativamente, podemos mudar a sociedade."

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