Marcelo volta a avisar PSD: o Chega é problema, não solução (e Passos não perdoa “deixa-andar” de Lagarde)

28 fev 2023, 22:38

ANÁLISE: Sebastião Bugalho esteve no jantar onde Marcelo e Passos Coelho falaram com duzentos jovens e notáveis sobre o futuro da direita. Leia o que o aconteceu em 5 horas de evento

Preocupado com “a desilusão” que a entrada da Ucrânia pode ser, com um governo “em fim de ciclo” e com os reequilíbrios de poder na direita (e no mundo), o Presidente da República falou ao futuro diante do passado. Este, por sua vez, não se escondeu. Passos Coelho criticou o BCE, a dependência de fundos estruturais e a eventual regionalização, mais num fato de chefe de governo do que de candidato a Belém. A sala notou e aplaudiu. Marcelo recomendou aos comensais: marquem a cruzinha no calendário. Ele voltou. E vem aí.

Depois de um puxão de orelhas a Luís Montenegro e a Carlos Moedas após declarações menos conseguidas sobre a imigração (“o original [o Chega] tende a ganhar à cópia [o PSD] nas reações mais emocionais”), o Presidente da República tornou a vestir a toga de grão-mestre, instruindo a sua área política de origem ‒ a direita democrática ‒ sobre como lidar com a nova vizinhança.

Mantendo o tom de conselho de amigo e dirigindo-se a uma audiência de jovens, ontem à noite reunidos no Grémio Literário, Marcelo Rebelo de Sousa inspecionou de alto a baixo o governo, a oposição e o futuro da Europa a seguir à guerra. Ninguém saiu propriamente ileso. Na plateia, mais diversa do que o aparente à primeira vista, estava Pedro Passos Coelho, que Marcelo insiste em referir como “sr. primeiro-ministro”, e não só.

Além da dupla ancestralmente desavinda, o décimo aniversário do “Senado”, um grupo de formação política conservadora, contou com mais de duzentas presenças, incluindo membros e antigos palestrantes.

Estava Álvaro Beleza (presidente da SEDES, comentador da CNN), António Lobo Xavier (conselheiro de Estado, comentador da CNN), Diogo Feio (presidente do instituto Amaro da Costa), Alexandre Poço (presidente da JSD), Gonçalo Matias (presidente da fundação Francisco Manuel dos Santos), António Pires de Lima, Nuno Crato e Margarida Mano (ex-ministros de Passos Coelho), José Ribeiro e Castro e Manuel Monteiro (ex-presidentes do CDS), Paulo Núncio (ex-secretário de Estado de Maria Luís Albuquerque) e também o núncio ‒ mas o apostólico.

O ausente mais presente era Luís Montenegro, líder da oposição e também ele um conhecido do dito Senado, que não compareceu. Nem o atual presidente do PSD nem nenhum membro da sua direção se encontravam no evento, que durou quase cinco horas. Carlos Costa, ex-governador do Banco de Portugal, jantou na mesa da presidência.

“Chegou o outro Presidente da República”

Pelas 19h15 em ponto, já com a sala cheia e Marcelo Rebelo de Sousa sentado na primeira fila, Pedro Passos Coelho entrou em passada enérgica. Os mais próximos do seu lugar levantaram-se, cumprimentando-o, e manteve-se um burburinho no Grémio até à sua introdução biográfica estar concluída e subir ao púlpito. Na segunda fila de cadeiras, um ex-aluno de Marcelo sussurrou para o lado: “Chegou o outro Presidente”. E a receção quase deferencial da sala ao primeiro orador permitia a interpretação.

De casaco de tweed tipicamente professoral, Passos não fugiu ao registo da sua ocupação corrente: deu uma aula.

Sem papel e de improviso, o Passos académico foi pontualmente interrompido pelo Passos governante ‒ uma chamada de atenção à regionalização aqui, um alerta às consequências pessoais de combater os poderes instituídos ali ‒, mas sem abandonar o registo que vem mantendo nos últimos anos: factos, números, retrospetiva histórica ao pormenor, frequentemente crítica do establishment europeu desde Jean Monet, e a constatação de que corremos o risco de repetir as mesmas discussões sem alcançar resultados diferentes na União Europeia.

“Dos anos 60 para cá, notem como o debate está assente praticamente nos mesmos pressupostos”, lamentou.

Nas raras aparições desde que saiu da política ativa, nos finais de 2017, o seu timbre tem sido esse: Europa, economia, política monetária. E a crise inflacionária que a Zona Euro atravessa faz com que Passos, com mais ou menos vontade, troque a retrospetiva pela prospetiva, a história pela atualidade.

Ontem, fê-lo com particular severidade na direção do Banco Central Europeu, apontando os efeitos perniciosos de uma política de juros baixos prolongada no tempo, e da sua presidente, Christine Lagarde, criticando a sua demora em reagir aos sinais preocupantes de inflação já antes da guerra.

Lagarde, que presidia o FMI durante a intervenção da troika em Portugal, não terá deixado saudades em Passos, que chefiava o governo de então. A forma como o ex-primeiro-ministro questionou ontem a sua competência para encabeçar o BCE foi explícita.  

Mas não foi esse o único pormenor que destoou da perspetiva habitualmente difundida sobre Pedro Passos Coelho.

O seu distanciamento das “governações tecnocratas” pela Europa fora, despidas de política ou espírito crítico, o seu reconhecimento do impacto de “erros de comunicação” em quem governa ‒ no fundo, tudo aquilo que até o seu partido foi admitindo como lacunas do seu mandato ‒ acabou por ser referido pelo próprio, quase como se estivesse a dizer a quem o escutava: eu não sou cego, não sou surdo e não sou mudo.

Chamar-lhe ato de contrição seria incorreto, até porque a absolvição foi-lhe mais do que conferida nas urnas de 2015, mas a possibilidade de ressurreição estava lá. O mistério, à data, é para onde: São Bento, como parece preferir? Bruxelas, que parece abominar? Ou Belém, que parece descartar?

Marcelo, talvez mais do que os restantes, deu por isso.

E não o guardou para si.

Do impasse europeu para o impasse da direita

O maior elogio que se pode fazer ao evento de ontem é que não terminou como começou, isto é, que o ocorrido entre o seu início e o seu fim teve significado político. E teve. Marcelo abriu o livro e recitou-o pelas entrelinhas, meia-palavra a meia-palavra, da política mais pequena ao futuro mais global.

Com o impasse europeu diagnosticado por Passos, o Presidente dedicou-se ao impasse do sistema político português nos dias de hoje e não deixou nada por dizer.

“A situação complicou-se e degradou-se nos últimos dez anos”, afirmou, deixando a pergunta no ar. “Pode a juventude reequilibrar o sistema político?”, ou seja, estancar a sua pulverização e o enfraquecimento “dos moderados”?

Marcelo, esperançado nos seus interlocutores, julga que sim. Mas deixou-lhes avisos. Sobre qual o caminho para “reequilibrar o sistema político” ‒ criar alternativa e alternância ‒, o Presidente foi claro: “Uma coisa é lidar com o problema [o Chega]. Outra é tomá-lo como solução”. E na análise de Marcelo esse dilema pode surgir mais cedo do que tarde.

“Os ciclos políticos têm uma característica: começam e acabam”, disparou, desta vez na direção do governo de António Costa, comparando o desgaste dos presentes incumbentes com os de outras décadas, de outras cores, numa alusão evidente ao fim do cavaquismo.

Em matéria internacional, Marcelo Rebelo de Sousa não hesitou em considerar o conflito armado na Ucrânia como “uma guerra mundial”, envolvendo mais do que duas potências e superpotências, manifestando apreensão perante “o novo balanço de poderes” que virá antes de qualquer “nova ordem internacional”.

“Há um risco. Um risco de desilusão dos que estão e dos que querem estar”, disse, não mencionado concretamente a candidatura ucraniana à União Europeia. 

Em conclusão, deixou três conselhos aos jovens formandos. O primeiro: preparem as ideias “para não terem de andar atrás delas quando chegarem ao poder, e não acabarem na navegação à vista da costa” ‒ ou do Costa, murmurou-se no Grémio. O segundo: “tenham uma equipa” que ultrapasse os individualismos, rodeiem-se dos melhores para serem melhores. O terceiro: “renovem”, rejuvenesçam, refresquem.

Se Marcelo estava a falar para os jovens, para a direita ou para o ex-primeiro-ministro sentado a três metros de si, é algo que só saberíamos perguntando. Ele, com o sorriso costumeiro, provavelmente responderia: para os três.

De olhos fixos em Passos, no zénite de compressão do encontro, despediu-se da sala, avaliando: “Vejo que escolheram bem o futuro. E isso é muito importante para o país”.

Aí, não houve dúvidas de quem estava a falar.

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