A cantora norte-americana de 65 anos atua segunda e terça-feira na Altice Arena. Nos concertos, evoca os temas e os momentos mais marcantes destes 40 anos de carreira: "Acho que a coisa mais controversa que já fiz foi manter-me por aqui"
Antes de Madonna, aparece Bob the Drag Queen, mestre de cerimónias, dirigindo-se ao público com tiradas ora humorísticas ora sérias ora picantes: "It's show time", anuncia. É hora do espetáculo e se há pessoa que leva essa palavra à letra é Madonna, a cantora de 65 anos que esta segunda e terça-feira sobe ao palco da Altice Arena, em Lisboa, para dois concertos há muito praticamente esgotados (no momento em que escrevemos havia ainda disponíveis bilhetes de 250 euros para a segunda data).
Há quatro meses, havia muitas dúvidas se Madonna conseguiria fazer esta "Celebration Tour". A cantora foi hospitalizada em junho com uma infeção bacteriana potencialmente fatal que a levou à unidade de cuidados intensivos. Os primeiros concertos, marcados para julho na América do Norte, foram adiados, mas os médicos duvidavam também que ela recuperasse a tempo dos concertos agendados para a Europa, já no outono. E, no entanto, aconteceu. “Estou muito surpresa por ter chegado tão longe - em muitos níveis”, disse Madonna, na primeira noite em palco, na O2 Arena de Londres, no passado dia 14 de outubro. "Tem sido um ano louco. Achei que não me safava." Mas, como também disse, não é "uma desistente".
É a primeira vez que Madonna faz uma digressão sem ter um álbum novo. Trata-se, como o nome indica, de uma digressão de celebração. O diretor musical Stuart Price, colaborador habitual de Madonna, chama-lhe "uma espécie de documentário" sobre os 40 anos de carreira da cantora, para o qual foram recuperadas gravações originais e imagens antigas. Uma vez que não há banda de apoio, houve um investimento grande na manipulação e reinvenção das músicas, mas Price garante que as vozes são todas ao vivo, não há gravações da voz de Madonna ou dos cantores de apoio. "Eu quero aparecer, ser eu, cantar as músicas e tocá-las em frente do público", terá dito Madonna a Price quando estavam a preparar o espetáculo.
Ao longo de duas horas, Madonna canta, dança, toca guitarra e conta a sua história, através da música (são cerca de 30 canções - embora de algumas só se ouçam pequenos excertos) e também através de toda a encenação, com constantes mudanças de cenário e de guarda-roupa - afinal, na sua carreira, a parte visual tem sido tão importante quando a musical. Madonna tinha avisado que iria homenagear a cultura da Nova Iorque dos anos 80, que tanto a inspirou no início da sua carreira. O palco enche-se com mais de 20 bailarinos, muitos deles negros e latinos, queer e trans, num hino à diversidade que caracteriza todo o seu trabalho. Há homenagens e momentos mais sérios - a cantora apela à paz entre Israel e a Palestina, critica a Igreja e recorda os amigos que morreram vítimas de Sida.
Da alegria inocente do dance-pop do início dos anos 80 de "Get Into the Groove" e "Holiday"; a baladas como "Live to Tell" e "Bad Girl"; passando pelos sensuais "Erotica" e "Justify My Love", Madonna revisita praticamente todos os grandes êxitos da sua carreira, como "Like a Virgin", "Vogue", "Don’t Tell Me", "La Isla Bonita", "Like a Peayer", "Ray of Light" e "Hung Up".
Sem querer revelar muito do que têm sido estes concertos, é importante chamar a atenção para a participação de quatro dos filhos de Madonna: David Banda toca guitarra num momento de evocação das mães com o tema "Mother and Father", Mercy James toca piano em "Bad Girl" e Lourdes Leon e Ester também têm os seus momentos.
Os mais novos poderão não saber, mas antes de Lady Gaga ou de Taylor Swift, houve Madonna. Ela foi a primeira artista feminina a explorar plenamente o potencial dos videoclipes e a tornar-se uma verdadeira superestrela. Colaborou com designers como Jean-Paul Gaultier, fotógrafos como Steven Meisel e Herb Ritts, realizadores como Mary Lambert e David Fincher, inspirando-se na cultura underground dos clubes ou na arte de vanguarda para criar a sua própria imagem, mais sexual ou mais satírica: da ingénua de "Like a Virgin" (1984) à pecadora de vestido vermelho que beija um santo negro em "Like a Prayer" (1989), até à dominatrix que vemos no polémico filme "Truth or Dare" (também conhecido como "Na Cama com Madonna", 1991). Fosse como fosse, passando sempre a mensagem de que era livre - esse sempre foi o superpoder. Quando mais ninguém ainda o fazia, Madonna usou a sua imagem (e a sua sexualidade) para se afirmar e tornar uma mulher empoderada. E, independentemente de tudo o resto, esse será também o seu legado para todas as miúdas que cresceram com posters de Madonna nas paredes dos quartos.
Depois, ela amadureceu, teve filhos, passou por uma fase mais introspetiva. "Ray of Light " (1998), com um ritmo mais techno, valeu-lhe o Grammy para melhor álbum pop. No ano seguinte ganhou mais um Grammy com a música "Beautiful Stranger", que interpretou para o filme "Austin Powers: The Spy Who Shagged Me" (1999). Continuou na eletrónica com "Music" (2000) e depois "Confessions on a Dance Floor" (2005), que ganhou o Grammy de melhor álbum eletrónico/dance. Quando a internet tomou conta do mundo e o estatuto da "rainha da pop" parecia já não se lhe adequar, Madonna nunca desistiu de procurar trabalhar com quem a pudesse ajudar a desenvolver a sua criatividade, fosse Pharrell Williams, Kanye West ou Diplo. Em 2017 mudou-se para Lisboa, descobriu o fado e a "sôdade", conheceu Celeste Rodrigues e Dino D'Santiago. Inspirada pelas ruas da Mouraria e pelo Tejo, lançou "Madame X" e levou o guitarrista Gaspar Varela e as batucadeiras de Cabo Verde consigo em digressão.
Ao receber o prémio de Mulher do Ano no evento "Women in Music", da Billboard, em 2016, Madonna contou que foi com David Bowie que aprendeu que no mundo do espetáculo não há regras. "Mas eu estava errada", admitiu. "Existem regras se se for uma mulher".” As mulheres não podem parecer muito inteligentes, não devem deixar os homens desconfortáveis ou as outras mulheres com ciúmes. "E, finalmente, não envelheçam", disse. "Porque envelhecer é pecado. Serão criticadas, serão difamadas e não passarão na rádio." Nestes 40 anos de carreira, Madonna foi acusada de blasfémia, simulou masturbar-se em palco, beijou Britney Spears na boca, teve três videoclipes censurados pela MTV, ainda agora é muitas vezes criticada pelas plásticas que fez ou por não querer comportar-se como as outras senhoras de 65 anos. No entanto, no palco da O2 Arena, confessou: "Acho que a coisa mais controversa que já fiz foi manter-me por aqui". Essa é a lição que Madonna dá agora aos fãs que enchem os 78 concertos desta "Celebration Tour".