Maioria das mulheres tem apenas conhecimentos “básicos” de literacia financeira. E mais de metade nunca renegociou o salário

13 ago 2023, 10:00
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Relatório da Portuguese Women in Tech e a Natixis revela que mais de metade das mulheres inquiridas teve uma ideia de negócio, mas não lhe deu continuidade por sentir insegurança

Mais de metade das mulheres tem apenas conhecimentos básicos sobre literacia financeira, a grande maioria não tem qualquer contribuição para as decisões financeiras na sua empresa e mesmo entre a minoria (7,2%) das mulheres que dizem ser as principais responsáveis por essa decisão na empresa, uma larga maioria (72,7%) diz ter apenas conhecimentos básicos. Mais de metade considera o seu salário injusto, mas não o negociou - mais de um terço por não sentir segurança em fazê-lo, o mesmo motivo que as impediu de avançar com uma ideia de negócio, aponta o inquérito “Women & Wealth – Literacia Financeira no Feminino”, realizada pela Portuguese Women in Tech e a Natixis.

O inquérito, realizado entre 26 de maio e 28 de junho de 2023, recolheu respostas de 154 mulheres, dos 21 aos 70 anos, a residir no distrito do Porto, mas o retrato sobre os níveis de literacia das mulheres não deve diferir muito a nível nacional.

“Tudo me leva a crer que esta é uma realidade nacional. A nossa decisão de lançarmos a conferência Women & Wealth — realizada em junho, no Porto — foi por vermos uma grande necessidade de se discutir este tema e aceder a conteúdo relevante sobre o mesmo, necessidade transversal a todo o país”, diz Inês Santos Silva, cofundadora da Portuguese Women in Tech, ao Trabalho by ECO.

Desconhecimento sobre literacia financeira — entendido como conhecimento sobre conceitos, serviços ou produtos financeiros como empréstimos, seguros, planos de poupança, ações e outras opções de investimento — que não é exclusivo das mulheres. “Dados de 2022, do Banco Central Europeu, colocam Portugal em último lugar no ranking de literacia financeira da zona euro. A baixa literacia financeira é um problema nacional e sistémico”, aponta Inês Santos Silva.

"No ensino obrigatório, em nenhum momento se fala de dinheiro, poupança, investimento ou dívida. Pelo meu conhecimento, não existe qualquer conteúdo programático focado neste tema, sendo que existem algumas organizações privadas que acabam por colmatar essa falta de informação, mas que infelizmente não conseguem chegar a todo o lado. Uma aposta nestes conteúdos escolares poderia ter um impacto enorme no aumento da literacia financeira no nosso país", diz Inês Santos Silva, cofundadora da Portuguese Women in Tech.

Dados mais recentes dão conta de que a situação portuguesa não evolui com a rapidez desejável, com um inquérito da Comissão Europeia, conhecido em julho, a apontar que 18% dos europeus têm elevados níveis de literacia financeira contra 11% em Portugal. Apenas pouco mais de metade (55%) dos 1.000 cidadãos portugueses inquiridos sobre inflação — tema que tem afetado em particular neste último ano e pouco os rendimentos das famílias — respondeu acertadamente à questão colocada.

Até 2028, Portugal tem em marcha uma Estratégia de Literacia Financeira Digital, desenhada com apoio da OCDE e da Comissão Europeia, com vista a “capacitar a população para a utilização adequada de serviços financeiros digitais e reduzir a exclusão financeira digital”, pode ler-se no site do Banco de Portugal.

“Embora não existam diferenças de género em vários aspetos (como a inclusão digital, a utilização de ferramentas digitais, a segurança online ou a exposição a fraudes e burlas online, entre outros), existem diferenças de género noutros domínios, como a propensão a procurar informação sobre a utilização segura de serviços financeiros digitais (em termos relativos, mais mulheres do que homens nunca procuraram essa informação), ou em níveis de conhecimentos financeiros digitais (com as mulheres a revelarem níveis inferiores aos dos homens)”, aponta o documento do Banco de Portugal.

O que revela o inquérito?

Os dados inquérito levado a cabo pela Portuguese Women in Tech dão conta da dimensão do problema junto do público feminino.

Apesar 45,5% das mulheres inquiridas terem uma licenciatura, 42,2% um mestrado e 3,2% um doutoramento — somente 6,5% têm o 12.º ano –, mais de metade (53,9%) diz ter conhecimentos “básicos” de literacia financeira, 33,8% conhecimentos “intermédios” e uma minoria de 5,2% conhecimentos avançados. Há uma fatia de 7,1% que considera mesmo não ter quaisquer conhecimentos relacionados com literacia financeira.

“No ensino obrigatório, em nenhum momento se fala de dinheiro, poupança, investimento ou dívida. Pelo meu conhecimento, não existe qualquer conteúdo programático focado neste tema, sendo que existem algumas organizações privadas que acabam por colmatar essa falta de informação, mas que infelizmente não conseguem chegar a todo o lado. Uma aposta nestes conteúdos escolares poderia ter um impacto enorme no aumento da literacia financeira no nosso país”, aponta Inês Santos Silva, quando questionada sobre possíveis medidas para mitigar o problema da iliteracia financeira.

“Vivemos numa sociedade em que falar de dinheiro é tabu. Muitas vezes, nem as próprias famílias discutem estes temas, pelo que a aprendizagem informal acaba por ser perder. E isto é ainda pior no caso das mulheres, em que falar de dinheiro é visto como ‘feio'”, refere ainda.

Pese embora os números, o inquérito revela ainda que 61% das mulheres procuram manter-se informada sobre “conceitos, serviços e produtos financeiros, mas apenas quando se depara com essa necessidade”, com 22,1% a admitirem o desinteresse e, apenas 16,9% a procurarem ativamente manterem-se informadas, mesmo sem essa necessidade.

Se no agregado familiar 51,3% das mulheres partilham a responsabilidade pelas decisões a nível financeiro com outra(s) pessoa(s), quase metade (44,2%) é a principal responsável por essas decisões, com apenas 4,5% a admitirem não ter qualquer responsabilidade nesse campo na sua família.

Já no trabalho, uma fatia significativa das inquiridas (63,2%) não tem qualquer contribuição para as decisões financeiras na sua empresa. “Apenas 18,8% contribuem para as decisões financeiras no contexto profissional e é ainda significativamente menor (7,2%) a fatia de mulheres que dizem ser as principais responsáveis pelas decisões financeiras na sua empresa”, aponta o estudo.

Mais, “do grupo de mulheres que afirmam ser as principais responsáveis pelas decisões financeiras na sua empresa, uma percentagem muito significativa (72,7%) afirma ter apenas conhecimentos básicos relacionados com literacia financeira e 27,3% conhecimentos intermédios”, destaca o estudo. “Não há uma única inquirida a afirmar ser a principal responsável pelas decisões financeiras na sua empresa e, simultaneamente, a assumir ter conhecimentos avançados relacionados com literacia financeira”, reforça.

Uma realidade muito próxima do que sucede em casa. Das mulheres que dizem ser as principais responsáveis pelas decisões no lar, 57,4% têm “conhecimentos básicos ou não têm quaisquer conhecimentos relacionados com literacia financeira”. E das que têm conhecimentos básicos ou desconhecimento, cerca de um terço (30,9%) “não procura de, de forma regular, manter-se informada sobre conceitos, serviços e produtos financeiros”.

51,3% nunca renegociou salário

O estudo também dá conta da relação das mulheres com o salário. Embora junto do universo das inquiridas, apenas uma em cada 10 mulheres questionadas (10,4%) dependa financeiramente de uma pessoa ou instituição para fazer face às suas despesas fixas mensais — contra 89,6% que não se encontra neste momento dependente nesse sentido –, mais de metade (58,5%) não considera “justo” o salário que recebe neste momento, face às suas capacidades, conhecimentos ou função. “Apenas 3 em cada 10 (30,5%) acha que está a receber um salário justo.”

“Apesar de a maioria das inquiridas considerar que o salário que recebe não é justo, a grande fatia (67,8%) não sente que o facto de ser mulher tenha implicações no seu salário. Segue-se a fatia dos 17,8% que não sabe/não tem a certeza se o facto de ser mulher tem implicações no seu salário e a fatia dos 14,4%, representando as mulheres que sentem que o seu género tem implicações no salário que recebem”, aponta o estudo.

"Vivemos numa sociedade em que falar de dinheiro é tabu. Muitas vezes, nem as próprias famílias discutem estes temas, pelo que a aprendizagem informal acaba por ser perder. E isto é ainda pior no caso das mulheres, em que falar de dinheiro é visto como ‘feio’", argumenta Inês Santos Silva.

Ainda assim, uma maioria (51,3%) nunca tentou renegociar o seu salário. Porquê? Mais de um terço (35,4%) por não ter “segurança suficiente para o fazer”, com 13,9% a invocar “não ter conhecimentos suficientes” e 12,7% por não sentir necessidade de o fazer.

Com Portugal, a registar há três anos consecutivos um aumento da desigualdade salarial entre género, para 11,9%, segundo dados conhecidos em março do Eurostat — é o 15.º país europeu com maior desigualdade — poderia uma maior literacia financeira ajudar a mitigar a essa discrepância salarial?

“Sem dúvida. Este foi um dos temas abordados na conferência Women & Wealth, que organizamos, e que validou também a nossa iniciativa “Salary Transparency Project”, que visa partilhar informação salarial na área da tecnologia, para nós, mulheres, estarmos mais seguras no momento de negociar o salário”, aponta Inês Santos Silva.

E o inquérito parece corroborar essa perceção. “Das inquiridas que dizem ter conhecimentos avançados relacionados com literacia financeira, 87,5% já tentou negociar o seu salário”, aponta o estudo. Desse grupo, apenas 1,3% nunca tentou negociar o salário.

Mais de metade teve ideia de negócio, mas não deu continuidade

A maioria das mulheres inquiridas (51,3%) afirma já ter tido alguma ideia de negócio, mas uma fatia significativa (53,2%) assume não ter avançado “de todo” com essa ideia, com 17,6% a prosseguirem com a ideia, mas a não a concretizar. Já 16,5% conseguiram concretizar a ideia e 12,7% ainda estão a fazê-lo.

Falta de segurança (64,3%), desafios a nível financeiro (58,9%), falta de conhecimento (44,6%) estão entre os principais motivos que levaram as mulheres a não avançar ou concretizar a sua ideia de negócio. Falta de apoio do mercado (26,8%) e desmotivação (21,4%) são outras das razões apontadas.

Poderá os dados de literacia financeira também contribuir para os baixos números de mulheres founders no ecossistema de empreendedorismo? “Não sendo um entrave, acredito que uma maior literacia financeira por parte das mulheres poderia levar a uma maior estabilidade financeira, que poderia potenciar a criação de mais empresas”, admite a cofundadora da Portuguese Women in Tech. “Isto porque o relatório identifica desafios a nível financeiro como uma das principais razões para as inquiridas não avançarem com a criação de um negócio próprio. Maior literacia financeira poderia ainda, muito provavelmente, potenciar o sucesso das mesmas”, justifica.

A esmagadora maioria das mulheres inquiridas (79,2%) diz estar aquém das suas ambições financeiras, com 11% a admitir as ter atingido e apenas 3,2% a considerar estar além. Uma fatia de 6,6% assume nem sequer ter ambições financeiras, revela o inquérito.

"Uma maior literacia financeira por parte das mulheres poderia levar a uma maior estabilidade financeira, que poderia potenciar a criação de mais empresas. (…) Isto porque o relatório identifica desafios a nível financeiro como uma das principais razões para as inquiridas não avançarem com a criação de um negócio próprio. Maior literacia financeira poderia ainda, muito provavelmente, potenciar o sucesso das mesmas", estima a responsável.

“Mesmo considerando as mulheres que já conseguiram concretizar a sua ideia de negócio, 92,3% destas está aquém das suas ambições financeiras e apenas 7,7% atingiu as suas ambições financeiras. Nenhuma destas mulheres afirma estar além das suas ambições financeiras”, alerta o estudo.

No grupo de mulheres que assume ter atingido ou estar além das suas ambições financeiras, 72,7% tem dinheiro investido nalgum produto financeiro, a maioria das quais (81,3%) considerando investimentos mais “tradicionais”.

 

Cerca de metade das mulheres (42,2%) tem dinheiro investido nalgum produto financeiro, fazendo a total gestão desse investimento, com 22,1% a partilhar gestão de investimento. Mais de um terço (34,4%) não tem qualquer dinheiro investido em produtos financeiros.

Dentro do grupo de mulheres que tem dinheiro investido em produtos financeiros, 80,8% considera investimentos mais “tradicionais”, como Certificados de Aforro, ações, entre outros. Apenas 3% apostou totalmente esse dinheiro em novos tipos de investimento, como criptomoedas e NFT, e 15,2% tem dinheiro investido em ambos.

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